Cultura brasileira e os ares do modernismo em Juiz de Fora
Depois de 100 anos da Semana da Arte Moderna, intelectuais refletem sobre a participação dos artistas da cidade no movimento modernista

Foi como um destino. Ilma de Castro Barros e Salgado tinha que morar na Rua Doutor Constantino Paleta. Ela tinha, porque mais tarde conheceria Pedro Nava e, logo depois, descobriria que Paleta foi casado com uma tia do desenhista, médico e escritor nascido em Juiz de Fora em 1903. Ela, professora e doutora em letras, dedicou seus estudos à vida de Nava. É uma amiga póstuma. Revendo sua bibliografia inteira, incluindo as memórias publicadas e os desenhos soltos, a justificativa para ele ser um dos nomes do modernismo mineiro é também o destino. Apesar de ter nascido em Juiz de Fora e passado parte de sua infância na cidade, Nava também morou no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Já estudando medicina na capital mineira, formava um grupo de amigos que se encontravam na Rua da Bahia, no Bar do Estrela – dentre eles estavam Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus de Guimaraens, Mário Casasanta, entre outros. O grupo, no ano de 1923, teve o primeiro contato com Mário de Andrade a partir do livro “Pauliceia desvairada”. Depois disso, todos os caminhos dos participantes começaram a ser modulados. Em 1924, a caravana dos paulistas modernistas passou pela capital mineira. O Grupo Estrela se tornou, então, o primeiro representante do movimento moderno em Minas Gerais.
Na época, a distância entre São Paulo e Belo Horizonte era ainda maior. Pensando em hoje, quando um ato qualquer chega ao mundo todo em um clique, é difícil imaginar que os mineiros precisaram de quase dois anos para, realmente, terem contato com os modernistas paulistas. Isso se intensifica pelo fato de que a própria Semana de Arte Moderna, que, apesar de não ter sido o começo do modernismo, foi um dos seus principais divulgadores, foi pouco comentada pelas mídias tradicionais da época, sobretudo os jornais. São Paulo, então, tinha, sim, acesso às produções. Mas a caravana que os modernistas fizeram, com organização de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros, para conhecer o Brasil e, assim, produzir sobre a realidade, foi importante também para difundir o movimento.
Trabalho de guerrilha
No livro “A Revista Verde, de Cataguases – Contribuição à história do Modernismo”, recém-lançado, o escritor Luiz Ruffato defende que o grande feito da Revista Verde, que circulou e foi produzida em Cataguases, foi evidenciar a penetração do modernismo, e isso, claro, depois da Semana da Arte Moderna, em 1922, já que a revista data de 1927. Em entrevista à Tribuna, o escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF Fernando Fiorese explica essa penetração: “O grande trabalho dos modernistas foi identificar grupos que tinham sintonia com a expressão que não fosse oficial. Os grupos regionais que tinham essa ideia foram sendo interligados. Os modernistas foram eficientes por fomentar a produção sobre eles. A vanguarda tem trabalho de guerrilha: precisa abrir os espaços. Tem que cavar esses lugares para expandir a produção.” Isso justifica como um movimento que surgiu em São Paulo conseguiu chegar a uma cidade do interior de Minas Gerais e, também, à capital.

Pedro Nava, juiz-forano, foi conhecer o modernismo na capital. Murilo Mendes, também juiz-forano, foi ser modernista no Rio de Janeiro. Para isso, Fiorese tem outra hipótese. Para ele, todas as transformações vêm da periferia. O que justifica o movimento modernista ter tido sua expressão em São Paulo é a economia. Os intelectuais, claramente, precisam de dinheiro para a produção, e a Semana de Arte Moderna foi encabeçada por Paulo Prado, latifundiário e comerciante de café. Foi na casa dele que as discussões começaram a ser feitas. A inspiração eram os festivais de Deauville, na França, que reuniam diversas expressões artísticas. Com esse dinheiro, o apoio da mídia pouco importava.
Para Fiorese, não foi difícil para Belo Horizonte ser receptiva aos artistas. A cidade tinha acabado de ser construída e a identidade cultural, por consequência, ainda não havia sido completamente desenvolvida. O encontro entre mineiros e paulistas foi fazendo fruto. Juiz de Fora, no entanto, distante da capital, não bebia dessas influências. O ponto de encontro entre as artes era o intercâmbio com o Rio de Janeiro, que, também, demorou a interiorizar o modernismo. “Abrir espaço estético não é fácil”, acredita Fiorese. Além disso, os intelectuais juiz-foranos da época, como aponta o professor, já estavam estabelecidos e tinham o apoio da mídia. O espaço para ser revolucionário era modesto. Ainda assim, Juiz de Fora recebeu e criou filhos modernistas.

Antes de tudo, o desenhista Pedro Nava
Assim como em 1924 acreditava-se que Pedro Nava não tinha tido contato com o movimento modernista, Murilo Mendes também não. Isso só foi possível por causa do trânsito com o Rio de Janeiro que aos poucos foi se abrindo à expressão. Os juiz-foranos precisaram sair daqui para serem modernistas. Nava, por exemplo, apesar de ser conhecido como memorialista, foi, antes, desenhista. Ilma Salgado conta que quem mais o influenciou foi Mário de Andrade, depois do contato primeiro com a caravana, em Belo Horizonte. Já íntimos, Mário guiava os desenhos de Nava e mostrava como um modernista tinha que fazer. E Nava seguiu. Como era médico, transferia seu conhecimento anatômico para as construções do corpo. O contato com pessoas de todas as classes sociais ajudou na construção do mundo. Ilma, em seu livro “Formas intercomunicacionais em Pedro Nava: o signo verbal e pictórico”, escreve que os desenhos de Nava eram marcados pela “deformação da realidade, pela falta de preocupação com o equilíbrio das proporções, pela expressão de realidades interiores e pela intenção de crítica”.
O desenho de Nava foi sendo desenvolvido ao longo do tempo, entre os atendimentos nos hospitais e os estudos. Mário, por isso, o considerava preguiçoso. Para devolver o achado, quando “Macunaíma” completou 50 anos de publicação, Nava desenhou em algumas capas da edição, ainda com os traços modernistas. José Alberto Pinho Neves, professor da UFJF e ex-superintendente da Funalfa, identifica o trabalho de Nava como a primeira manifestação modernista nas artes plásticas. Ele foi responsável pela ilustração do livro “Juiz de Fora, poema lírico” (1926), do belorizontino Austen Amaro. O livro, de acordo com Fernando Fiorese, foi o primeiro e único moderno escrito por Austen. Ele morou em Juiz de Fora na década de 20 e, vendo a modernização da cidade, teve inspirações modernas. Esse é também o primeiro livro modernista publicado em Minas Gerais.
Mesmo anos depois, quando passou a se dedicar ao memorialismo, Nava ainda precisava desenhar para entender o que iria escrever. E, escrevendo, ele continuou modernista. “Parece que ele escreve com um bisturi. Continuou crítico, mostrou a realidade que vivia”, diz Ilma. Ele nunca esqueceu Juiz de Fora, e até antes de morrer, em 1984, no Rio de Janeiro, deu declarações, muitas vezes polêmicas, sobre o andamento da cidade.

Modernista radical
Pinho Neves também acha importante destacar a contribuição de Murilo Mendes para o modernismo. No que ele chama de “afã de ser modernista ou situar-se enquanto tal”, Murilo Mendes publicou, na Revista de Antropofagia, em 1929, quatro poemas modernistas. Além disso, teve publicações na Revista Verde. Para o professor, o livro mais radical-modernista do juiz-forano é “História do Brasil”, de 1933. “Repleto de ironia, Murilo relê a história pátria com um vasto humor inexplorável e nos apresenta uma exemplar história do povo brasileiro, uma história que, por liberdade modernista, mistura em versos a história, a mitologia, a tradição, o folclore, a realidade e a fantasia.” No entanto, depois, abdica dessa escrita. “Murilo Mendes, ao abandonar um recorte do seu passado modernista, por julgá-lo representado em outros obras, em nota de advertência na edição do livro ‘Poemas 1925-1955’, renega essa preciosidade literária que poderia ser um belo instrumento pedagógico de ensino de História do Brasil.”
Mas, para além de Murilo Mendes e Pedro Nava, Juiz de Fora teve movimentos, mesmo que tímidos, de outros intelectuais. O problema é que muitos deles nem chegaram a publicar seus livros. Pinho Neves diz que o primeiro grupo de modernistas da cidade foi integrado por Edmundo Lys (pseudônimo de Antônio Gabriel de Barros Vale), Orlando Lage Filho, Mário Ruiz (pseudônimo de Rui Duarte de Almeida Novais) e Rubem Moreyra (pseudônimo de José Junqueira Monteiro de Barros). Fiorese aponta que o que contribuiu para isso foi, mais uma vez, o trânsito que existia na cidade. Em 1923, o escritor futurista António Ferro passou dias em Juiz de Fora e, como legado, deixou um mote modernista. “Na década de 1950, a pintura local acolhe algumas transformações através de uma geração de jovens artistas, entre outros, Dnar Rocha, Carlos Bracher, Ruy Merheb, Nívea Bracher, Reidner, que em grupo frequentavam a Sociedade de Belas Artes Antonio Parreiras”, pontua Pinho Neves.
O que ficou
Fiorese acredita que não dá para falar que um movimento teve manifestação tardia, como dizem que aconteceu em Juiz de Fora, sobretudo quando se analisa a arquitetura. “Escola literária não é regra, é escolha, por isso não dá para falar que foi tardio em determinado lugar. É um movimento.” Tanto que antes mesmo da Semana de Arte Moderna já existiam modernistas. Em 1951 foi inaugurado o Marco do Centenário, de Arthur Arcuri, com painel de Di Cavalcanti – que, hoje, está se deteriorando. Mais tarde, o painel “Quatro estações”, de Cândido Portinari, que fica logo abaixo do também modernista edifício Clube Juiz de Fora, estampado pelos “Cavalinhos”. Sobre a falta de preservação de bens culturais, Pinho Neves questiona: “o que pode fazer o Poder Público pelo Marco de Centenário, o que pode fazer pelo patrimônio da cidade? Basta de decisões, temos que passar a ações. Preservar o patrimônio público é importante para a memória do município e ao testemunho de passagem do poder. Ninguém quer ser recordado pela ausência, negligência, silêncio. Juiz de Fora não defende nem sustenta modernismo”. Ao dizer isso, lembra também dos painéis que existiam no Colégio Magister, assinados por Guima e Mário Silésio, e destruídos na demolição do prédio em 2005. Ano passado, um dos painéis de Guima foi reconstituído pelo Coletivo Agrupa, da UFJF, no saguão da Reitoria da universidade.

Necessidade de crítica
A Semana de Arte Moderna não pode ser considerada como a primeira manifestação modernista, mas foi graças a ela que o modernismo alcançou essa dimensão. Para Fiorese, é necessário, agora, sem deixar de esquecer da contribuição que o movimento teve para a cultura brasileira, criticar alguns de seus pontos. Rufatto explica que, a partir dos anos 30, o movimento esteve alinhado à Ditadura Vargas. Para ele, o momento só pode ser considerado como ruptura nos anos 20. Depois, não. Nesse momento de consolidação por Getúlio Vargas, começa a existir um outro tipo de movimento. O escritor lembra, então, do regionalismo dos escritores do Nordeste que passam a assumir a literatura moderna, “que é muito pouco modernista, apesar de incorporar alguns pilares do modernismo de 20, mas não tem nada a ver com os escritores da época”.
“O modernismo precisa ser criticado pela utopia que gerou o totalitarismo”, acredita Fiorese, lembrando que Murilo Mendes foi um dos poucos que não serviu à ditadura. Além disso, apresenta outra crítica: os modernistas pouco falaram sobre a tecnologia que estava surgindo na época, como fez Olavo Bilac, por exemplo, sobretudo com o cinema. Outro ponto específico de Juiz de Fora que Fiorese aponta é o fácil apagamento de memória pela destruição de prédios. Os modernistas consideravam o barroco como a primeira expressão completamente brasileira e privilegiavam essas construções. Tudo o que não fosse barroco, poderia ser destruído. E assim segue até hoje, mas nem o barroco nem o moderno parecem resistir às transformações urbanas.