Emoldurando o cientista
Setas formam um triângulo, a caneta, que se repete por todo o papel. Triângulos se reproduzem, ocupando outro papel. Desenhados num tom semelhante ao do fundo, os triângulos parecem se dissolver. Num quarto trabalho, assinado por Leonino Leão, suas formas geométricas parecem mais orgânicas que nunca, num nítido processo de investigação da forma, da cor e da técnica, que passa do nanquim para a tinta a óleo. Rumando a exaustão, suas repetições não se esgotam, mas apontam para outras possibilidades. O artista, visto em “Leonino Leão – Homenagem”, exposição em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes, revela-se cientista da arte.
Como pesquisador, viveu do ateliê e das salas de aula. Ainda que tenha integrado importantes exposições pelo país, como a Bienal Nacional de Arte de São Paulo de 1976, Leonino parecia se satisfazer com sua produção, sem esperar as justiças de um ininteligível mercado de arte. “Leonino é um caso exemplar de como um dos mais importantes artistas de sua geração (com uma atividade artística intensa e uma dedicação integral ao fazer arte) está ainda por ser descoberto pelo grande público e pelo sistema de arte. Sua preocupação principal sempre esteve ligada à obra e não à carreira”, escreveu seu parceiro de ofício e de vida, Arlindo Daibert, em texto de 1988, meses antes de Leonino despedir-se, em 1989.
Nascido no Sul de Minas na pequena Cachoeira de Minas, hoje com pouco mais de 10 mil habitantes segundo o Censo do IBGE de 2010, Leonino Felício Raymundo Leão estudou em São Paulo e Belo Horizonte com nomes de peso, como Yara Tupynambá e, em 1984, aceitou o desafio de ministrar pintura na UFJF. À cidade ele apresentou sua técnica e a importância de refletir sobre o processo. A cidade, por sua vez, apresentou-lhe Murilo Mendes, porta que o inspirou para a montagem da exposição “A nova cara do mundo”, no mesmo prédio onde hoje é aclamado (antigamente sede da reitoria da instituição). Seção mais tocante da atual mostra, o resgate de alguns dos 40 quadros exibidos na década de 1980 demonstra a genialidade de poeta das imagens.
“Gostaria de alcançar com este trabalho alguma revelação também”, diz Leonino, referindo-se ao cometa Halley, tratado por Murilo em seu texto que inspira colagens em que a repetição se faz presente e a rica paleta também. “No rabo imenso do cometa/ passa a luz, passa a poesia, todo o mundo passa!”, escreve o juiz-forano ao qual Leonino dedicou atento olhar, com trabalhos expressivos e minuciosos, como as grandes telas inspiradas na muriliana “Janela do caos”. “Um trabalho sobre o caos exige um suporte com a dimensão do que vai no poema e do que talvez seja o caos”, conta o artista em vídeo que antecede a exposição, uma das mais extensas sobre sua produção, com cerca de 80 trabalhos, a maioria deles de colecionadores particulares de Juiz de Fora, presentes de um Leonino dócil, diferente do animal que carregava no sobrenome.
‘O pintor gourmet’
Morto prematuramente, aos 40, Leonino resta nas paredes, nas memórias e nos trabalhos de uma geração que diretamente influenciou. Está na produção de Fernanda Cruzick, que de aluna tornou-se amiga. “Lembro-me que o Leo, como o chamávamos, usava muito, em sala, a palavra brincadeira. Tinha um lado lúdico muito forte”, recorda-se ela sobre o homem sempre preocupado com a técnica, com a investigação dos limites da tinta, da tela e do pincel. “Era um pintor gourmet. Ele tinha a noção dos produtos que usava e pesquisava profundamente como funcionavam”, completa a artista, afirmando a força visceral de seu grafismo, exposto em processo na exposição. Em papéis simples, Leonino escrevia o passo a passo que desejava perseguir. Projetava sua ciência até ganhar moldura.
“Leonino Leão foi meu professor de pintura, e, mais do que uma experiência de aprendizagem da linguagem pictórica, obtive, através do conhecimento e contato com seu trabalho, um sentido de liberdade expressiva, que transitava constantemente sobre diferentes processos e técnicas de criação plástica. Além de excelente pintor, Leonino possuía uma compulsão por conceber coisas, especialmente objetos, aos quais o artista dedicava uma atenção especial”, aponta o professor e coordenador do Instituto de Artes e Design da UFJF Ricardo Cristofaro, também bastante influenciado pelo autor de coloridas colagens nas quais utilizava um mesmo papel, pintando-os um a um e não adquirindo já coloridos.
“A compulsão de inventar novos brinquedos nos parece mais forte do que a aproximação de conceitos ditados pelas normas construtivas, dissecadas ‘ad nauseam’ pelos críticos e historiadores da arte. O aproveitamento do material reciclado do lixo, mesmo; a apreensão inteligente dos fragmentos do cotidiano colocados de lado; a adição da cor de maneira livre, colorindo realmente as novas invenções, transmitem aos objetos um aspecto de brinquedo ou de pequena máquina. Há um bom humor e uma vivacidade criativa que só podem nascer da espontaneidade e do descompromisso da invenção lúdica”, reverencia o artista e parceiro de Arlindo Daibert na época da exposição “Objetos do sentido”, aberta na Aliança Francesa de Juiz de Fora meses antes da morte de Leonino.
Sem tempo
Inquietante na simplicidade de desenhar dois triângulos verdes, um sobre o outro, sob um fundo em outro tom de verde, Leonino Leão fez-se gigante numa pesquisa de técnica e discurso impecáveis. Cabe questionar, no entanto, como o cientista das imagens não alcançou tamanho reconhecimento quanto seu contemporâneo Daibert. “Não deu tempo”, responde Fernanda Cruzick, lembrando-se do homem generoso e afável, do artista comprometido e dedicado, e da obra, que se agiganta, ainda mais, quando vista com o distanciamento dos anos. Construída em inspirada expografia, que redimensiona o trabalho do artista sem tirar dele a proximidade com a Juiz de Fora que o acolheu, a homenagem póstuma faz a justiça que o mercado não teve tempo de fazer, mas que os dias garantiram merecimento.
LEONINO LEÃO
Segunda-feira, do meio-dia às 18h, de terça a sexta-feira, das 9h às 18h. Até 7 de outubro
Mamm
(Rua Benjamin Constant 790 – Centro)