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Monsenhor Gustavo Freire poderia ganhar explicação menos óbvia, enquanto Av. Presidente Itamar Franco não diz sobre o homenageado
Ao parar no trânsito, resolvi ler a placa da rua pela qual passo constantemente: Monsenhor Gustavo Freire, no Bairro São Mateus. Nunca me atinei para aquele personagem, nem tampouco para quem foi Olegário Maciel e outros tantos que povoam nosso dia a dia de maneira absolutamente silenciosa. Para minha decepção, segundo a placa, Monsenhor Gustavo Freire não passa de um “sacerdote com grau de monsenhor”. Óbvio. E injusto. Gustavo Coimbra Freire chegou à Igreja de São Mateus em 1925, tomando para si a missão de transformar a pequena capela, que já não comportava o crescente número de fiéis num bairro cada dia mais populoso, em uma igreja suntuosa. O projeto de 1933, assinado por José Ferreira de Morais Filho, colocou de pé, um gigantesco prédio com arquitetura greco-romana, tida como “pagã”, interior em formato de cruz latina e coloração bastante escurecida. Tomada pela certeza de que era um projeto importante, segundo os discursos incisivos de um monsenhor que viu ali a grande obra de sua vida, a vizinhança toda colaborou, e os nomes de algumas famílias constam, ainda hoje, nos vitrais do templo.
Se a homenagem ao sacerdote visava inserir o homem, por definitivo, na história da cidade, dando a ele o nome da rua que ladeia a igreja, algo restou pelo caminho. E a placa, nesse sentido, mesmo sem poder contar toda a sua trajetória, permitiria despertar a curiosidade. E não se trata de um caso isolado. Espalham-se pela cidade placas de endereços que não dão conta de narrar a relevância dos personagens ou fatos para os quais fazem deferência. De acordo com a assessoria da Secretaria de Transporte e Trânsito (Settra), “as denominações das placas de logradouro do município são definidas com base em pesquisa, disponibilizada pela Câmara Municipal, quando da criação da lei que regulamenta o nome da via. Esse trabalho é feito pela Settra, a partir de concessão da empresa Triligth.”
Recentemente, todas as leis que denominam logradouros públicos, surgidas de projetos de vereadores, indicam a identificação que deverá constar abaixo dos nomes. Segundo a lei 9.504, de 1999, “a denominação de Logradouros Públicos no território do Município terá, abaixo desta, os títulos e qualificações quando se tratar de pessoas físicas, e uma identificação sucinta nos demais casos.” Nenhuma outra indicação sobre tal identificação é dada. Em vigor desde o dia 16 de abril, a lei que intitula a rua ligando os bairros Estrela Sul e Santa Cecília, em homenagem a Fuad Gabriel Yazbeck, determina: “Deverá constar abaixo da denominação oficial do logradouro público a seguinte identificação, nos termos da Lei Municipal n. 9.504, de 26 de maio de 1999: ‘Economista'”. Contudo, Fuad também se notabilizou como professor e escritor. Autor de “O segundo degredado” e “O barbeiro de Vila Rica”, ele ganhou visibilidade nacional empunhando a pena.
Universal x singular
Em seu livro “Aventura das cidades”, Janice Caiafa, antropóloga e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, discute o desafio de ocupar o espaço público diante de um complexo sistema que inclui a indicação dos lugares pelos quais passamos. “Um número não particulariza tanto quanto um nome. Uma rua com um número não carrega nenhum sentido que a defina além de seu lugar numa série. O nome próprio geralmente também não está atado tão seguramente a um sentido quanto os nomes comuns. Um nome próprio, contudo, ainda está preso a seu lugar numa língua”, confronta.
Dando o exemplo de Manhattan e sua exata classificação numérica que proporciona uma fácil localização, a estudiosa ressalta a questão da tradução, que impede a leitura universal dos nomes. “É fato que essas denominações frequentemente abandonam suas origens nobres e tornam-se palavras quaisquer para os transeuntes”, destaca. “Essa acessibilidade diz respeito também à ocupação concreta desses lugares. Ao mesmo tempo que Nova York é ‘pronunciável’, ela é também trilhável, ocupável”, completa Janice.
No programa “Conheça a sua cidade”, especial de aniversário de Juiz de Fora veiculado na rádio CBN/Juiz de Fora, o pesquisador Vanderlei Tomaz resgata o passado local através de 300 endereços, entre ruas, avenidas, praças, galerias e pontes, mostrando a força de registro que tais identificações podem ter. “Acho interessante e importante dar nome próprio para os logradouros. Isso torna a cidade mais humana e faz com que certas pessoas sejam eternizadas. Mas é urgente mostrar quem são elas. É impossível alcançar todos os endereços e todos os moradores, mas esse programa é uma semente para que esse conhecimento se torne um hábito”, pontua Tomaz. Conforme a assessoria de comunicação da Settra, a revisão das placas já está sendo feita.
Para Tomaz, é preciso que esses personagens sejam popularizados, dando sentido à denominações. “Sugiro que o próprio site da Câmara ou da Prefeitura possam ter um canal para isso. Na publicação dessas leis, deveria haver um parágrafo com a biografia dessas pessoas, justificando a escolha e apresentando”, destaca o pesquisador, que tem como principais referências as obras de Paulino de Oliveira e Dormevilly Nóbrega, além dos livros “Salvo, erro ou omissão” e “Folhas soltas”, de José Procópio Teixeira Filho. Há mais de 30 anos pesquisando, Vanderlei Tomaz já identificou a trajetória de todos os homens que dão nome às ruas de Benfica, incluindo a Rua Dias de Gouveia, onde nasceu. “Ele foi um deputado constituinte do Império”, conta.
Entre as muitas curiosidades descobertas ao longo dos anos, o pesquisador se deparou com gestos de extrema justiça, como no Bairro Vila Esperança. “Lá tem uma rua com o nome de José Alves de Castro. Ninguém nunca ouviu falar dele, mas foi um jornalista que conseguiu fazer uma publicação quinzenal, chamada ‘O pioneiro’, de 1934 a 1936, em Benfica”, ressalta. Na Zona Norte, no Bairro Jardim Santa Bárbara, Tomaz destaca, também, a presença de uma rua pequenina chamada Pedro Nava. As mudanças sofridas com o tempo também chamam a atenção. “A Avenida Governador Valadares, por exemplo, se chamava Berlim. Mas quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, o nome foi alterado. Outra curiosidade é que Vitorino Braga era, anteriormente, uma rua, que de tão relevante passou a dar título ao bairro”, acrescenta ele.
Por trás dos endereços, na verdade, mora a história de pessoas conhecidas – algumas bem famosas -, e outras anônimas. Narrativas individuais que alinhavam essa trama coletiva chamada cidade. Enredos que não cabem numa placa, porém, não podem ser ignorados ou vilipendiados. Merecem fazer parte das vidas.