Um grito de ajuda incômodo

A adolescência é um período de transição intenso, não raro marcado por uma série de desconfortos. O conjunto de dedos apontados, olhares debochados e risos inutilmente disfarçados, comentários cruéis e fofocas, entre outras ações podem deixar marcas profundas, que farão parte do indivíduo por toda a vida, se não tratadas da maneira correta. Desde que a palavra bullying começou a ser empregada, muitos dos alvos desses ataques começaram a entender melhor o que passaram – e ganharam um termo para nomear esse processo, que pela falta de um definidor parecia ainda mais invisível.
Os efeitos dessas ações tornam próxima a narrativa da série “13 reasons why” (“Os 13 porquês”), adaptação do livro homônimo do norte-americano Jay Asher, mobilizando espectadores a comentarem sobre suas histórias nas redes sociais e provocando divergências entre especialistas. Disponível na Netflix desde o dia 31 de março, a série alcançou ampla repercussão, tratando temas delicados, como bullying, suicídio, estupro e solidão. A primeira temporada do seriado é focada na história de Hannah Baker (Katherine Langford), uma jovem que deixa 13 gravações em sete fitas cassetes. Em cada um dos lados, há um nome, ou um porquê, explicando os motivos que a levaram a tomar a decisão pelo suicídio. A coleção de fitas, com um mapa que contém locais marcados como importantes para a narrativa, chega embrulhada em uma caixa de sapatos para Clay Jensen (Dylan Minnette), um rapaz tímido que sentia atração pela garota.
As gravações deixam ainda mais perguntas para Jensen. Ele mergulha nas dores de Hannah e começa a buscar os locais indicados no mapa, passando pelas ações de vários colegas da escola em que ambos estudavam. Em vários momentos a série mostra a dificuldade de lidar com os problemas apontados pela adolescente, não só dos donos dos nomes enumerados por ela, mas também dos pais e da escola.
Polêmica nas redes
O impacto da série aparece com mais força nas redes sociais, em que inúmeros relatos têm sido compartilhados em função da temática da produção. Enquanto muitos dizem ter sido sensibilizados sobre a importância de conscientização sobre o tema, fazendo um exame mental sobre as próprias atitudes, há também quem critique a abordagem, dizendo que é perigosa a exposição do tema sem aprofundamento.
O professor de cinema da Faculdade de Comunicação Social da UFJF, Nilson Alvarenga, chama atenção para o modo de produção da série, que incorpora as mídias sociais. “Ela cria uma espécie de intermidialidade, que não afeta a linguagem, mas interfere no tema. “13 reasons why não é necessariamente uma trama nova. Ela foi publicada há pelo menos dez anos, e, nesse momento, o assunto eclode de uma forma mais forte do que quando o livro foi escrito. Essa noção de urgência de tratar o tema acontece, justamente, pela vivacidade que ele tem nas redes sociais”.
Nilson explica que os assuntos entram em um circuito de retroalimentação, ou seja, trabalham temas que eram considerados tabus e se inserem em um contexto de debate que circula, e o introjetam novamente nas redes. É um modelo de consumo diferente. Há a disponibilidade de um percurso diferente. “O espectador pode assistir o produto inteiro, vai para as redes sociais, discute e depois reassiste o material. Há um potencial nesse movimento, de criar espectadores mais críticos. Não no sentido de avaliar melhor um conteúdo, mas com maior potencial crítico para relativizar melhor uma opinião sobre o que viu”.
O sociólogo e cientista político Rudá Ricci concorda que o formato das séries permite que as pessoas dominem o produto. Mas o impacto causado pela produção não é um fenômeno isolado, faz parte de uma reação em cadeia. Nesse contexto, os mecanismos de fuga são individuais, e é perigoso universalizá-los, observa ele. É preciso considerar os pedidos de socorro, é preciso incentivar a ideia de que as pessoas não vivem só para elas, mas para o próximo também. “Tem um provérbio indiano, que diz; ‘Quem planta tâmaras, não colhe tâmaras’. Elas demoram mais de 80 anos para dar frutos. Diante disso, temos que pensar o que vamos deixar para o outro”, completa.
Falta distanciamento da realidade

Entre as críticas feitas à produção, está a forma direta e sem escapatória na qual a protagonista se encontra. “O tratamento literário desse tipo de assunto, para que chegue às massas, precisa de muitos cuidados”, afirma a doutora em psicanálise Andréia Stenner, professora de psicologia do Centro Universitário Estácio de Sá Juiz de Fora. De acordo com ela, a série peca por não dar o distanciamento necessário, causando uma identificação imediata com a personagem central da trama. “Não melhora nada, não traz um debate sério como deveria ser feito.”
A situação acaba atingindo, segundo Andréia, quem é potencialmente mais vulnerável. “A série é ruim do ponto de vista cinematográfico. Tem uma dramaturgia pobre, por vezes é maniqueísta. É irresponsável, porque alimenta uma fantasia muito perigosa: a do suicídio como vingança”, avalia. Para ela, falta reforçar que se trata de uma ficção, para que essas pessoas não misturem a história com a realidade.
“Se o adolescente decidir por assistir ’13 reasons why’ deve ser acompanhado pelos pais e ter espaço aberto para o diálogo. Há outros filmes que trabalham com essas temáticas de forma interessante, como ‘As vantagens de ser invisível’, ‘As Virgens Suicidas’, o próprio documentário ‘Bullying’, entre outros.” Ela reforça que as discussões sobre o tema precisam acontecer mais, principalmente em espaços como as universidades e centros de formação, para gerar políticas públicas. “A série se insere em um microssistema e não faz esse link em nenhum momento. Deixa tudo do pessoal no individual, por isso é perigosa”, acrescenta.
Quebrando o tabu
Guilherme Henrique Faria do Amaral, presidente da Associação Psiquiátrica de Juiz de Fora (APJF) e professor da Suprema e da Unipac, afirma que é preciso quebrar o receio que há em tocar no assunto suicídio. “Muita gente pensa que falar a palavra vai estimular as pessoas a praticarem o autoextermínio, e não é assim que acontece. Acredito que a intenção da série seja, justamente, orientar a população a pedir ajuda. Falar sobre isso faz com que familiares e amigos saibam como ajudar. Ela chama a atenção para a necessidade de ter uma sociedade preparada para contribuir nesses momentos.”
Amaral considera que “13 reasons why” é uma discussão válida. “De acordo com o Centro de Valorização da Vida (CVV), quase triplicou o número de ligações em busca de orientação ou apoio. Em pleno século XXI, ainda temos problemas como estupro e bullying, que tomam uma dimensão maior na adolescência, podendo criar traumas enormes. Antes, tínhamos o valentão que ameaçava e batia nos outros alunos, a vítima ia para casa e encontrava um lugar seguro. Com a internet, o bullying acompanha a pessoa o tempo todo, mesmo em casa. É algo que aparece com frequência nos consultórios.”
Pais, amigos, parentes, professores também devem se manter atentos a sinais de mudanças de comportamento e de personalidade, alerta Amaral. “O autoextermínio é a segunda maior causa de morte entre jovens. Precisamos amadurecer socialmente e resolver essas questões, tomando alguma atitude. Um gesto de carinho, de acolhimento, que a personagem da série não teve, pode dar abertura necessária para quem sofre em silêncio. Esse pode ser o caminho que a salve.”
É importante lembrar que a produção emite alertas diante dos episódios com cenas consideradas mais pesadas, e a Netflix tem divulgado que há um prolongamento da série de 30 minutos, contendo entrevistas com os atores da série, falando sobre os temas tratados, além de ter lançado o site (13reasonswhy.info), que indica o telefone 141 e o site do Centro de Valorização da Vida (cvv.org), caso o espectador precise de ajuda.