João Cavalcanti canta Dona Ivone Lara em show neste sábado no Central
Apresentação é fruto do seu trabalho “Ivone rara” e é feita em comemoração aos 95 anos do Cine-Theatro
João Cavalcanti fala de Dona Ivone Lara como um admirador que persegue a essência. Uma perseguição que tem a ver com a descoberta dos caminhos da, como ele diz, “gênia das melodias”. Uma guia em um processo, que para o artista carioca, envolve a subversão e a tradição que o samba dita: um jeito de ser e seguir, um estilo além de um ritmo. Só poderia, então, ser Dona Ivone Lara a ganhar um disco todo dedicado a ela, feito por ele quando a sambista completou seus 100 anos, em 2022. Um passeio encadeado por imagens a partir da obra de Dona Ivone Lara é o que propõe “Ivone rara”, de João Cavaltanti. E é o show desse trabalho o escolhido para comemorar os 95 anos do Cine-Theatro Central, neste sábado (6), a partir das 20h. Os ingressos são gratuitos e foram distribuídos a partir de um sorteio, divulgado nas redes do equipamento da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Antes de falar da concepção do álbum, é preciso falar de como foi o encontro de João Cavalcanti com o samba. Ele é filho de Lenine, e o samba, de fato, não era um dos ritmos mais ouvidos em casa. “O samba não estava nos quereres principais”, resume. O interessante é que o gênero começou a ser perseguido por ele a partir do seu contato com “Da lama ao caos”, de Chico Science e Nação Zumbi. É um álbum, de certa forma, de rock. Mas foi a partir dele que João Cavalvanti voltou seu olhar para a música brasileira como um todo. “Um fio pouco convencional a maneira como eu entro no samba. Porque o manguebeat e essa geração vão acabar em samba para mim.”
Esse fio acaba por levá-lo ao samba sincopado através da divisão rítmica da melodia do samba, que é exatamente o lugar que o leva, entre outros, a Dona Ivone Lara, com essa sua ênfase certeira na melodia. “A gênia das gênias”, define. “Uma culminância de um processo que começou com Nação Zumbi. Mas foi uma busca dupla: o samba me buscou e eu busquei o samba. Eu queria a partir disso me embriagar desse ébrio que é o samba”. Exatamente por ser um contato que se deu a partir de outras coisas, João Cavalcanti conta que foram vários os sentidos sendo apurados com o samba, não exatamente o que já estava dado até então.
Essencialmente, samba
“O ‘Ivone rara’, como resultante, de alguma forma, entrega isso, que não foi convencional. Se eu fosse um artista umbilicalmente ligado ao samba, talvez eu não fosse capaz de inventar o ‘Ivone rara’, como resultante estético. Eu teria mais pudores de pensar esse repertório sobre outras matizes, outras óticas, como pensei”. Isso porque “Ivone rara” é um álbum dedicado a uma das maiores compositoras do samba mas que traz melodias que não são tipicamente sambísticas. Os instrumentos foram trocados, ele é composto por voz, violoncelo, piano, sanfona e violino. Ainda assim, pode-se dizer, trata-se de um álbum de samba.
É claro falar: “O samba vai além do gênero”. É frase corriqueira porque já é entendido que samba é estado de espírito também. “Não é só aquele pacote arquetípico de ritmo. A maneira como eu me relaciono com as pessoas é samba”, assume João Cavalcanti. Dona Ivone Lara, no entanto, em “Sem cavaco, não”, canta que “samba sem cavaquinho, não é samba”. E este álbum comprova que, dependendo da forma, pode ser, sim. João Cavalcanti escolheu, inclusive, incluir essa música no trabalho.
“Eu quis gravar esse samba muito em função disso: o samba tem o espaço da auto-ironia. São muitas camadas de auto-ironia: isso faz da malandragem do samba. Ao não se levar tão a sério assim, voluntariamente, se tornar a coisa mais séria que tem. É o pacote mais sério de cultura que o Brasil pode produzir. Nesse sentido, ‘Ivone rara’ é muito samba”. Ele completa dizendo que, em termos de instrumento, é mais parecido, por exemplo, com uma formação de tango. E até isso foi pensado, como maneira de pensar na latinidade. Vários pontos com nó: é isso “Ivone rara”.
Missão de João Cavalcanti
Existe, ainda, nisso de apresentar o samba com uma outra cara, um receio de estar mexendo naquilo que não se mexe: a tradição, por exemplo. “Ivone rara”, no entanto, mostra que, quando se sabe mexer, é obra prima que potencializa a tradição. E João Cavalcanti confessa que esse jogo é pauta de toda sua carreira. “Óbvio que há riscos. Quanto mais você subverte, mais você se distancia de um propósito inicial. A preservação de uma tradição e o uso sem pudores do samba como recurso estético são forças em disputa. E é uma disputa interna minha. Tem momentos que eu vou querer usar o samba de forma tradicional, e tem momentos que eu vou querer usar o samba como recursos estéticos para fazer outras coisas e imaginar outros universos. Eu me sinto à vontade de usar o samba como recurso, matéria prima.”
Fazer isso com a obra de Dona Ivone Lara é um respeito muito íntimo que João Cavalcanti cultiva. Um respeito, inclusive, com sua melodia. O músico conta que muito de fazer “Ivone rara” partiu de um desejo de colocar uma “lupa em suas melodias”. E segue: “Isso para entender porquê ela é tão genial. Estava no cerne (do álbum) cantar da forma como eram as melodias. A gente quis preservá-las de forma a ter certeza que eu tinha entendido a melodia da Dona Ivone como foi proposta por ela. E ai a gente fez esse exercício”. Apesar de com outros instrumentos, a essência de Dona Ivone Lara, sua melodia, se mantém intacta: como deve ser.
São os instrumentos que fazem o contra-canto tão típico de Dona Ivone Lara. “São essas as melodias complementares que enriquecem ainda mais esse matiz melódico que ela propôs”. O que enriquece também é a escolha de fazer suítes com as canções: como retalhos que se complementam na medida. João Cavalcanti escolheu construir uma narrativa com a ordem das músicas com o intuito de homenagear outro sambista importante e grande parceiro da mestra: Délcio Carvalho. “Eu acho lindo e me arrepia falar sobre isso: a inteligência do Délcio de dar sentido literal e literário às melodias incríveis da Dona Ivone. E as suítes se dão mais por um viés literário do que propriamente um viés musical. É musical no sentido de encadear essas canções de forma musical para que os textos se complementem”. A ordenação é causal e um discurso que tem a ver com a história do próprio João Cavalcanti, que não compôs canções para o disco, mas comunica.
Um show de primeiras vezes
Esta é a primeira vez que João Cavalcanti se apresenta no Cine-Theatro Central. “Meu debute”. É, também, a primeira vez que “Ivone rara” é apresentado nos palcos sem a presença de Wanessa Dourado, que gravou o violino do álbum e, no começo deste ano, faleceu. “Um vazio”, o músico comenta. E completa: “Fazer o show vai ser honrar sua história e a colaboração fundamental que ela deu ao disco. Esse show é todo dedicado à Wanessa, que vai estar presente em tudo”, finaliza.