Cemitério Municipal: entre o sacro e o moderno
Local é perpassado por mudanças estéticas, às vezes influenciada pela recorrência de roubos e vandalismos
“Um material como esse já não se faz mais”, diz o coveiro Edil Spada, 57 anos, enquanto abre uma caixa destinada a guardar ossos e retira de dentro dela um anjo quebrado esculpido em mármore, no Cemitério Municipal. A escultura, datada dos séculos XIX e começo do XX, não costuma ser mais feita. Os roubos, depredações, os preços elevados e até a recomendação da própria secretaria fazem com que os puxadores de bronzes sejam substituídos por alumínio e as cruzes de mármore, por latas. O movimento entre o sacro e o moderno é o tema desta terceira reportagem da Tribuna, que revela os manifestações e razões das mudanças estéticas ocorridas nos cemitérios, abrangendo estilos como art déco, romantismo, ecletismo e modernismo.
Edil planeja colar cada pedaço do anjo – o coveiro, afim de preservar a memória, também se torna artesão. A escultura danificada segue a realidade de vários outros túmulos que vêm sendo alvo de vandalismo nos cemitérios da cidade, o que alimenta uma nova transformação no local, insuflada para evitar a criminalidade. A afirmativa de Edil, que o material não se faz mais e, por isso, precisa ser restaurado, é confirmada por Antônio Cesar Rodrigues Jacob, 54 anos, proprietário da Marmoraria Santo Antônio, que existe em Juiz de Fora desde 1973. Ele explica que esse tipo de pedido já não é mais feito, devido aos custos elevados e a raridade do material usado que costumava ser importado.
É importante frisar, porém, que essas mudanças na estética fúnebre tem um recorte de classe, uma vez que as pessoas mais pobres sempre tiveram jazigos mais simples, diferente da ostentação póstuma das elites. “No século XIX os setores mais privilegiados, seja a nobreza ou a elite agroindustrial de Juiz de Fora, mandavam por meio de marmoristas encomendar materiais nobres da Itália, além de obras inteiras que foram importadas”, conta Leandro Graziosi, doutor em História e professor de Patrimônio Cultural e História das Artes.
As fases do cemitério
O Cemitério Municipal foi testemunha das mudanças sociais, culturais e econômicas que repercutiram na forma como as pessoas seriam sepultadas. Inaugurado em 1864, ele traçava a fase do ecletismo e romantismo, até meados da década de 20. “Essa fase tem obras rebuscadas e trazem a linguagem de diferentes épocas, greco romana, art nouveau, gótico que se juntam para compor túmulos ricamente decorados”, explica o professor Graziosi, sobre a tendência do uso do mármore carrara.
Entre 1920 e 1940, foi a vez do art deco, quando os tons se escurecem com o uso de granito e mármores pretos. Os puxadores, na época, eram peças feitas em bronze, assim como bustos e a própria escrita dos epitáfios também se utilizavam do material. Outra característica marcante que Graziosi comenta são os padrões geometrizantes com linhas retas.
A partir do final deste período até a contemporaneidade, o modernismo tomou conta das estéticas do cemitério, cada vez mais simples. E hoje cresce a propensão de cemitérios jardins – como é o Parque da Saudade. Segundo o professor, esses espaços buscam, de determinada forma, se afastar da ideia da morte. “A fase moderna usa diferentes tipos de materiais, mas os túmulos foram simplificados apenas uma laje com identificação ou um epitáfio baixo identificado”, completa.
O artesão da marmoraria
O atual momento dos túmulos pode ser ilustrado a partir da fala de Antônio Jacob, proprietário da Marmoraria Santo Antônio. “Hoje em dia é só placa, nome, datas, porta retrato e uma cruz.” Outras figuras, antes tidas como sacras, e que ostentava pelos seus materiais serem compostos de mármore carraca e bronze, caíram em desuso. No que se refere ao seu trabalho, ele permanece sendo um artesão da marmoraria, agora, com algumas mudanças em meio a tradição do negócio.
“O tio do meu pai, Lino Soranço, foi quem ensinou a gravação de letras na marmoraria para meu pai, que depois me ensinou”, conta Jacob. A família hoje tem uma placa em sua loja, em forma oval uma foto de Lino e ao lado escrito “Homenagem a Lino Soranço: pioneiro da escultura em mármore em Juiz de Fora”. Depois um agradecimento, “eterna gratidão da família Soranço”.
Lino Soranço tinha uma marmoraria na década de 50. No local, ensinou o sobrinho a fazer inscrições direto na pedra. “Eu nasci, depois ele (seu pai) ensinou para mim e foi mudando de geração para geração. O que o Lino fazia deve ter aprendido com os pais dele”, explica Jacob, sobre a família descendente de Italianos, local característico por esse tipo de trabalho.
Atualmente, ele é um dos poucos que ainda permanece com o trabalho sendo feito de forma manual. “Hoje em dia tem muita firma que faz a gravação na pedra com a máquina, eu faço trabalho artesanal feito a mão, mas daqui a pouco isso vai acabar. Com a tecnologia, a escritura sai perfeita. Ela ajuda, mas o trabalho de artesão nesse sentido vai acabar.”
Os costumes como reflexo de um tempo
O professor Graziosi continua explicando que os sepultamentos, além de seguirem uma estética que evolui ao longo do tempo, também apresentam costumes em constante transformação. Os enterros – que costumam ser evitados atualmente, antes, eram um evento social: com direito a cortejos que saiam da casa do morto, passava pela capela ou catedral e iam enfim ao Cemitério Municipal.
Para os mortos mais nobres, santinhos eram escritos em francês, o que, para Graziosi, significava justamente o grupo que se queria atingir. “Os setores populares não dispunham de tantos recursos, mas isso não significava que à sua medida também não faziam cerimônias”, observa. Nesse caso, os jazigos, ainda que mais simples, tinham a função de demonstrar respeito e tradição religiosa.
Valéria Wanda, professora de psicologia na Estácio Juiz de Fora e psicanalista, articulou o velório em um espaço para os vivos e suas crenças. “No Brasil, um país com dimensões continentais e tantas crenças, cada religião dita rituais diferentes para o processo do velório. Nos estudos antropológicos, encontramos um levantamento da diversidade de rituais que as diferentes culturas se utilizam para expressar as despedidas de um ente querido”, ela explica. Desta forma, o funeral é a parte do luto, um tempo para identificar e construir um ato simbólico sobre o que é o morrer.
Ela enxerga também algumas interseccionalidades do luto na contemporaneidade, como o tempo e as condições econômicas para fazer velórios. “Podemos afirmar que os velórios serão promovidos de acordo com as condições sociais e econômicas dos envolvidos. A expressão do luto é algo extremamente subjetivo e particular, e mesmo com considerações apontados anteriormente, essa é uma experiência única para cada um de nós.”