Profanações no templo


Por Tribuna

03/07/2016 às 07h00

Sidivan, dono da Capela, preserva livro com mensagens de artistas

Sidivan, dono da Capela, preserva livro com mensagens de artistas

Obra de Farnese de Andrade decora restaurante no Alto dos Passos

Obra de Farnese de Andrade decora restaurante no Alto dos Passos

Obra de Nívea Bracher, em cartaz no Mamm, mostra demolição da igreja

Obra de Nívea Bracher, em cartaz no Mamm, mostra demolição da igreja

Subtraído o aspecto religioso, Cosme e Damião são, apenas, dois homens. Segundo Farnese de Andrade, dois iguais juntos, um ao lado do outro. Para a igreja que normatiza a sexualidade, o artista plástico entrega, no objeto sem título, feito com a imagem sacra dos irmãos envolta em resina, símbolos reinterpretados. Subvertendo sentidos, num enfrentamento que busca a liberdade no lugar da opressão. Com duas faces masculinas separadas por uma maçã, outra escultura, “O pecado original” coloca a homossexualidade como uma desobediência moral, mas não ética. Muitas de suas peças dizem de fetos já sexualizados.

Desconcertante, o trabalho do mineiro morto há 20 anos – completos no próximo 18 de julho – profana o sagrado com o intuito de encontrar novas razões. O que me forma e o que me formata? O que me cria e o que me cerceia? O que me diz e o que induz? Questões que Farnese fez nas décadas de 1970 a 1990, expostas em “Farnese de Andrade – Arqueologia existencial”, maior individual de objetos do artista que se encerra neste domingo no Palácio das Artes, na capital Belo Horizonte, após passar por Brasília e Rio de Janeiro.

Considerado um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, tendo influenciado artistas como Tunga, Adriana Varejão e Cildo Meirelles, Farnese representa o momento áureo de uma já extinta galeria juiz-forana que também transgredia a santidade. Em sua fase mais prolífica, nos anos 1970, Farnese, então morando na capital carioca, desembarcou na cidade para apresentar quadros de retratos de mulheres, feitos em nanquim, na Capela – Galeria de Arte.

“Ele ficou 20 dias pintando outros retratos. Lembro-me que se hospedou no Joalpa Hotel. Dispôs-se a vir por conta dele, ganhou dinheiro e até mudou de casa”, recorda-se Sidivan Ribeiro, proprietário da galeria, que vendeu todos os quadros da mostra, dentre eles a obra que decora o salão do restaurante Mamma Roma, no Alto dos Passos, adquirida por Nísio Arcuri, pai do empresário Sérgio Arcuri, um dos sócios no estabelecimento. Ainda que não tenha apresentado seus intrigantes objetos a Juiz de Fora, Farnese demonstrou, em seus desenhos, um universo soturno.

“Não há possibilidade de felicidade. Se o sujeito tem a consciência da morte, não pode ser feliz”, defende o artista em premiado curta-metragem dos anos 1970, intitulado “Farnese” e dirigido pelo crítico Olívio Tavares de Araújo. Utilizando-se de oratórios, porta-joias, ex-votos, bonecas, imagens sacras e materiais de laboratório, o artista criou uma espécie de literatura visual. Como eixo, traçou um drama do grotesco, em que o simples fato de viver se mostra martírio. “Não sou favorável à procriação. Não é covardia, é uma espécie de crueldade colocar alguém no mundo”, diz em vídeo o homem que nunca se importou em dizer do horror às crianças.

Saem os santos, entram os quadros

Seis pistas, três em cada direção. Uma crescente paisagem de prédios. Uma Avenida Rio Branco que se acostumava com a recente extinção dos bondes. Na Juiz de Fora da década de 1970 não havia mais lugar para o inspirado prédio do Colégio Stella Matutina. Inaugurada em 1917, a construção de estilo gótico, uma réplica exata da casa central da Ordem Religiosa Servas do Espírito Santo, na Alemanha, foi vendida na década de 1970 e demolida em 1978. A capela, logo ao lado, teve a mesma sorte, mas antes experimentou a efervescente contracultura local, com o barulho do movimento punk e as paletas de uma escola de pintura cada vez mais forte.

“Não comprei a igreja, comprei o prédio. Se venderam é porque quiseram. E fui eu quem comprou”, diz Sidivan Ribeiro, um senhor prestes a completar 79 anos. “Já vendia muitos quadros. Comprava aqui para vender lá fora. E comprava no exterior para vender em Juiz de Fora. Embaixo da capela funcionava a vidraçaria e em cima a galeria. Até hoje funciona a loja de moldura, Ganha Pouco, na esquina da Santo Antônio com São Sebastião, que é da minha irmã e deve fechar este ano, porque ela está cansada”, comenta o marchand que hoje não ganha pouco, segundo ele, com aluguéis de imóveis.

Logo na primeira exposição do espaço, em 1977, uma coletiva reunia obras de Abelardo Zaluar, Arlindo Daibert, Carlos Bracher, Carlos Scliar, Fayga Ostrower, Ruy Merheb e outros artistas, entre locais e nacionais. Imediatamente a imprensa brasileira se interessou pela casa que recebia lançamentos de livros, shows, espetáculos teatrais e de dança. E os artistas do país inteiro voltavam seus olhos para o inusitado lugar.

“Renato Russo esteve aqui. Sivuca também. O Hermeto Paschoal até fez uma música para a Capela. Uma vez o Henrique Lott fez uma exposição com retratos de pessoas nuas, e quase fui preso. Eu disse: Não, não posso ser preso, porque aluguei para ele fazer a exposição”, conta Sidivan. Ele te liberou? “Não deu em nada, mas que foi um escândalo, foi”, ri o homem, morador de uma casa hoje com poucos quadros, no Bairu.

‘Você que traz o escândalo, irmã-luz’

Durante o vernissage, com as telas penduradas no centro da galeria, as luzes se apagaram, e surgiram pessoas completamente nuas, dando vida aos quadros que representavam a figura humana desnuda da pele. Logo em sua segunda exposição, Henrique Lott chamava atenção não apenas pela pincelada, mas, principalmente, pela coerência de uma proposta que partia da tinta e se entregava ao gesto.

“A pintura que eu fazia, entre o realismo e o expressionismo, passava uma ideia de carne viva. Daí desdobrei na performance com um grupo de um diretor de Curitiba, que trabalhava no Pró-Música, onde havia apresentado os quadros antes”, recorda-se o artista sobre a mostra de 1981, que inseriu a Capela na memória afetiva do fotógrafo Humberto Nicoline, que em seu livro “JF Anos 80” resgata o espaço em diferentes cliques. “Lembro-me também de um show do Hermeto Pascoal na Capela. Quando acabou a apresentação, ele saiu, com uma flauta, pela Rio Branco. E todo mundo foi atrás.”

Todos iam mesmo atrás daquele lugar que apostava na fé na arte. Em 1983, um leilão com a presença do renomado leiloeiro carioca Evandro Carneiro dava pistas da grandiosidade de um espaço que comercializou obras de artistas hoje consagrados, como Lídio Bandeira de Melo, Cândido Portinari, Renina Katz, Tarsila do Amaral e Henrique Bernardelli.

Há três décadas, no entanto, o projeto escandaloso – em todos os sentidos possíveis – chegou ao fim. E o prédio também. Marco na história patrimonial da cidade, a demolição da Capela acendeu a discussão preservacionista, que atingiu seu auge na defesa da Fábrica Bernardo Mascarenhas, meses após a demolição da Capela. Tijolo por tijolo, a artista Nívea Bracher registrou a demolição do imóvel num premiado trabalho no qual denunciava a ausência de um pensamento preservacionista na cidade e no país. “Brincando a paisagem” pode ser vista na exposição “Memorabilia Urbis”, em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes.

‘Nada melhor que uma capela’

“Nada melhor que uma Capela para um Ignácio Loyola Brandão”, derreteu-se o escritor quando lançou um de seus livros no lugar. “Tirei do verso supérfluo, agora somos eu e o branco do papel”, escreveu o artista plástico Augusto Rodrigues no livro que Sidivan Ribeiro guarda em sua casa, como relíquia de um tempo pretérito, que, para ele, não carece de saudosismos. “Acabei com a Capela porque não tinha mais dinheiro para pagar impostos. Galerias eram isentas, mas o Sarney instituiu que teríamos que pagar”, diz. Tem saudades? “Eu não. Se por um lado foi interessante, hoje estou muito melhor. Vendi a Capela, ganhei mais dinheiro e não faço mais nada”, responde. Sente-se culpado pela demolição? “Não. Não venderam? O Vaticano autorizou, e me venderam. Às vezes, as pessoas falam: Ah! Que pena! Então, porque não compraram de mim?”. Profanado, o espaço consagrado resistiu, apenas, na memória.

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