Cinema o ano todo
Dezenove anos atrás, em uma lona de circo, Tiradentes dava os primeiros passos em direção a ser o que é atualmente: o marco anual do início da temporada audiovisual brasileira. De 1998 para cá, quando a primeira exibição de uma produção do cinema nacional aconteceu embaixo da lona que normalmente abriga um picadeiro, a Mostra de Cinema de Tiradentes tornou-se referência na valorização do cinema fora do circuito comercial, tendo exibido milhares de filmes ao longo de quase duas décadas. Na edição comemorativa deste ano, o evento deixou, além do imenso legado imaterial construído com o passar dos anos, um importante presente para a cidade mineira: a Casa da Mostra, espaço que funcionará como centro de formação, pesquisa, consulta e preservação de acervo sobre o audiovisual nacional.
“A ideia é que todo material que a mostra produziu em seu tempo de vida convirja para este espaço. Temos os livros com o conteúdo e os filmes de cada edição, todos os áudios de debates já realizados, uma extensa biblioteca lançada concomitantemente com edições da mostra, estudos, pesquisas e, claro, produtos audiovisuais. É um dossiê do audiovisual brasileiro dos últimos 19 anos, uma sementinha que estamos plantando. Ainda precisamos de parceiros que digitalizem todo o acervo, pois ainda temos material em VHS e filmes em 35mm, por exemplo. Mas o primeiro passo foi dado, com o objetivo de compartilhar tudo que a mostra produziu e que hoje fica na Universo”, explica Raquel Hallack, coordenadora da mostra e diretora da Universo Produção, que idealizou e realiza o evento.
O imóvel que abriga o espaço é, por fora, uma das charmosas e típicas casinhas históricas mineiras, de parede branca e portas e janelas coloridas. No interior, três cômodos têm diferentes funções. Um deles abriga uma bibliografia de catálogos e materiais produzidos em edições passadas. Adiante, há um pequeno set de filmagem, para que os visitantes entendam como funcionam algumas técnicas audiovisuais, como o Chroma key (aquele recurso em que se usa um fundo verde ou azul para sobrepor imagens de cenários distintos). Durante a mostra, uma sala permitia a experiência do cinema 360º com a utilização de óculos de realidade virtual e também havia o espaço #eufacoamostra, que compila material de visitantes e da produção sobre o evento, em fotos e vídeos. A ideia é que haja sempre, pelo menos, uma videoinstalação na casa. A lojinha da mostra, com produtos como bolsas, canecas e camisas, também funcionará o ano inteiro.
Empreitada cultural ousada
Quando a mostra chegou a Tiradentes em 1998, Raquel sabia que estava apostando em uma empreitada cultural ousada: fazer um evento exclusivamente de cinema nacional; na época em que a produção era cara, escassa e pouco autoral; em uma cidade com menos de seis mil habitantes no interior de Minas. Vinte edições depois do sucesso deste pontapé inicial, ela acredita estar repetindo a dose de ousadia com a Casa da Mostra. “Estamos falando de acervo, um projeto que não tem uma autossustentabilidade. Precisamos pensar em preservação, acesso, desenvolver um modelo de negócio para que ambos aconteçam e funcionem e também pensar em como as parcerias podem acontecer e como empresas de audiovisual podem estar presentes neste projeto. É algo totalmente ousado e trabalhoso.”
Para a coordenadora da mostra, é importante traçar parcerias para a manutenção e viabilização da Casa da Mostra. “A primeira possibilidade que vejo é com o Governo de Minas. Além de Tiradentes, temos outros eventos de cinema em Ouro Preto e Belo Horizonte, que são muito representativos para o estado em termos culturais, de turismo, econômicos, e vários outros sentidos. Também queremos trazer para a casa empresas da indústria audiovisual, que já estão presentes na mostra oferecendo produtos e serviços nas premiações, por exemplo. Elas poderiam estar presentes com um espaço delas na casa, cada mês uma montaria o seu, além de participar de workshops e oficinas. São modelos muito viáveis.”
Poder ver um projeto como este coroando a trajetória da mostra é um presente para Raquel, cuja história de vida se confunde com a do evento. Em todos estes anos, muitas passagens foram importantes, marcos pessoais e de consolidação do evento. “Poder ver a mostra saindo do papel foi um momento muito especial. Na terceira edição, instituímos o Cine Praça, que hoje é muito comum em qualquer lugar, mas 17 anos atrás não era. Com ele, chegamos a um público que nunca tinha ido ao cinema, porque a praça é um lugar de convergência. Vimos velhinhas se levantarem de susto, com medo do que se passava na tela, remetendo às primeiras projeções da história do cinema. Na sétima mostra, eu estava grávida de nove meses, pensando se minha filha nasceria ou não aqui em Tiradentes. Mas minha médica achou que eu ficaria melhor estando presente do que ansiosa pelo evento estar acontecendo em mim. Aí vi que a mostra estava tão impregnada na minha história. É uma junção de coisas com que tenho que lidar como empresária, mãe, empreendedora, mulher. Tudo sempre feito com muito risco e ousadia, e sempre começando do zero. Mas vale muito a pena.”