Fazer ou encomendar


Por RAPHAELA RAMOS

11/03/2012 às 06h00

A série "Spot paintings", com mais de mil peças concebidas entre 1986 e 2011, ocupou recentemente as 11 galerias do grupo Gagosian. As famosas bolinhas coloridas do inglês Damien Hirst puderam ser vistas, nas suas incontáveis versões, em Nova York, Beverly Hills, Londres, Paris, Roma, Genebra, Atenas e Hong Kong. Uma retrospectiva de 25 anos de carreira. Mas isso não quer dizer que Hirst tenha pintado, uma a uma, todas as esferas vibrantes – uma alusão a produtos e elementos químicos. O artista conta com um batalhão de assistentes. Em outro projeto, ele recorreu a profissionais inusitados, como museólogos e surfistas. Afinal, como poderia, sozinho, expor um tubarão-tigre de cinco metros de comprimento em um tanque de formol? Incitada pela trajetória do mais rico homem das artes, uma hipótese rodeia as conversas sobre produção contemporânea. Talvez não seja lá tão importante dominar a técnica hoje. Ao que parece, mais vale ter a ideia.

Mares desconhecidos

As noções sobre arte se modificaram bastante nas últimas seis décadas. Mas, se isso aconteceu, não teve como motivo a presença de aprendizes e ajudantes, já que essas funções fazem parte da história. Assim observa Ricardo Cristofaro, artista visual e diretor do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF. "Trabalhos de grande vulto, como os de Christo e Jeanne-Claude (casal que produz instalações de arte ambiental), sempre exigiram assistência." Segundo o acadêmico, a novidade está no tipo de auxílio buscado atualmente. "Para colocar de pé sua criação, muitas vezes, o sujeito precisa se embrenhar em uma linguagem desconhecida, não propriamente artística." Um exemplo seria a exploração das novas tecnologias. Como destaca Cristofaro, o número de pessoas que navegam bem nesse mar ainda é limitado. Daí a necessidade de pedir socorro.

De acordo com o carioca Cildo Meireles, um dos artistas brasileiros mais reconhecidos hoje, é impossível se especializar em uma única área diante de universos tão plurais. "Esse é um dos prazeres do meu ofício. Posso recomeçar do zero, com novos procedimentos e materiais." Atualmente, Meireles está debruçado sobre uma proposta na qual necessita de profissionais variados. "Sempre me aliei a técnicos."

A professora da Escola de Belas Artes da UFMG, Joice Saturnino, assegura que a parceria entre artesão e artista protagoniza debate antigo. "O primeiro possui a habilidade, e o segundo, a ideia", explica. Na opinião de Joice, porém, o conhecimento do fazer influi na construção da obra. Para ela, um indivíduo que não põe a mão na massa é um criador incompleto. "É como preparar comida sem chegar à beira de um fogão." Outro que não acredita na ausência da técnica é o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, autor do livro "O enigma vazio". "O radical indo-europeu da palavra arte indica capacidade de articular. Arte não é ajuntamento, é ordenação." Meireles pondera: "a técnica é importante, mas não essencial".

O que está por trás

O valor de uma obra está na feitura ou na maneira de pensá-la? Conforme Ricardo Cristofaro, uma simples expressão não se configura como arte. O mistério se encontra na forma. E ainda no compromisso com o processo. "É preciso haver uma proposta, algo por trás." Como acrescenta o acadêmico – que prefere usar o termo tecnologia e não técnica -, todo artista deve ter o espírito "enxerido" e estar disposto a pesquisar. Cristofaro trabalha com chapas de metal e está sempre à procura de possibilidades de manipulação do material.

Para Cildo Meireles, a arte é feita de ideias. "Contando com ajudantes ou não, as obras manifestam pensamentos." Joice Saturnino ressalta, porém, o trabalho que fala por si, sem depender de contextos. "Não sou contra justificativas, mas não acho que o indivíduo precisa escrever um texto para explicar um traço sobre o papel. Traço e papel devem ter força sozinhos."

Sobre um mezanino, o paulista Vik Muniz orienta a composição das imagens tiradas do lixo. A cena, apresentada no documentário "Lixo extraordinário", suscita a questão: Muniz é o único dono do resultado final? Segundo Cristofaro, auxiliares e aprendizes estão a serviço da criação do artista, autor da ideia e das orientações. O professor do IAD Fabrício Carvalho concorda. E elucida: "mesmo com sua equipe, um só médico responde por uma cirurgia".

Por outro lado, Meireles salienta a relevância dos ajudantes, lembrando que eles materializam os projetos. Joice cita os tapeceiros responsáveis por colocar em prática os desenhos dos chamados cartonistas. São estes últimos, entretanto, que têm os nomes incluídos em catálogos. Outro exemplo: a fotógrafa norte-americana Cindy Sherman é autora de muitos registros que não foram feitos por ela. Na série "Untitled film still", ela aparece em várias fotos, dependendo de amigos e namorados para clicar o botão.

De que arte se fala?

O objeto e a imagem não são o único ponto de partida dos criadores. Como comenta Fabrício Carvalho, por vezes, são manejados dados ou situações para provocar respostas como choro e riso. "E isso pode não exigir técnica." Por conta disso, Cristofaro assinala a necessidade de se distinguir o tipo de arte – e de sociedade – para saber se o domínio das ferramentas é indispensável. Segundo o acadêmico, na chamada arte contemporânea, o artista realmente vem atuando como diretor na concepção de uma obra, ainda que saiba fazer com as próprias mãos.

Também é essencial, como frisa Cristofaro, perceber que já não se pode pensar em técnicas tradicionais: desenho, pintura, escultura etc. Essas, talvez, não sejam mais cobradas nos corredores culturais. "Trata-se de uma noção colocada em xeque a partir de movimentos como o minimalismo e o construtivismo russo. O gesto artístico deu lugar ao gesto universal, à sensação de que qualquer um faria." Carvalho menciona outra revolução: o francês Marcel Duchamp. "Ele representa o deslocamento do significado de arte." Duchamp foi o introdutor do conceito de "ready made", ou seja, a transposição de um elemento cotidiano para o campo artístico.

Em qualquer empreitada, Joice Saturnino defende a presença dos conhecimentos clássicos. "Até para abandoná-los é preciso entendê-los." Affonso Romano de Sant’Anna acrescenta: "o sofisma de Duchamp de que todos são artistas e tudo é arte não resiste à análise. Essa coisa de que o espectador é quem decide o sentido é cômodo, pois o pseudoautor joga para o outro a responsabilidade da obra".

Sucesso versus qualidade

Sobre o êxito de Damien Hirst, Ricardo Cristofaro pondera que, nem sempre, os artistas destacados nas revistas e nos museus são os melhores. "Alguns não estão no auge, mas têm mais valor." De acordo com Joice Saturnino, muito do que surge hoje talvez não chegue ao futuro por falta de energia para discussão. "O mundo imediatista quer ver tudo pronto para consumo imediato." Cristofaro completa, sinalizando que os critérios do mercado estão difusos. "Sucesso e qualidade não são, necessariamente, sinônimos", arremata.

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