A vingança dos nerds


Por JÚLIA PESSÔA

04/08/2013 às 07h00

Se em um passado não muito distante o termo nerd designava aquele sujeito introspectivo, aficionado por tecnologia e ficção científica e com pouco traquejo social, hoje "A vingança dos nerds", como satirizava o filme homônimo de 1984, está em pleno curso. Ao contrário do que pregou por anos o cinema de temática "high-school" oitentista, ser geek – termo análogo a nerd – na atualidade é ser descolado, é ser "cool". Quadrinhos, videogames, computadores, seriados, super-heróis e diversos outros produtos culturais e interesses – entre eles o acadêmico e/ou científico -, antes atribuídos a grupos segmentados de aficionados, são referências cada vez maior no consumo cultural da sociedade.

Prova disso é a realização da "Geek week", entre hoje e 10 de agosto, no YouTube, que fará uma programação especial, celebrando diversas criações audiovisuais relacionadas ao tema. Segundo as informações do site, mais da metade dos seus 20 principais canais não-musicais têm referências nerd. Na semana comemorativa, o YouTube exibirá vídeos, séries inéditas e colaborações criativas em mais de cem canais.

Para Dimas Tadeu, mestre em estética, redes e tecnocultura pela UFJF, a guinada do termo nerd para uma concepção positiva está relacionada à ascensão social e econômica do grupo. "Vinte anos atrás, o gordinho de óculos fundo de garrafa era só um cara feio que não sabia jogar futebol. Hoje, ele pode ter virado o CEO do Facebook ou Google ou ser o médico da moda. Na medida em que esses nerds foram ocupando lugares preponderantes na sociedade, também começaram a influenciar (quando não comandar) produtos culturais, como séries de TV, roteiros de filme, jogos, entre outros."

Na visão de Rodrigo Amorim, que se diz curioso, desde sempre, sobre "o funcionamento e a origem de tudo", a importância crescente da tecnologia na vida cotidiana das pessoas também tem grande peso neste levante da cultura nerd. "Aguns anos atrás, ser geek era visto como negativo, porque o cara ficava em casa estudando, vendo filmes de ficção, fuçando na internet, aprendendo eletrônica, programação, enfim, fazendo atividades que não eram entendidas como diversão. Hoje a tecnologia está presente no nosso trabalho, na nossa vida, nos nossos hábitos, nos relacionamentos, e cada vez mais precisaremos de pessoas que entendam como ela opera. Todos serão um pouco geek", opina ele, que possui uma empresa de animação em 3D e fundou o portal Nerd-up (www.nerdup.com.br), com notícias, discussões, resenhas e dicas sobre produtos diversos do universo nerd.

 

‘Não escolhi ser geek’

Segundo o publicitário José Alexandre Abramo, sua associação com o universo nerd aconteceu sem querer. "É fácil parecer ser geek, eu uso óculos. Não escolhi", diverte-se ele, que revela afinidades além das lentes, sendo fã de seriados, tecnologia de forma geral e com influências geek também no vestuário. "A minha relação com estas referências vem através de leitura, amigos e afinidades, além de conteúdos que influenciam diretamente no exercício do meu trabalho", destaca.

Fazendo coro com o publicitário, a designer Liliane Rocha acrescenta que é comum que profissionais da área criativa (design, audiovisual, comunicação, programação, moda) sejam consumidores de produtos com inclinações nerd. "São estas pessoas que vão produzir conteúdo, que podem criar desejos, sugerir tendências. É natural que criem o que eles mesmos gostem e que, por fim, trazem visibilidade a essas opções de cultura e lazer consideradas geek", diz ela, que contabiliza mais de 60 seriados assistidos e confessa sua preferência por jogos de tabuleiro, videogames, aplicativos de smartphone e qualquer novidade tecnológica.

 

Ascensão virtual sem padrinhos

Na discussão dos fatores que contribuíram para o movimento ascendente da cultura geek, um deles é unânime: a democratização do acesso à internet. Para Dimas Tadeu, a rede tem dupla atuação no processo. "Primeiramente, a internet é um ambiente em que qualquer um pode se expressar, independentemente do que os outros pensam a respeito. Ou seja, se na TV você precisa ser bonito e apadrinhado para ter um programa, no YouTube, basta ter uma câmera e algo a dizer. Em segundo lugar, os produtos veiculados na internet, por sua própria natureza tecnológica, são comandados e produzidos por geeks que, bem ou mal, tendem a dar preferência a seus ‘pares’", observa.

Já Liliane da Rocha destaca que a possibilidade de expressar opiniões e preferências com maior alcance nos meios virtuais permite que tendências nerd tenham um alcance maior. "As redes sociais abrem espaço para opiniões, ideias e preferências percorrerem por muito mais ‘tribos’."

 

Rótulos passam, referências ficam

Na visão de Dimas Tadeu, a chegada dos nerds ao "mainstream" cultural representa um movimento interessante e, ao mesmo tempo, repetitivo. "Interessante porque pressupõe uma certa inversão de valores, transformando o feio em bonito, o estranho em comum. Repetitivo porque não é tão exclusivista quanto qualquer outra ordem, de forma que apenas muda o gosto do grande público e da sociedade, mas segue excluindo uma parcela da cultura e considerando-a ‘ruim’, apenas porque não condiz com o que ‘todo mundo gosta’".

Para José Alexandre Abramo, nesta troca constante dos referenciais que ditam o que é "cool" para cada geração, o geek como estilo de vida tende a ser passageiro. "Como toda moda, eu acho que passa, mas a aceitação e a abertura a estes gostos e influências continuam. Estamos caminhando para uma sociedade mais flexível quantos aos grupos e escolhas", opina.

É o que também defende Dimas, acrescentando que não consegue imaginar que cultura alguma seja integralmente incorporada. "Pensemos, por exemplo, nos hippies: diversos hábitos, reivindicações e visuais deles ainda estão entre nós, mas eles passaram. Ser hippie hoje soa ‘démodé’ e, pode-se dizer, tão contracultural quanto era na época em que eles surgiram – embora por outros motivos. O mesmo acontece com os geeks: hábitos como videogames e referências ao universo tecnológico e acadêmico talvez fiquem, mas o ‘ser geek’ não deve durar muito."

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