“Doce árido” estreia em Juiz de Fora com homenagem à força das mulheres do campo e à mineiridade
Doce de leite, memória e resistência costuram uma narrativa sobre afeto e tradição

Com a mineiridade em cena, o espetáculo “Doce árido” estreia nesta sexta-feira (10), às 20h, na Praça CEU, em Benfica, na Zona Norte de Juiz de Fora. Os ingressos estão à venda pelo Sympla. Escrito e dirigido por Tairone Vale, a peça reúne Pri Helena, Rebeca Figueiredo e Layla Paganini no elenco.
Apresentando três gerações de uma mesma família formada por mulheres, “Doce árido” retrata o interior mineiro e a vida no campo em suas diversas faces. Entre a produção artesanal do doce de leite, o risco de um parto, a preocupação com a escassez e a promessa de uma encomenda capaz de mudar suas vidas, mãe, filha e avó se equilibram entre o peso da tradição e o desejo de liberdade, enquanto o tempo corre implacável contra elas.
Escrito após uma viagem ao deserto do Atacama, o texto ganha palco depois de 12 anos guardado. Segundo Tairone Vale, a experiência foi marcante por revelar de perto a realidade dos povos latino-americanos. Ao longo do trajeto, ele observou muitas mulheres sozinhas sendo chefes de família. Essa presença feminina forte e resiliente, afirma, sempre chamou sua atenção por refletir uma característica profunda das culturas brasileira e latino-americana: a de mulheres que permanecem e sustentam tudo, enquanto muitos homens deixam o lar, não retornam ou morrem, fazendo com que gerações de mulheres sigam assumindo o papel de base da família.
“A presença das matriarcas sempre foi muito forte na minha formação, no meu convívio, na minha infância. Talvez eu nem tivesse consciência de quanto isso influenciou o texto. Fui percebendo o quanto há da minha formação, da minha ascendência nessas palavras dessas mulheres que me formaram com sua resiliência, com seu exemplo, com essa solidão de ter que resolver tudo”, reflete.
Da roça ao palco, heranças de afeto
Mantendo o vínculo com suas origens, o autor escolheu o interior de Minas Gerais como cenário da peça, em homenagem às tradições passadas de mãe para filha. O Atacama se transformou em Minas, e o fio condutor do espetáculo é a iguaria que marca Tairone: o doce de leite.
“A roça continua sendo o ponto de encontro da minha família, e o doce de leite acaba sendo o grande fio condutor. É como se ele fosse o cordão umbilical que une os filhos, netos, bisnetos e tataranetos da minha avó”, explica.
Embora se reconheça atravessada pelas histórias retratadas na peça, a atriz Pri Helena destaca a importância de dar visibilidade às narrativas das mulheres do campo. Ela ressalta que o espetáculo não pretende representar todas as experiências femininas, mas, sim, contar as histórias das mulheres que vivem e resistem no meio rural.
“Foi muito legal descaracterizar o texto que nasceu em 2013 e atualizá-lo com pautas importantes e com a mineiridade. Transformamos o universo do Atacama em Minas Gerais, e isso atravessa todo o elenco e a direção, porque viemos de famílias do interior do estado.”
A atriz relembra o período de imersão em Leopoldina, a 97 quilômetros de Juiz de Fora, quando acompanhou de perto a produção do doce de leite e conviveu com mulheres da região. Essa vivência, conta, reforçou sua percepção sobre a invisibilidade das mulheres do interior de Minas. Segundo ela, muitas delas acabam esquecidas até mesmo pela arte, que raramente volta o olhar para esse recorte social e cultural.
“Todos os trabalhos que faço me sensibilizam em algumas partes do mundo social, e com ‘Doce árido’ não é diferente. Me aguça a empatia e o olhar para outras realidades. Acho que assim acabamos comparando facilidades, privilégios e dando valor a outras coisas.”
Entre laços e ausências

Pri destaca que, mais do que apreciar o sabor do doce de leite sem conhecer sua origem, é preciso compreender os laços afetivos, históricos e amorosos que envolvem seu preparo. Para ela, o doce de leite feito no interior de Minas é uma tradição passada de geração em geração, um saber que precisa ser seguido à risca. “É bonito perceber como essa produção carrega um caráter familiar, tanto na forma de fazer quanto nas relações que a sustentam”, afirma.
Atravessada por esse sentimento, a atriz observa semelhanças entre sua vida e a da personagem. “Essa história geracional me marca, pois somos feitos dessa ancestralidade. Eu vivo essa relação muito forte: somos eu, minha mãe e minha avó. Vejo muito que o que trazemos nessa peça é a tradição, o que é passado de mãe pra filha, os fardos também. Essa peça me fez refletir sobre muitas coisas que carrego delas comigo. Comecei a olhar com mais atenção e curiosidade.”
Além dos privilégios e das semelhanças, outras identificações surgiram ao longo do processo. Para Pri, “Doce árido” é um espetáculo sobre a resistência das mulheres do campo e também sobre a solidão que marca suas trajetórias.
“O que mais me amedronta no mundo é a solidão. O que mais me dá medo quando penso no futuro é ficar sozinha, sem amor, sem pessoas. ‘Doce árido’ traz essa solidão silenciosa que acomete as mulheres, solidões, às vezes, acompanhadas de vários tipos. Acho que comecei a ter medo de outros tipos de solidão.”
O processo como parte da arte
Apesar da animação com a estreia, ambos reconhecem os desafios que marcaram o processo de criação da peça. Da revisão do texto à montagem e à escolha do local de apresentação, cada etapa exigiu dedicação e cuidado.
Para Pri, revisitar o texto foi essencial. Ela observa que a sociedade mudou muito ao longo dos anos, assim como as pautas em debate. Por se tratar de uma obra escrita por um homem sobre três gerações de mulheres, o grupo identificou diversas problemáticas durante a releitura tanto pela autoria masculina, quanto pelo tempo decorrido desde sua criação. Segundo ela, muitos trechos precisaram ser revistos, já que certas expressões e abordagens não se adequam mais ao contexto atual.
Tairone, por sua vez, explica que um dos principais desafios foi lidar com a estrutura linear do texto. “Trata-se de uma narrativa simples e direta, com poucos elementos simbólicos. O desafio foi descobrir o que existe de simbólico ali e há muito, entender as camadas escondidas sob essa superfície tão linear, tão fácil de ser absorvida.”
A atriz acrescenta que outro obstáculo foi conciliar as agendas da equipe, o que exigiu flexibilidade e comprometimento coletivo. Além disso, a montagem também representou um desafio à parte.
“Apostamos em um cenário bastante arriscado, que se move constantemente. Essa instabilidade das relações está presente ali, na casa, nos detalhes, o tempo todo”, explica Tairone.
Arte além do Centro
A atriz ressalta a importância de realizar o trabalho em Juiz de Fora, cidade onde nasceu e com a qual mantém forte vínculo afetivo. Ela afirma que retornar ao município com uma peça em que acredita profundamente tem sido uma experiência transformadora, capaz de despertá-la em diferentes dimensões pessoais e artísticas. Pri também destaca o significado de apresentar o espetáculo na Praça CEU, na Zona Norte, ressaltando que descentralizar a produção cultural é essencial para ampliar o acesso à arte e levar o teatro para além do Centro da cidade.
Ao refletir sobre o desafio de descentralizar o teatro, a atriz explica que o movimento envolve várias camadas. Segundo ela, é fundamental que os artistas levem suas obras para outras regiões mas isso só é possível com o apoio de políticas públicas e também da iniciativa privada.
Pri defende que o poder público, as empresas e a própria classe artística precisam atuar em conjunto para fortalecer o acesso à cultura fora do eixo central. Ela observa que levar público para a Zona Norte exige um trabalho contínuo de formação de plateia, o que demanda tempo, incentivo e estrutura. “Não é apenas montar o espetáculo. É necessário criar um movimento coletivo, um esforço conjunto para descentralizar de fato”, pontua.
A atriz também reflete sobre a realidade cultural de Juiz de Fora, cidade que, apesar de ter cerca de 600 mil habitantes, ainda carece de incentivos e espaços acessíveis para a produção artística local. Ela observa que o município é um verdadeiro celeiro de talentos, com artistas impecáveis em diversas áreas, mas que enfrenta dificuldades estruturais.
Pri destaca a ausência de apoio privado aos grupos teatrais e a escassez de locais adequados para ensaios e apresentações. Ela reconhece a importância da Lei Murilo Mendes, mas questiona o que mais pode ser feito para fomentar o setor, facilitar o acesso aos espaços culturais e estimular parcerias entre empresas e artistas. “Há muitas possibilidades de incentivo, mas ainda se faz muito pouco. Ser artista em Juiz de Fora é um ato de resistência”, afirma.
Tairone reforça a proposta de aproximar a arte dos territórios periféricos, explicando que a escolha da Praça CEU surgiu justamente desse propósito. Para ele, apresentar a peça em um espaço público e democrático é uma forma de reafirmar que a arte e suas mensagens precisam alcançar diferentes públicos e regiões da cidade.
Contemplado pelo edital Aldir Blanc, o espetáculo contará, nas apresentações dos dias 12 e 19, com tradução simultânea em Libras e acompanhamento de um profissional de acessibilidade e inclusão. Após a última sessão, no dia 19, o público poderá participar de uma roda de conversa com o elenco e a equipe, que contará com a presença da psicóloga Ludmila Andrade.
*Estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli
Serviço:
“Doce árido”
- Datas: 10, 11, 12, 17, 18 e 19 de outubro
- Local: Anfiteatro da Praça CEU (Av. Presidente Juscelino Kubitschek, 5.899 – Benfica)
- Horários: Sextas e sábados às 20h; e domingos às 19h (com tradução em Libras)
- Classificação: 14 anos