Suíça radicada no Brasil lança livro de poesias nesta sexta-feira

A casa. Os quartos atravessados pelo vento, a sala “com muito céu dentro”, um “perfume de laranjeira em flor” e uma poesia densa a tomar todos os cantos. “Essa casa é um relicário de vidro e verde.” A casa de Prisca Agustoni em “Hora zero” (Editora Patuá, 120 páginas) – livro que lança nesta sexta, às 20h, no Espaço Manufato -, preserva a “paixão do humano que arde sem dor”. A casa, sagrada em seus guardados, recomeça do zero após ser maculada. Como o homem, se refaz, de tempos em tempos, de gestos em gestos, de assaltos a assaltos. Profanada, como defende o escritor Iacyr Anderson Freitas no prefácio, a tal casa se abre frágil. Um caixa-forte, uma casa, um forte.
“Tentei criar um discurso de uma casa virgem quando é ocupada e, depois, quando acontece algo, como uma mácula, faz com que seja observada com outros olhos”, pontua a poeta. “O processo de habitar um lugar é interessante de ser pensado em termos artísticos. Você tem que tornar um lugar seu, mas ele nunca será só seu. Primeiro porque tem outras pessoas morando contigo e porque terá tido outros donos e terá depois de sua morte. A casa vai continuar depois de mim. Interessa-me muito como nos vemos morando em certos lugares. Esse livro me abriu para essa perspectiva, para a consciência de ocuparmos um espaço.”
“Há muita solidão, muito silêncio numa casa. Há apego e desapego. A casa é algo muito material e afetivo. Ao longo do texto, ela se transformou em um ser vivo”, comenta Prisca, dando pistas de um lugar que pode estar em diferentes endereços. Ainda que um fato biográfico lhe tenha lançado à “Hora zero”, não se trata de memórias, mas de um tema, uma casa e seus muitos cômodos (cada capítulo representa um espaço). “(Voltar-se para a biografia) é uma das chaves de leitura mais evidente, mais natural para ler o texto de uma autora. Mas ninguém fica imaginando porque Kafka virou barata. É. Conheço meu processo de criação. Ele é muito mais cerebral do que emocional”, adianta.
Um lugar para começar do zero
“Esse livro, particularmente, tem um forte teor emocional em função de um fato que não está explícito. Há outras questões ali que também me trabalham, como a mudança, as caixas de mudança. É algo que não estou fazendo, mas está na minha projeção. Pessoas mudam, não de país, mas de casas. Conheço amigos que mudaram constantemente ao longo da vida. Acho um tema interessante para se trabalhar com arte. Se eu fosse fotógrafa ou pintora, também trabalharia com isso”, comenta. “Quando se muda de casa, há muitas coisas que mudam com você. Há coisas que estão ligadas com vivências, que não têm nenhuma importância, mas tiveram, há objetos que não se reencontra mais.”
Segundo Iacyr, os poemas partem de uma casa-templo, divina, e percorrem um caminho da casa-bunker, passando pela casa-abrigo, até chegar à casa-navio (num poema, a autora diz de um casa “amarrada ao cais”). “Muitos poemas deste ‘Hora zero’ estão voltados para um cotidiano repleto de vigilância e medo, bem como para a realidade de sentir-se intimamente em guerra dentro de um ambiente urbano capaz de absorver, com kafkiana naturalidade, todas as violências do dia a dia”, escreve no prefácio o patrocinense radicado em Juiz de Fora.
Para a trajetória de Prisca, o primeiro livro de poemas publicado por uma editora de grande visibilidade, a Patuá, representa, também, sua “hora zero” na literatura brasileira. “Li há muitos anos, para um curso de pós-graduação, em que trabalho com literatura em tempos de exceção. Naquele ano abordei poetas que escreveram durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Li um livro que falava da hora zero, como se aquele fosse um momento em que se zera a história. Achei a expressão muito forte e muito interessante para um momento de virada”, conta.
“É difícil falar isto de um livro: sinto ele muito íntimo. Conseguiu ser um equilíbrio entre algo que é bastante de impulso e uma poesia mais aberta. Não gosto de falar de impulso, porque poesia de mulher costuma ser muito tratada assim. Poesia autobiográfica, que é, geralmente, o cantinho onde nós somos colocadas. Mas todo autor tem isso. Somos sujeitos intelectuais”, debate. “A intuição é fundamental, mas tem o trabalho posterior de vir burilando”, completa a professora efetiva da Faculdade de Letras da UFJF, que leciona língua e literatura italianas na graduação e, na pós-graduação, aborda poesia em tempos de exceção e literatura da diáspora, que são seus temas de pesquisa acadêmica.
‘É muito duro viver aqui’
Ao mesmo tempo que indica um novo caminho linguístico para Prisca Agustoni, com poemas menos enxutos, “Hora zero” lhe oferta uma inserção na cena, ao publicar pela Editora Patuá, sediada em São Paulo e reconhecida em importantes prêmios Brasil afora. Trata-se de um exercício de presença na vida literária de uma suíça que há 14 anos escolheu o país. Casada com o também professor e poeta Edimilson de Almeida Pereira desde 2000, Prisca, que teve seu primeiro contato com a literatura brasileira através dos textos dos poetas da geração D’Lira, de uma Juiz de Fora de 1970 e 1980, quer fortalecer o português como casa.
“Nos últimos anos, cuidei muito da minha vida literária de lá (da Suíça). Sempre fazendo coisas aqui, mas é difícil se voltar para três contextos. Escrevo em francês, italiano e português. Cuidei muito de procurar editoras lá. Agora, até para fazer justiça com minha história, estou fortemente empenhada em criar um sentido no Brasil. Não quero ser a escritora que passou biograficamente 20 anos no país e não deixou rastros literários. Esse livro é uma maneira de sentir o mundo que é ligado com aqui”, aponta ela, com diversos títulos de poesia e prosa publicados em italiano na Suíça, e dois livros de poemas em francês, o último, de 2015, finalista num importante prêmio do país europeu.
Com uma bolsa de criação ofertada pelo governo suíço, para conclusão de uma obra até 2017, Prisca planeja, ainda, lançar outros livros em português, além de escrever, atualmente, um romance na língua que a acolheu. Ainda, tem traduzido, com grande frequência, poetas daqui para lá. “Especificamente mineiros. Recentemente, fiz uma antologia de dez poetas mineiros para Portugal. E faço o inverso, também, traduzindo poetas italianos para revistas daqui”, conta ela, que selecionou da obra do mineiro de Caxambu Eustáquio Gorgone de Oliveira um poema para lhe servir de epígrafe no novo título.
“Tenho uma queda pela obra do Eustáquio. Meu autor de cabeceira. É uma das grandes injustiças, por enquanto, da literatura brasileira. Da segunda metade do século XX, ou dos anos 1980 para cá, ele é o Drummond que não descobriram. Tenho, pela obra dele, uma admiração certeira”, elogia ela. “Quando preciso encontrar um texto bonito para me reconciliar na vida, vou na obra dele, ou na do Paul Celan”, completa a dona de uma voz mansa a harmonizar com o sorriso e a elegância singelos.
Autora de imagens potentes em seu “Hora zero” e de muitas metáforas enquanto fala, Prisca manuseia com destreza um português sensível, de um Brasil que lhe ofereceu paradoxos e que lhe impõe, dia a dia, “não se tornar indiferente, cínico ou uma pessoa dura”. “Aqui tomei mais consciência de várias questões que vão além de mim. Na Suíça não há esse estímulo constante de pensar o mundo fora de seu mundinho. Tem pessoas que tem essa consciência, mas ela não advém do convívio do dia a dia. Aqui é imprescindível, principalmente nos tempos atuais. No Brasil pode ter um aspecto ruim, à medida em que você toma noção das coisas mais duras da vida. Mas é bom passar pela vida e sentir que entendeu algo. O Brasil me deu muitas coisas boas, pessoalmente falando, mas também muitas feridas.”
Você se sente em casa aqui?, pergunto. Ela respira fundo. A casa fica em silêncio. Então, responde: “Não sei. Me sinto bem. À vontade. Não tenho medo de ir a lugar algum, não tenho receio de fazer nada. Mas, me sentir em casa, na minha casa, talvez. Aqui não me sinto em casa. Há um sentimento, que agora descubro melhor: como se fosse um elástico, que você puxa mas não arrebenta. Quando vou para a Suíça o elástico consegue afrouxar. Não sei se é isso sentir-se em casa, mas aqui me sinto sempre tensa. Não com relação à minha vida pessoal, mas é um país que não me permite afrouxar o elástico. É muito duro viver aqui.”
“HORA ZERO”
Lançamento de livro de Prisca Augustoni
Nesta sexta, às 20h
Espaço Manufato
(Rua Morais e Castro 307 – Altos dos Passos)