‘Eu não tinha tempo para criar’: artistas relatam como jornada 6×1 impactou suas produções
Tribuna entrevistou três juiz-foranos que se dividem entre trabalho formal e a arte, na tentativa de ter recursos para viver seus sonhos
Neste ano, o rapper do Arado, RT Mallone, ganhou o reality de artistas “Nova Cena”, produzido pela Netflix, e uma premiação de R$500 mil. Mas, em 2018, quando ele lançou “Vendedor de sonhos”, trabalhava em uma padaria e tentava descobrir como ser artista. “Eu anotei todos os planos pra não esquecer das metas/ Escrevi todos esses versos em papel de pão, preso atrás de um balcão (…) Minha vida desarrumada e eu sem tempo, umas linhas desajustadas e eu sedento”, diz na letra de “Rotina”. No mesmo ano em que sua vida teria essa mudança tão grande, é discutido o fim da jornada 6×1 no Congresso, em projeto que já está encaminhado para comissões especiais por lá e no Senado. Entre as 32 milhões de pessoas que trabalham nessa escala, em que há apenas um dia de descanso e os outros seis são dedicados à empresa, existem vários artistas, assim como RT na época, que ainda não conseguem viver exclusivamente do trabalho na arte. Na reportagem da Tribuna, artistas juiz-foranos relatam como essa rotina impactou suas produções e as perspectivas que se alteraram a partir dessa vivência.
Erik RK teve o seu primeiro emprego de carteira assinada em um telemarketing que adotava essa escala de trabalho. O que o motivou a procurar esse emprego foi justamente a esperança de ter mais possibilidade de fazer arte e criar com mais recursos, podendo contar com o salário que teria. Mas foi durante o período em que trabalhou nessa empresa que, como conta, se sentiu mais frustrado com o seu trabalho de artista, enquanto rapper, compositor, produtor e ilustrador. Até as pessoas ao seu entorno foram percebendo. “Quando eu estava nesse trampo, eu sumi. Não estava nos rolês, raramente saia ou via meus amigos, porque estava sempre cansado e meio sugado de energia. Quando tinha tempo, não tinha vontade para isso. E como se faz arte, uma coisa que precisa de tempo e vontade pra fazer, desse jeito?”
O momento que tinha para escrever suas músicas era raro – mas acontecia geralmente no tempo que estava se deslocando até o trabalho. Foi o que motivou a criação da música produzida por Alibi e ele, chamada “3+5″, em que reflete sobre esse tipo de rotina. “Na minha criação cristã, sempre colocaram o trabalho como uma coisa enorme e que dignifica as pessoas. Que dá um propósito. Mas não era nada nobre: eu me sentia muito mal. Afetou muito a minha saúde mental.” O nome da faixa, “3+5″, relaciona o terceiro dia em que Jesus ressuscitou, de acordo com a Bíblia, e o quinto dia útil, que é quando Erik RK considera que as pessoas também renascem e ganham mais esperança, pois recebem seus salários.
O artista Ocrioulo, integrante do coletivo Makoomba, relata algo parecido. Enquanto músico, produtor, DJ e filmmaker, ele relata que quando trabalhava nessa escala precisava usar o único dia de folga para descansar ou resolver pendências pessoais, e se frustrava por não conseguir se dedicar à arte. “É como se a rotina de trabalho ‘comesse’ tudo: o tempo, o corpo e a cabeça. Isso cria uma barreira enorme pra quem quer se dedicar mais à arte, porque você acaba sempre empurrando ela para o ‘depois’, e o depois às vezes nem chega.” Mesmo quando conseguia esses momentos, precisava sacrificar o seu descanso para conseguir se engajar em projetos ou criar algo. “Isso com certeza impactava minha produção, tanto no ritmo quanto na qualidade, porque nem sempre tinha a energia ou o foco que eu queria”, conta.
Para onde vai o ócio
Desde a Grécia Antiga, a ideia de ócio é considerada importante para a criação. Esse conceito diz respeito a esse tempo de folga ou de descanso que é usado para ter ideias, que florescem nesses momentos e podem ser elaboradas com mais cuidado. Para as 32 milhões de pessoas que precisam trabalhar dentro desse esquema 6×1, no entanto, a ideia do descanso usado para outra atividade vai se perdendo. “Uma das coisas mais frustrantes é sentir que você não tem tempo, e quando tem tempo não tem cabeça”, conta Erik.
A ideia de ócio é algo que Soulê Venerando reflete não fazer parte da vida de artistas como ele, que trabalha há sete anos nessa escala, tendo passado por mercado, call centers e trabalho em lojas de shopping. A rotina chega a ser tão pesada que, para dar conta de se manter na cena artística como cantor e produtor cultural, ele evita voltar para casa depois do expediente, para manter contato com as pessoas e “colocar a cara”. Além disso, tenta ao máximo manter a criação como prioridade, seja qual for o trabalho. “Às vezes, quando surge uma ideia, escrevo no papel de seda, na notinha que sai do cartão pra não perder.” Apesar das dificuldades, o trabalho é a sua segunda prioridade – enquanto a arte é que fica sempre em primeiro lugar.
O que acreditam
Soulê também entende que, além desse tipo de jornada exaustiva de trabalho fora do campo da arte impactar sua produtividade artística, também afeta as suas perspectivas dentro do cenário artístico. “Tem dia que bate neurose, que não tem jeito, a gente pensa em desistir ou só trabalhar, porque é doloroso também. A gente tem que entender que toma esculacho no emprego, é cobrado de coisas que nem fazem sentido só para poder fazer nossas coisas.” Além disso, para ele, uma das maiores dificuldades de cumprir essa escala ainda reservando tempo para ser artista é não ter uma disponibilidade maior para estar com a sua família. “Eu queria ver minha irmã mais nova, de 8 anos, com muito mais frequência. Mas é sempre nesse corre de trabalho e arte. Mas é ela, também, quem mais me dá gás para fazer o que eu faço. Eu acho que essa jornada tem que acabar. Não é normal não ter final de semana ou feriado para poder fazer o que gosta, estar com a família, se cuidar.”
Quando um indivíduo deixa de fazer arte por causa desse contexto, como notam os entrevistados, não é só ele que perde – mas todos que podem ser afetados por suas produções. A opinião de Ocrioulo também é nesse mesmo sentido. “Seria essencial que os trabalhadores tivessem mais tempo livre disponível durante a semana. Uma carga horária menor ou mais flexível para conseguir dar conta tanto das tarefas pessoais quanto da arte. Sem esse tempo, fica muito difícil priorizar algo que não é sua fonte principal de renda, mesmo sendo sua paixão”, finaliza.
Tópicos: jornada 6x1