Matthias Lehmann lança ‘Chumbo’ no Brasil
HQ do quadrinista franco-brasileiro fala sobre a ditadura militar brasileira a partir da família Wallace
A ditadura militar é revisitada de forma recorrente. São inúmeras músicas, filmes, documentários, peças e livros que abordam aquele período, inclusive de diversas forma: pode ser o assunto principal das obras, mas também um detalhe, escancarado ou não. Sobretudo neste mês, quando se completa 60 anos de sua instauração, os lançamentos vão chegando e apresentando diversos olhares, mas, principalmente, apontando como aquilo que não deve ser repetido e, ainda mais, como a ferida que ainda está aberta e se reflete nos dias de hoje. Um desses lançamentos é o HQ “Chumbo”, de Matthias Lehmann, lançado, neste mês, no Brasil, pela editora Autêntica, publicado pelo selo Nemo.
Matthias é franco-brasileiro. Sua mãe, brasileira. Seu pai, francês. Ele cresceu na França mas anualmente vinha ao Brasil visitar seus parentes em Belo Horizonte, onde sua mãe nasceu e onde seguiu sua família materna. Além da capital, percorria os interiores mineiros e, ainda hoje, fala um português claro. Entende gírias de Minas Gerais e usa. Nos anos 1980, ainda menino, sabia que o Brasil vivia uma ditadura militar. Sua mãe conversava com ele sobre isso. As músicas que ela ouvia, inclusive, já apontavam o assunto. Mas, criança, aquilo não chegava a afetar de fato a vida de um visitante. Ainda mais que a ditadura, finalmente, via seu fim.
Já adolescente, Matthias começou a pensar realmente o que uma ditadura significava. Como aquilo se instaurou. Foi como nos filmes, magicamente? E de quem era a culpa? “Tiveram todas essas coisas que me preocuparam”, afirma, em videochamada. Com os anos, ele se tornou quadrinista e ilustrador. Até então, o Brasil não tinha sido, exatamente, tema de suas obras lançadas. E mesmo com os anos, o contato com o país de sua mãe seguiu acontecendo.
Com ‘Chumbo’, Matthias aprofundou sua relação com o Brasil
Até que ele decidiu que era o momento de fechar essa lacuna em sua obra e aprofundar no Brasil. Mas não na totalidade no país: na ditadura, em específico. “Eu queria saber qual era o sentimento de ver uma ditadura chegar ao seu país, de, de repente, enfrentar esse autoritarismo. É uma questão que eu queria aprofundar. De um certo modo, para mim, fazer esse livro era criar uma conexão mais íntima entre o Brasil e eu. E eu queria aprender algumas coisas. Porque eu tinha mais conexão com o Brasil ligado com a família, com as viagens. Faltava muita coisa, principalmente do ponto de vista da história, da política – tudo isso que tinha que pesquisar bastante.”
A ideia ficou rondando sua cabeça por quase 10 anos, porque ele sabia que exigia muita pesquisa para saber como se deu tudo isso. O contato que teve e o que ouviu de sua família não eram suficientes. “Eu sabia que isso ia implicar de ler muito, procurar documentação. Então, em certo modo, eu estava com medo de entrar nesse trabalho que ia ser imenso – e foi.” O que aumentou sua vontade de montar um HQ foi quando Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil. Em 2019, de fato, o livro começou a ser produzido.
“Eu tive vontade de explicar para o público francês também o que é o Brasil e a história política do país, porque aqui na França as pessoas têm pouco conhecimento sobre isso, no final das contas. As pessoas sabem que existiu uma ditadura, mas não sabem muito bem. E, com o Bolsonaro, teve esse revisionismo, de falar que tudo o que aconteceu não era grave, que não era ditadura. Além disso, a extrema-direita está chegando à França. De um certo modo, falar desse momento do Brasil é falar o que está acontecendo na França”, conclui. O livro, que tem 368 páginas, levou cerca de três anos de produção, até ser lançado, no ano passado, na França, e, neste ano, traduzido para o português e lançado no mês em que a ditadura completa 60 anos – tudo pensado. “Para a memória”, afirma Matthias.
HQ fala sobre a ditadura a partir de uma família
“Chumbo”, mais que falar sobre a ditadura, coloca lente em uma família, a Wallace, e como esse período afetou as relação dentro dela. O HQ se passa em Belo Horizonte e começa com o patriarca, Oswaldo, sendo apresentado. O homem, influente na região, é minerador e defensor do movimento integralista. Aos poucos, outros personagens vão sendo introduzidos na trama, como os filhos de Oswaldo, Severino e Ramires, que têm idades parecidas, mas, apesar de viverem sob o mesmo teto, personalidades completamente diferentes. Eles são introduzidos nesse ambiente político e, aos poucos, tomando suas próprias decisões. Matthias vai levando os personagens até a ditadura e, então, mostra os rumos diferentes de Severino e Ramires. O primeiro, escritor e jornalista, torna-se militante de esquerda. O segundo, no entanto, segue os passos do pai, e passa a frequentar os ambientes dos apoiadores da ditadura, também a apoiando.
Referências familiares e das artes brasileiras
Além das pesquisas, Matthias se utiliza também dos traços que percebia dentro de sua própria família. Severino, por exemplo, é inspirado em seu tio, o escritor e jornalista Roberto Drummond, conhecido, sobretudo, por ter escrito “Hilda furacão”. “Mas Ramires também é inspirado em um outro tio que eu tinha, que era também atleticano, tinha muito dinheiro, mas foi decaindo, a família pagava as dívidas dele, e tudo isso. Ele não acabou muito bem não”, ri. E segue: “Eles me inspiraram muito, mas tem outros. As mulheres também são muito importantes na história, e a Iara, sobretudo, que vem de uma família mais modesta. E tem uma das irmãs que parecem muito com a minha tia que tinha uma fazenda que a gente frequentava”. E lembra de outro personagem familiar: “O Oswaldo, de certo modo, é uma versão fantasiada do meu avô materno que eu não conheci. Mas minha mãe disse que não tem nada a ver. Mas, não sei. (ri.) Eu imaginei, né? Na ficção, eu posso inventar sem me preocupar com as consequências”.
As artes também influenciaram Matthias. Além dos livros que leu sobre a época, outra referência foi a canção “Meu caro amigo”, de Chico Buarque. “Eu acho que essa música é um documento muito importante sobre a ditadura.” Apesar das influências do real para “Chumbo”, Matthias reforça: “É um livro, principalmente, de ficção. Não é um livro de história”. Como foi lançado anteriormente na França, ele conta que as pessoas têm falado com ele que aprenderam muito sobre a ditadura e até chegaram a pesquisar mais sobre. “Mas, para os brasileiros, vai ser outra experiência”, reforça.
Mesclados entre as histórias, as cidades e o próprio Brasil viram personagens em seus traços carregados. Matthias mostra a arquitetura fiel e todo o desenrolar da cultura. Por ser em Belo Horizonte, “Chumbo” tem ainda um regionalismo escancarado nas conversas, para também reafirmar o espaço. Mas o autor deposita tudo isso no trabalho dos tradutores Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe. “Eu pensava em expressões brasileiras e mineiras, mas eu não podia escrever isso em francês, tipo ‘esse trem’, não tem equivalente em francês. Mas o interessante é que os tradutores foram encontrando equivalentes.”
‘Acabo com esperança, em 2003’
Matthias decidiu terminar o livro apresentando o cenário de 2003. Isso tem, inclusive, a ver com a sensação que ele conta que paira na França do avanço da extrema-direita. “É muito difícil ver isso chegando e, de um certo modo, é por isso que o livro se acaba em um período que tem esperança, em que o Brasil já era democracia e tinha esperança. Perguntam aqui na França porque não foi até o período do Bolsonaro. Mas eu penso que se eu acabasse o livro no Bolsonaro, depois não tem mais nenhuma esperança nisso. Então, eu acabo com esperança, em 2003.”
Como um franco-brasileiro, dar vida à “Chumbo” é entender a dinâmica de sua própria vida. É colocar em imagens e desenhos a história que é dele também e de sua família. Como artista, é deixar eternizado porque a ditadura não pode se repetir, nem ser romantizada, muito menos mencionada como se fossem anos de glória. E ser um artista falando sobre isso, para ele, é mais que falar sobre isso. É dar contexto e explicar toda a história, mesmo que ela seja em forma de ficção. “A gente, como artista, é cidadão como todo mundo. Simplesmente a gente quer criar alguma coisa com tudo o que a gente está pensando, analisando. E, no fundo, o que é interessante como obra de arte, é que não é só opinião, não é só escrever. Você cria toda uma obra para desenvolver esse pensamento, muda de pensamento e a coisa pode evoluir. Acho que isso que é interessante: é mais que uma opinião que você coloca nas redes sociais.”