‘Como todo bom mineiro, Drummond é conservador’
Raphaela Ramos
A professora Márcia Marques de Morais, da PUC Minas, considera-se uma leitora diletante de Carlos Drummond de Andrade. Se preciso for, ela até assume a posição de crítica, como aconteceu na último dia 22, durante o lançamento da exposição A mesa, de Yara Tupynambá, no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), em cartaz até o dia 6 de maio. Mas a pesquisadora mineira parece preferir a observação apaixonada, a mesma de seu período adolescente, quando já era devoradora contumaz dos escritos do itabirano. Responsável na PUC pelas disciplinas de teoria da literatura, Márcia publicou um livro sobre Guimarães Rosa, no qual associa literatura e psicanálise. Meu vesgo analítico tem muito de psicanalítico, mas sem deitar personagens, narradores, heróis ou autores no divã. Não à toa, a acadêmica também lança esse tipo de olhar ao poema A mesa. No saguão do hotel, pouco antes de partir para o Mamm, ela concedeu uma entrevista à Tribuna. Logo após o primeiro tema, mostrou-se aberta ao que a cidade tinha para oferecer: posso usar essa pergunta na abertura da minha palestra?. Márcia se põe atenta às mineirices. Pegadas, aliás, que a levam ao centro da produção de Drummond. Embora a poesia seja um salto do subjetivo para o social, do particular para o geral e do regional para o universal, não há como não perceber mineiridade ali, o que é muito interessante para nós.
Tribuna – Em sua última entrevista, ao Jornal do Brasil, Drummond disse ter feito da poesia um sofá de analista. Nesse sentido, que lugar A mesa ocupa na obra do poeta?
– Márcia Marques de Morais – Temos ali quase que uma sessão psicanalítica. Há a figura paterna, que comanda a ceia imaginária. No frigir dos ovos, porém, a mesa está vazia, como confirma o último verso, deslocado. A mesa é erigida, tanto que, em um determinado momento, fica maior que a casa. Isso me lembra muito o sentido totêmico da palavra do pai. O poeta sugere as desavenças com o pai, uma constante na obra dele. Elas também são folclóricas em Itabira – sem querer misturar biografia e ficção. A ficção é maior que a biografia, porque, embora parta de uma subjetividade, faz com que todos, com nossas camuecas, melancolias e angústias, nos vejamos inscritos ali. Assim, em grau maior ou menor, todos estamos traçados pela identidade do clã familiar. Drummond mostra isso em A mesa. Ele vai construindo o jantar mineiro, a família toda, com o pé grudado na biografia. Pode-se conferir ali todos os filhos, irmãos de Drummond, desenhados a partir da genealogia: os três antes dele, uma que havia morrido recentemente e ele, depois de muito dizer. Ele se coloca por último, num canto, gauche, numa palavra da infância. Começa muito galhofento: ó, velho, e há diálogos ásperos com o pai. Também existem marcas mineiras. Ele diz pois sim, uma expressão que tanto concorda quanto discorda. Trata-se da tensão típica da negatividade dos poemas do itabirano.
– Além da referência católica, há outros significados para esse banquete?
– Há minimamente duas entradas. Uma é a sacrificial: a missa, a última ceia, o banquete. Mas nesse banquete cristão do poeta, a doação vem da mãe. Ela, que é branca, muito alva, uma santa. Drummond põe toda a mesa e convoca a mãe em último lugar. Ao mesmo tempo, existe o banquete totêmico, freudiano, referente ao mito da horda primitiva. O totem é o responsável por lembrar a palavra do pai. Isso ecoa muito para mim. Aquela coisa meio orgiástica contada pelo poeta: todos em volta da mesa, falando de boca cheia, rindo alto.
– O poema integra que fase da poesia de Drummond?
– Está inserido em um livro de 1951, Claro enigma. Drummond vinha de A rosa do povo, com trabalhos voltados para questões sociais, ideológicas e políticas. Claro enigma, de certa maneira, é um retrocesso. Aparentemente. A questão é que ele caminhava com ideias de vanguarda, mas passou a ser mais conservador em Claro enigma, sobretudo porque optou por uma linguagem mais clássica. Ele, que por ares do modernismo, estava largando aquilo, acaba usando linguagem e forma mais trabalhadas. Mas esse não é o caso de A mesa. O poema aparece como um apêndice, mistura muita coisa, o erudito e o popular, e fica um pouco distante do resto.
– A mesa destaca a família mineira. Mesmo morando no Rio por muito tempo, o poeta nunca deixou de visitar Minas em sua produção. Qual o significado da transposição do afeto pelo lugar para os escritos?
– Apesar de Itabira ser apenas uma fotografia na parede, dói demais. Toda a obra dele está construída em cima dessa melancolia, que se traduz em negatividade, recusa e reflexão. Um coração está indelevelmente partido em A mesa. Drummond parte, reparte e de novo reúne. Está escrito no poema: os filhos se dividem e se unem em um, o pai. Então esse pai, essa lei, esse conflito está refletido na vida do poeta. Essa relação com a cidade do interior, onde ele teve tantas pulsões e desejou viver tanto a natureza, mas foi proibido de vivê-la. O tempo inteiro ele lida com divisões mineiras, com aquele mundo antigo. Aliás, lida muito bem lidado, porque sublima tudo na poesia.
– Yara Tupynambá levou A mesa para as artes visuais. Qual a sua opinião sobre esse diálogo?
– O primeiro painel, com o pai majestoso na cabeceira, é maravilhoso. Depois, nos outros quadros, pedaços de cena são retirados da grande cena que é o poema inteiro. Aqui, há uma comparação. Drummond não divide o todo, faz 340 versos em sequência. Uma coisa continua na outra, tanto que, por vezes, a pontuação aparece no meio do verso. No entanto, a festa orgiástica do mito que funda a sociedade, citada na obra de (Sigmund) Freud a partir dos últimos livros, ressalta exatamente a divisão, porque o pai é esquartejado, morto e comido. Algo que depois se aproveita em várias religiões. O interessante é que Yara parte as cenas, destaca porções. Outro ponto que chama atenção na obra dela são os batráquios pulando das gavetas dos móveis mineiros. Drummond fala que o pai entra na alma dos filhos, vê a mão suja de lama. O itabirano, inclusive, possui um poema chamado Mão suja. Outra imagem que Freud deu para o inconsciente é o pântano, a lama, onde há animais visguentos.
– É possível encaixar Drummond em uma época ou movimento?
– Cronologicamente, ele é modernista. Lança, em 1930, Alguma poesia, já com características bem vanguardistas. No meio do caminho causou um reboliço, tanto que um livro foi publicado com as mais díspares interpretações. E Drummond ria muito, gostava. Mas, como todo bom mineiro, ele é conservador. Claro enigma apresenta uma volta formal, e existem muitos estudos mostrando a questão do claro x escuro, de uma estética barroca de contrastes. O itabirano faz isso de uma maneira moderna. Mas é importante lembrar que as linguagens dialogam. Você tem uma série de questões clássicas, barrocas, que retornam. Drummond é considerado modernista nos manuais de literatura, mas tem essa estética barroca que eu acho absolutamente mineira, porque a alma da região passa para a alma das gentes.