Outras ideias: com José Francisco Garcia
Quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016, 18 horas. Num prédio da Rua Espírito Santo, a porta se abre e um longo corredor surge à frente, com portas nos dois lados a dar passagem para as casas do térreo e do segundo andar. Numa delas, quase no fim, já do lado de fora, se ouve um samba. “Quem me chamou? Mangueira. Chegou a hora, não dá mais pra segurar”, canta Ciganerey, puxador da escola de samba carioca. “Quem me chamou? chamou pra sambar. Não mexe comigo, eu sou a menina de Oyá”, faz coro José Francisco Garcia, abrindo a porta de seu apartamento. Na sala, onde toca o samba mangueirense deste ano, fotos se espalham pelas paredes e prateleiras. Numa estante, muitas imagens de santos a denunciar um integrante da Campanha do Devoto, da Basílica de Nossa Senhora Aparecida.
Em destaque, uma medalha, de 1979, dada pelo então prefeito Mello Reis ao homem que muito contribuiu para o carnaval de Juiz de Fora: Zezé Garcia, 80 anos. Em outro canto, um recorte de jornal da década de 1980, com a seguinte manchete: “Zezé Garcia troca Turunas pelo Morro da Mangueira”. Verdade. Há anos ele já não desfila em sua terra natal. “Fui perdendo o gosto aqui”, diz. E não ficou parado. Na madrugada desta segunda-feira, estará na Verde e Rosa, na ala do Santo da Purificação, que antecede o carro com Maria Bethânia, com uma fantasia que lhe custou R$ 1.200. Mais um ano. “Estava no desfile que inaugurou o Sambódromo, em 1984, quando a Mangueira foi campeã”, conta ele, que também inaugurou os desfiles competitivos na cidade, em 1966.
Substituindo Jairo
Em 1964 Jairo morreu. Ele era uma das mais famosas baianas da Escola de Samba Turunas do Riachuelo. Como enfrentar a Feliz Lembrança, com sua “Mascarada veneziana”, em 1966, quando os desfiles tornaram-se um campeonato? O jeito era convidar o Zezé que saía como porta-bandeira no Domésticas de Luxo. “O Jairo sabia mexer muito com os ombros, e eu, mexia mais com os pés”, comenta Zezé, que topou o desafio e fez história. “Tive uma ala com os garotos mais lindos da cidade”, lembra. E sempre vestido de baiana? “Cada ano era uma coisa. Teve um ano que uma baiana da Juventude esperou que eu viesse com as pernas de fora e fez uma saia curta para ela, mas não vim. Fiz uma baiana rodada com três metros de roda e toda feita com cascatas de lantejoulas”, recorda o folião que também desfilou no, então bloco, Mocidade Independente, “com a moçada de São Mateus, no Partido Alto, no Ladeira, na Juventude Imperial, até voltar para a Turunas”.
Rainha d’O Snob
A paixão começou cedo. “Tinha 10 anos e era doido com carnaval”, lembra. “Morava no Costa Carvalho e fazíamos um bloco com todo mundo fantasiado. Naquele tempo tinha o Bloco dos Sujos, onde as mulheres se vestiam de homem e os homens de mulher, e eu também ia, com sainha, roupas femininas e um colar de joá. Frequentava, também, o baile da boate do Palace Hotel, com moças de família que iam todas tampadas. Houve uma vez que vesti uma roupa com uma gola, de onde saíam tiras plissadas nas cores do arco-íris, em baixo, um biquíni bordado com meia rendada e de salto alto. Dali íamos para o Faisão e para a praça do Cinema Central”, conta Zezé que, em 1964, tornou-se Rainha do Carnaval. Ele corre até a cozinha e me mostra uma coroa toda cravejada de pedras e um troféu em forma de caneco, que ganhou ao disputar com Rogéria, a reconhecida transformista carioca, o título de Rainha do Carnaval pelo jornal “O Snob”. “Eu sambava de short curtinho na frisa do segundo andar”, recorda.
Confete e serpentina
No tempo em que sair numa escola de samba era ser tachado de “mariquinha, camofa ou vagabunda”, Zezé Garcia não se curvou aos olhares tortos e desfilou. Até quinta ficava em Juiz de Fora e depois seguia para os bailes no Rio. Guarda revistas “O Cruzeiro”, com fotos suas no baile do Quitandinha, em Petrópolis, na década de 1960. “E o beijo foi livre”, dizia a legenda de um dos registros, no qual dava um beijo cinematográfico numa mulher, amiga sua. Acostumado com as ausências – a primeira foi do pai, aos 10 -, Zezé hoje tem o samba como companheiro. Seus oito irmãos já se foram. Os sobrinhos? “Ninguém me procura.” Aposentado da Prefeitura, continuou a trabalhar, no cartório de uma amiga, como “pessoa de confiança”. Em seu carnaval, os amigos são a comissão de frente. Enumera-os todos para mim o homem que conheceu México e Portugal e este ano segue para a Itália. Na vida, Zezé parece sempre cantar o enredo da Mangueira que entoará nesta folia: “Vou no toque do tambor… ô ô ô, deixo o samba me levar… Saravá!”.