Outras ideias, com SebastiĆ£o Cecio Ferreira
Lembro-me que, desde pequeno, quando ia ao antigo Banco Credireal, na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Halfeld, e ficava olhando pelo vidro esperando os adultos, aquele homem me criava curiosidade. Queria eu conversar com ele. Como muitos juiz-foranos, sempre passei, na urgĆŖncia do relĆ³gio. Agora, me agacho ao seu lado e pergunto-lhe o nome: SebastiĆ£o Cecio Ferreira. Os mais Ćntimos, que a todo momento lhe cumprimentam apressados, usam TiĆ£o. A aproximaĆ§Ć£o justifica-se pelo tempo em que esses encontros foram proporcionados. LĆ” se vĆ£o mais de trĆŖs dĆ©cadas que SebastiĆ£o, 60 anos, se posta, Ć s 10h30, com sua caixinha contendo a inscriĆ§Ć£o “Ajude-me por favor” e seu banco estofado, permanecendo atĆ© Ć s 15h30.
Sua altura pouca e a ausĆŖncia dos braƧos, que lhe impƵe alguma dependĆŖncia, nĆ£o lhe definem uma tristeza profunda. Pelo contrĆ”rio. SebastiĆ£o distribui sorrisos. “Para mim, nĆ£o sou deficiente. NĆ£o tenho dificuldades. Acostumei a ser assim, vim ao mundo assim. Sou tranquilo, para mim Ć© como se fosse perfeito fisicamente. NĆ£o vejo um pingo de problema”, diz, contando nĆ£o sentir o preconceito das ruas. Sem vitimar-se, ele tambĆ©m se acostumou a naturalizar sua rotina, aprendizado de casa, que os pais e os irmĆ£os lhe ensinaram. “Meu costume Ć© esse aqui mesmo, minha vida Ć© essa”, brinca. E a caixinha, aposentarĆ” um dia? “NĆ£o imagino”, responde rapidamente.
O padrinho Itamar
Nascido em Santana do Deserto, na Zona da Mata mineira, SebastiĆ£o chegou a Juiz de Fora junto da famĆlia, com pouco mais de 13 anos. “Meu pai trabalhava na roƧa, a gente morava em um sĆtio, onde ele foi empregado. Ficamos ali por quase dez anos. O proprietĆ”rio vendeu, e o lugar foi loteado. Virou o Bairro Progresso. LĆ” se chamava SĆtio do Stopa. Foi tirada uma rua, que atravessa o Progresso, e colocaram o nome de Borborema, onde moro”, conta, referindo-se a uma das regiƵes mais empobrecidas da cidade na primeira metade do sĆ©culo XX. “O Dr. Itamar Franco era prefeito de Juiz de Fora e me deu um lote. Como prefeito, ele arrumou uma pensĆ£o para mim. Fui juntando o dinheiro atĆ© o ponto de fazer uma casa para mim”, completa, demonstrando a admiraĆ§Ć£o pelo polĆtico que se tornou, nos anos 1990, presidente da RepĆŗblica. “O Itamar Ć©, inclusive, meu padrinho de diploma. Eu estudava a quarta sĆ©rie primĆ”ria, e, quando fomos receber o diploma, cada aluno tinha que ter uma pessoa como padrinho. Como eu o conhecia, chamei para ser meu padrinho. Recebemos o diploma dentro da antiga TV Industrial”, recorda o homem, entĆ£o aluno da Escola Estadual Padre Frederico Vienken.
Rubro-negro e carijĆ³
Prestes a concluir o ginĆ”sio, SebastiĆ£o perdeu a mĆ£e. “Fui, entĆ£o, obrigado a ficar em casa, tomando conta de minha irmĆ£ mais nova, para que a outra irmĆ£ trabalhasse e ajudasse meu pai a sustentar a casa. Meus outros irmĆ£os jĆ” haviam se mudado e casado”, destaca ele, que, dos 7 irmĆ£os, tem, hoje, apenas quatro. Ainda jovem, tentou a vida como camelĆ“. “Trabalhei em vĆ”rias ruas da cidade.” Mas tudo era muito difĆcil, atĆ© porque exigia que as mercadorias (vĆ”rios tipos de bijuterias) fossem compradas no Rio de Janeiro. “Aqui nĆ£o era CalƧadĆ£o, era, simplesmente, uma rua. Cheguei a trabalhar na frente do CafĆ© Apollo, vendendo bilhetes de loteria. Depois vim parar aqui”, acrescenta. Quando chegou, o lugar jĆ” havia se transformado em CalƧadĆ£o, e muitas mudanƧas ainda viriam a acontecer. Nesse momento da conversa, um passante lhe pergunta sobre sua aposta para o Campeonato Brasileiro. SebastiĆ£o tornou-se um reconhecido torcedor. “Gosto mesmo, pura e exclusivamente, do Flamengo e do Tupi”, diz ele, que jĆ” foi ao estĆ”dio, mas realizaĆ§Ć£o, mesmo, foi conhecer o mais famoso campo do paĆs. “Sonho?! Um lugar que eu quis ir foi o Rio de Janeiro, que jĆ” conheci. Assisti a jogo no MaracanĆ£, no campo de Bangu, em Volta Redonda”, conta.
A famĆlia da Halfeld
Enquanto a vida lhe impĆ“s limitaƧƵes, transpostas dia apĆ³s dia, a Halfeld lhe apresentou Ć s mĆ£os que nĆ£o tem. “Todos me ajudam muito. Um consegue uma Ć”gua, outro me oferece cafĆ©, e todos conversam comigo. A amizade aqui Ć© muito grande”, emociona-se. SebastiĆ£o guarda seu banco e sua caixinha na loja Arpel, e uma moƧa que trabalha nas redondezas lhe ajuda com as refeiƧƵes. “O almoƧo, eu trago de casa, ela esquenta e pƵe na minha boca”, explica. Em casa, ele conta com a ajuda da esposa Benedita, com quem vive, ao lado de um enteado e do filho dele.
“Na empresa Ansal, que faz o Borborema e o Progresso, tinha um motorista, e nos tornamos muito amigos. Ele morava no Bairro SĆ£o Benedito e me chamou para passear na casa dele. LĆ” fiquei conhecendo aquela que se tornou minha esposa”, responde Ć pergunta sobre a forma como conheceu a mulher, hĆ” mais de 30 anos. Aposentado com apenas um salĆ”rio, e com Benedita doente, ele complementa sua renda com a caixinha, mas vĆŖ nela algo muito maior. “Para mim, considero como uma distraĆ§Ć£o. Eu aqui, como estou conversando contigo, falo com outras pessoas. Tenho muitas amizades. Essa caixinha me trouxe amigos”, diz sorrindo. Levanto-me e agradeƧo pelos dois dedos de prosa. Muito prazer, SebastiĆ£o!, emociono-me. Ele me devolve o gesto dizendo: “Viu como faƧo amigos?! Acabo de fazer mais um!”.