Dois vencedores do Nobel de Literatura em domínio público
Obras dos escritores Sinclair Lewis e André Gide deixaram de ter a proteção de direitos autorais desde o início do ano
Escritores vencedores do Nobel de Literatura, o norte-americano Sinclair Lewis e o francês André Gide passaram a ter suas obras em domínio público desde 1º de janeiro. Os dois nomes entram para a lista de artistas cujos trabalhos deixam de ter direitos autorais assegurados a seus herdeiros no ano seguinte ao 70º aniversário de suas mortes, quando as obras (sejam livros, filmes, músicas, pinturas, esculturas) podem ser vendidas, regravadas, impressas, reescritas e reproduzidas, entre outras práticas, de forma livre e por qualquer pessoa. Além dos dois escritores, outros artistas que entraram para o domínio público vêm da Áustria: o compositor Arnold Schönberg, o escritor Hermann Broch e o filósofo e escritor Ludwig Wittgenstein.
O prazo de 70 anos de prescrição dos direitos autorais após a morte do artista surgiu com a assinatura de um acordo internacional em 1886, na Suíça, e é seguido até hoje por vários países, como o Brasil, Japão, Reino Unido e os membros da União Europeia. Em outras nações, porém, o prazo é de apenas 50 anos, casos da Nova Zelândia, Cuba e China, enquanto que na Índia o prazo é de 60 anos, e, na Colômbia, o período estipulado é de 80 anos.
Nos Estados Unidos, o que vale atualmente é uma lei aprovada em 1998: conhecida como “Lei de proteção ao Mickey Mouse”, ela estipula um prazo de 95 anos a partir do lançamento original da obra para que ela entre em domínio público. Por conta disso, o país passou por um hiato de 21 anos (até 2019) em que todas as obras seguiram protegidas por direitos autorais.
Este ano, entram em domínio público no país os trabalhos lançados em 1926, como o romance “O sol também se levanta”, de Ernest Hemingway, e os primeiros livros com os personagens Bambi, criado por Felix Saten, e Ursinho Pooh, de AA Milne, o que permite que as obras sejam usadas nas mais diversas adaptações – no caso da história com o Ursinho Pooh, o personagem Tigrão fica de fora, pois ele só aparece nos livros do urso comedor de mel a partir de 1928. Mas vale lembrar, porém, que a Disney mantém os direitos sobre as animações com os personagens.
Apesar do valor comercial ser praticamente irrisório, também entraram em domínio público nos Estados Unidos um material de valor histórico e cultural praticamente impossível de calcular: nada menos que as 400 mil primeiras gravações de som realizadas nos primórdios da tecnologia. Esse volume impressionante de registros de áudio é resultado da Lei de Modernização da Música, aprovada nos Estados Unidos em 2018. Além de regulamentar os valores mínimos a serem recebidos pelos compositores em plataformas digitais de música, a lei criou um novo padrão para os direitos autorais das primeiras gravações sonoras. Dessa forma, registros anteriores a 1923 – incluindo as primeiras gravações de jazz e do blues – entraram em domínio público, incluindo obras de nomes como Ethel Waters, Mamie Smith e The Sousa Band.
Escritores contra o fascismo e a homofobia
Entre os vencedores com o Nobel de Literatura a entrarem em domínio público em 2022, Sinclair Lewis (1885-1051) foi o primeiro norte-americano a receber o prêmio. Nascido no estado de Minnesota, ele foi um forte crítico da sociedade de seu país no período entre as duas grandes guerras mundiais. No final do século passado, sua obra perdeu espaço para nomes que foram seus contemporâneos, como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald; recentemente, porém, o romance de 1935 “Não vai acontecer aqui” (em que um político fascista e demagogo é eleito presidente dos Estados Unidos) foi “redescoberto” pelo público com a eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. O livro pode ser comprado no Brasil nas versões física e digital, assim como outras duas obras de Lewis, “Doutor Arrowsmith” e “Babbitt”.
Já o francês André Gide (1869-1951) venceu o Nobel de Literatura em 1947 e fundou a célebre Editora Gallimard, casa de nomes como o também vencedor do Nobel Albert Camus (1913-1960) e Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Homossexual assumido em uma época de forte conservadorismo, Gide tornou-se conhecido por obras que lutavam pelos direitos dos homossexuais, contra a homofobia e também pela honestidade intelectual. Entre seus trabalhos mais conhecidos – e que podem ser adquiridos em português no Brasil – estão “Córydon”, “Os moedeiros falsos”, “O imoralista” e “Os porões do Vaticano”.
Wittgenstein em domínio público
Considerado por muitos como o maior filósofo do século XX, o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) também está com sua obra em domínio público desde 1º de janeiro. Entre seus trabalhos mais importantes para o campo filosófico estão “Tractatus logico-philosophicus” e “Investigações filosóficas”.
Conterrâneo de Wittgenstein, Arnold Schönberg (1874-1951) foi um dos mais influentes compositores do século passado, tendo atuado ainda como teórico musical, professor e pintor. Além de seu trabalho com a música erudita, é o criador do dodecafonismo, um dos mais revolucionários estilos de composição criados no século XX.
E é também da Áustria outro nome importante da literatura que entrou em domínio público em 2022. Hermann Broch (1886-1951) passou a se dedicar à literatura depois dos 40 anos de idade e deixou uma pequena – porém relevante obra -, que inclui os três volumes de “Os sonâmbulos”, “A morte de Virgílio” e “A criada Zerlina” – no momento, todos estão com edição esgotada no Brasil.
Oportunidade para leitores e a indústria cultural
A cada início de ano, milhares de livros, filmes, músicas e álbuns, entre outros, entram em domínio público, porém isso não significa que toda obra que teve seus direitos autorais encerrados voltará a ser comercializada. Anos atrás, um levantamento do Congresso norte-americano apontou que apenas 2% das obras com mais de 55 anos tinham valor comercial, a despeito da qualidade artística.
Entretanto, artistas mais “comerciais” ganham um “renascimento” quando entram em domínio público. Um dos setores que mais faturam é o literário, pois qualquer editora pode publicar toda a obra de um determinado escritor quando os direitos autorais deixam de valer – ainda mais se ela tem sua relevância atualizada por causa do contexto histórico.
Foi o caso, ano passado, de George Orwell: clássicos do escritor britânico como “1984” e “A revolução dos bichos” (ou “A fazenda dos animais”, numa tradução literal do título original) ganharam novas publicações por várias editoras brasileiras, que precisaram apenas pagar pelos serviços de tradução. Hoje, é possível encontrar versões físicas dos livros por menos de R$ 10, e até por menos de R$ 2 em suas versões digitais.