‘Sonhos não envelhecem’: quando o que começou na infância constrói o futuro

Tribuna entrevista atriz, jornalista, escritora e cantora que enfrentaram desafios e pressões da sociedade por confiarem em seus sonhos de infância


Por Elisabetta Mazocoli

14/10/2025 às 06h49- Atualizada 14/10/2025 às 14h46

Uma brincadeira de criança que vira profissão. O desejo reprimido que transforma a vida das gerações seguintes. A descoberta responsável por mudar toda a trajetória que vem em seguida. Tudo isso pode acontecer quando menos se espera, em momentos aparentemente desimportantes, mas que permanecem na memória. Quando Milton Nascimento canta, com o Clube da Esquina, as palavras “Porque se chamavam homens/ Também se chamavam sonhos/ E sonhos não envelhecem”, ele fala do que é profundamente humano, da descoberta de um desejo que irá acompanhar a vida inteira e que se torna a identidade de quem existe. Neste Mês das Crianças, é o que a Tribuna busca lembrar: que toda pessoa tem uma criança interior responsável por sua trajetória. E que, em muitos casos, deixar que ela venha à tona é a melhor escolha para construir o futuro.

Os primeiros passos de uma atriz

Atriz Pri Helena
Pri Helena também está em cartaz com a peça “Doce árido” (Foto: Divulgação)

Pri Helena tem 33 anos e exibe em seu currículo papéis no filme premiado ao Oscar “Ainda estou aqui” e na novela da Globo “Volta por cima”. Mas ela já foi uma menina de 11 anos, que entrou em um projeto social de Juiz de Fora para fazer teatro. Passava boa parte de seu tempo na frente do espelho, fazendo caras e bocas e imitando as personagens que via na televisão. Inventava histórias com miniaturas e o próprio corpo. Teve até gente que tentou tirar vantagem, naquela época, prometendo cursos que a fariam conhecer os estúdios da Globo — o que só aconteceu muitos anos depois. Mas não é isso que importa.  Só lembra de si mesma, desde que se entende como gente, com a alma de atriz: “Desde que comecei, nunca parei de fazer teatro. É um sonho que só fui capaz de realizar porque fui uma criança que estava sonhando com isso.”

Mesmo com a virada que a sua carreira teve com esses dois trabalhos de destaque, ela reconhece que a profissão é inconstante e sem muita segurança. “Tem dia que a gente pensa em desistir e fazer um concurso público”, diz. Mas ao mesmo tempo, não acredita que seria realmente capaz de desistir do sonho de ser atriz, talvez nem mesmo se essas oportunidades não tivessem aparecido. “Acho que os sonhos são tão fortes e potentes, que eles conseguem mover montanhas. Eu não conseguiria desistir do meu trabalho, porque ele faz tão parte de mim que é indissociável”, afirma. Depois de já ter realizado o que só podia imaginar quando criança, ela também entende que trajetórias diversas são possíveis, e que sua área tem se aberto para caminhos que fogem da centralidade Rio-São Paulo e que valorizam talentos do teatro. É o que vem acontecendo: “Quero continuar trabalhando, exercitando minha criança interior, poder continuar contando histórias e fazendo trabalhos sobre mulheres fortes, personagens que transformem e atravessem as pessoas. Esse é meu sonho de criança e de adulta.”

Correspondente do ‘Jornal Destak’  

sonhos crianças carol leonel
Carolina Leonel e a pequena redação do Jornal Destak (Foto: Arquivo pessoal)

“Fiquei pensando no que motiva as pessoas a sonharem ser alguém, ter uma profissão, realizar alguma coisa… Pra mim, faz muito sentido pensar que os sonhos partem de alguma coisa que já vivemos”, reflete Carolina Leonel, 30, editora da Tribuna. Para ela, o sonho de ser jornalista veio de uma atividade escolar, que acabou revelando mais sobre a sua criação, seus gostos e seus desejos, de uma forma que permaneceu com ela e moldou sua trajetória. Tudo começou, quando ela tinha por volta de 9 anos, e a escola propôs criar um jornal falado. Sua turma inventou o “Jornal Destak”, “com k no final, pra ficar mais chique”, com quadros locais de Itajubá e nacionais. Sua mãe, Rosana, ajudou em todo o processo. “Ela não tem formação na área de literatura nem jornalística, mas sempre foi uma leitora muito ávida. E ela passou isso para os três filhos, acho que principalmente pra mim.”

Nessa época, ela também descobriu um dos livros que mais a influenciou, o “Para gostar de ler – Volume 2”, com crônicas de Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Foi algo que levou até para o jornal. “A professora e o diretor amaram e propuseram que a gente apresentasse para a escola inteira. Nessa apresentação, fizemos uma edição especial, com entrevista com o professor do coral, lemos as notícias, tinha um quadro de receitas e também de literatura, que eu mais gostava”, relembra. Essa experiência permaneceu em sua memória e, na hora do vestibular, ela continuou com a preferência pelo jornalismo, agora com a ideia de que podia mudar o mundo. “Junto com esse sonho, também tinha a vontade de me tornar independente, ser dona do meu próprio nariz, ter meu canto e me resolver”, conta, sobre o processo de se mudar aos 18 anos para fazer faculdade e percorrer os 300 quilômetros que distanciam Itajubá de Juiz de Fora. Hoje, o sentimento é de que valeu a pena. “Me sinto realizada. Tenho muito ainda o que conquistar, os sonhos nunca envelhecem por isso, porque mesmo quando os sonhos são realizados, eles não ficam pra trás, eles não acabam. Eles geram novas coisas.”

Escrevendo por duas

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Em 2015, Ana Paula lançava “O ter e o ser” ao lado da avó (Foto: Arquivo pessoal)

Ana Paula Torquato não sonhava, quando criança, em virar escritora. O sonho que aparece nas páginas de seus livros é anterior ao seu: vem de sua avó, Izabel Rosa da Silva. “Ela sempre gostou de me contar histórias da infância dela, me disse que tinha o sonho de aprender a ler e escrever, mas tinha que trabalhar na roça, e na família dela o pai só permitia que os homens aprendessem”, relembra. Sua avó fez esse pedido aos 5 anos, e escutou que não podia. Depois, aos 12, ouviu “não” de novo, “para não escrever carta para namorado”. E, mais tarde, quando se casou, escutou outro “não” da vida, quando perdeu o marido e precisou criar os filhos sozinha, sem tempo para se dedicar à própria educação. Foi só aos 60 que pôde aprender. “Ela concluiu o ensino fundamental e realizou esse sonho de infância dela. Eu transformei isso tudo em história”, conta a escritora.

Em 2015, Ana publicou seu primeiro livro, “O ter e o ser”, que continha um poema dedicado à história da sua avó, chamado de “A força do amanhecer”. “Ela ficou muito emocionada, porque viu que a história dela, que achava que não tinha significado nenhum, podia inspirar tantas pessoas.” Sua avó faleceu em 2023, aos 85 anos, mas suas histórias continuam chegando até mais pessoas. Inclusive, nesta semana, o e-book do livro mais recente de Ana Paula, “O existir e a existência”, está disponível de maneira gratuita na Amazon para “honrar sua criança interior”. “Toda vez que escrevo busco fazer com que as pessoas se sintam transformadas e tocadas. Sempre que tenho a oportunidade conto essa história da minha avó”.

Uma voz que ecoa

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Rosa sempre tenta incentivar a neta, Emilly, que já mostra o gosto pela arte (Foto: Arquivo pessoal)

Quem passa pela Rua Halfeld, no Centro, provavelmente já ouviu Rosa Morena cantando animada os clássicos da MPB para quem estivesse passando. O vozeirão dela fazia com que se destacasse desde a infância, na escola católica em que estudava e em cujo coral ela cantava. Mas uma situação a marcou de uma forma diferente, e fez com que ela percebesse, ainda muito nova, que não era só seu talento ou sua vontade que iriam importar. As oportunidades eram, e ainda são, muito desiguais. “Ensaiei mais de um mês para coroar a Nossa Senhora na escola, mas as beatas não deixaram porque eu sou negra, falaram que tinha que ser ‘uma mais clara’. Eu fiquei tão triste com aquilo, não esqueço. Cresci, mas não sai da minha cabeça”, conta. Hoje, aos 60 anos, ela reconhece que foram muitas as barreiras que fizeram com que seu caminho na arte fosse mais difícil, mas ela fez o possível para continuar acreditando.

Atualmente, Rosa está em Lavras, junto com a família, para passar mais tempo com os netos — uma delas, Emilly, já mostra esse apreço pela arte, assim como ela. Uma incentiva a outra. “A gente não pode viver só de sonhos, tem que ter uma realidade. Precisamos de fé e esperança para colocar na prática.” Ela destaca a importância de a chamarem para apresentações e de valorizarem o trabalho que realiza na rua. Continua vindo para Juiz de Fora com frequência para se apresentar e grava vídeos seus, em casa, para que sua voz chegue a mais gente. “Eu fui uma criança muito esperta, muito alegre, independente das coisas desagradáveis que já aconteceram comigo. Penso que as crianças são a esperança. Essas que querem conquistar, crescer e ver um mundo melhor, menos injusto, são as que vão trazer mudança”, diz.

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