Pela luz dos olhos teus


Por JÚLIA PESSÔA

08/03/2013 às 07h00

Em dueto com Miúcha, Tom Jobim falava, em "Pela luz dos olhos teus", sobre a beleza do encontro de dois olhares distintos, entre "olhos meus" e "olhos teus". Ao longo da história, diversos homens, antes e depois da passagem do maestro pelo planeta, se dedicaram à expressão artística a partir de "olhos teus", isto é, que não os deles próprios, mas os de outras: as mulheres.

Nas cantigas de amigo, trovadores portugueses assumiam um eu-lírico feminino, em uma época em que elas não podiam escrever, ou pelo menos, não há registro oficial de que o faziam. Séculos depois, as mulheres conquistaram importantes direitos e ainda batalham por um lugar ao sol da plena igualdade, mas produzir arte e cultura sob a ótica feminina ainda é um exercício muito buscado por homens na contemporaneidade.

Prova disso são canções como "Tatuagem", "Atrás da porta", "O meu amor", "Olhos nos olhos", que deram a Chico Buarque o status de grande conhecedor da alma feminina, arrancando suspiros de diferentes gerações de fãs até hoje. Caetano Veloso também fez suas incursões no universo delas, com composições como "Esse cara" e, mais explícita, "Eu sou neguinha". O mesmo acontece com outros ícones da música brasileira, como Chico César, Dom Bosco e Gonzaguinha. Como eles- e muitas vezes inspirados por seus trabalhos -, artistas da cidade e da região também se dedicaram a dar voz aos sentimentos e pensamentos de mulheres em suas letras.

É o caso do músico Fred Fonseca, que buscou inspiração em mulheres importantes de sua vida para compor "Rosa da terra", musicada por Laise Reis e defendida no Festival Nacional da Canção em 2008. "Tentei traduzir um pouco da força feminina nesta letra, e foi um processo divertido. Todos achavam que era o contrario: letra de Laise e música minha. Foi um aprendizado, e acho que trouxe mais sensibilidade para minha música."

Conhecido pela voz grave e imponente, Dudu Costa se aventurou, em composições, a enxergar o mundo pelos olhos delas. "Assumir este olhar para as coisas do mundo e do amor não é uma tarefa simples. O maior obstáculo é sempre me desvencilhar da minha própria subjetividade e da tradição patriarcal em que grande parte de nós, homens, fomos criados", conta o autor de "Babel", parceria com Arnaldo Huff, "Velha mobília", com Bruno Tuler e Edson Leão, e "Falenas", com Cacaudio. "As duas primeiras são uma espécie de diálogo entre homem e mulher, entre os dois universos e suas formas de sentir/experimentar um ao outro. Já ‘Falenas’ é uma história inspirada na personagem Amaranta, do livro "Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez."

 

Além da música

Diversas outras manifestações culturais, além das musicais, buscaram expressar a percepção feminina sobre o mundo, os sentimentos, os acontecimentos, sobre a própria mulher. Na peça "Filemon", inspirada em fatos reais e apresentada no 6º Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora, no ano passado, o ator Rodrigo Vrech deu vida a uma mulher atordoada tanto pela necessidade de deixar um companheiro que lhe faz bem quanto pela incapacidade de lidar com a ausência dele. "Quando escrevi o texto, compartilhei-o com algumas mulheres. A resposta foi excelente. No trabalho final, aquela personagem já era outra, mais ampla, contaminada pelo depoimento de outras mulheres e também porque falava pelo meu corpo, pela minha boca", conta Vrech.

Segundo ele, "Filemon" tocou não apenas as espectadoras, mas também os homens que assistiram aos espetáculos. "Eu não tentava parecer uma mulher ou me afeminar. Me sentia mulher, mas era algo interior, uma outra maneira de olhar o mundo à minha volta. Isso incitou os homens a se tornarem mulher por um tempo sem perder a sua masculinidade, como um exercício de escuta e interpretação do mundo."

Também movido por acontecimentos reais na vida de uma jornalista, o escritor Geraldo Muanis mergulhou na subjetividade delas para produzir o conto "Para onde foram os sonhos de Vitória Luxemburgo?". "É um resultado de viagens ao imaginário feminino, que sempre me despertou curiosidade. O texto é um casamento da subjetividade das mulheres com as minhas próprias impressões, um encontro de olhares."

Engana-se, contudo, quem pensa que os homens só se expressam sob a ótica das mulheres com foco em dramas e reflexões filosóficas. Um dos perfis de humor mais populares do Facebook, a "Gina indelicada", foi criada pelo estudante de publicidade Ricck Lopes. A página é ilustrada pela Gina das caixas de palitos de dente da marca homônima e traz frases sarcásticas sobre assuntos cotidianos. "Praticamente todas as tiradas têm um olhar feminino. Transformo auto-ajuda voltado para mulheres em piadas/conselhos indelicados. Também busco inspirações em sentimentos/situações que vejo usuárias compartilhando em suas redes sociais", conta o jovem.

 

Para o músico Dudu Costa, assumir um eu-lírico feminino é um importante exercício de alteridade. "Colocar-se no lugar do outro aguça a percepção e nos faz transcender os limites tão pequenos do nosso olhar e, neste caso, proporciona um aprofundamento maior na subjetividade feminina." Também compositor, Makely Ca acredita que o exercício, experimentado por ele em canções como "Em pé no porto", ampliou seus horizontes de criação. "Homens foram programados para ignorar sua sensibilidade e abafar manifestações de delicadeza, foram adestrados para confiar na razão e ignorar a intuição. Gosto da provocação causada por essa inversão de papéis, desse curto-circuito."

De sua experiência autoral com perspectiva delas, Fred Fonseca herdou uma nova maneira de tentar compreendê-las. "Me fez ver que devemos sentir melhor as mulheres. Entendê-las a partir delas mesmas e não a partir de buscas sobre como elas são. Já o ator Rodrigo Vrech defende que, apesar de tantas tentativas bem-sucedidas, a essência das mulheres nunca será desvendada por eles em sua totalidade."Acho que um homem nunca será capaz de entender, de maneira satisfatória, como uma mulher pensa e se sente. E esse pode ser exatamente o encanto dessa busca: é muito saboroso ver o quanto elas podem ser contraditórias e multifacetadas."

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