Luta contra a LGBTFobia avança, mas ainda há resistência
Especialista analisa contextos de mudança e aponta importância das conquistas obtidas pelos próprios atores do movimento
Embora o enfrentamento ao preconceito e a busca por garantias e direitos venham produzindo uma série de conquistas para as pessoas trans e travestis, ainda há muitas barreiras a derrubar para alcançar o mínimo. O acesso à educação, principalmente, tem alterado as estruturas e feito com que se repense as relações nos espaços, para que eles se tornem cada vez mais democráticos e acolhedores à diversidade.
A luta histórica de travestis e transexuais ao longo de décadas vem resultando em importantes conquistas nos últimos tempos. Localmente, é possível citar, por exemplo, a iniciativa que oferece psicanálise para pessoas transexuais e travestis pelo Ambulatório Trans, a normatização do uso do nome social – adotada pela UFJF em todos os documentos emitidos pela instituição – e o uso dos banheiros de acordo com a identidade de gênero também dentro da universidade. No país, há a autorização para que o Sistema Único de Saúde (SUS) realize procedimentos médicos, que podem incluir a redesignação para homens transexuais, o reconhecimento da união estável homoafetiva e, ainda, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de criminalizar a LGBTfobia no país. Embora esses acessos sejam muito importantes para essa população, há inúmeras outras demandas negligenciadas, suprimidas e combatidas por alguns setores da sociedade.
Há uma série de situações que geram impasses, como a suspensão do vestibular da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Federal), que aconteceria em três campi, dois no Ceará e um na Bahia, em que vagas seriam especificamente destinadas para candidatos transexuais, travestis, intersexuais e não binários. Por conta de uma intervenção no Ministério da Educação, o processo seletivo, inédito no país, foi cancelado pelo Governo Federal. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) repudiou o ato, ressaltando que a decisão foi motivada por transfobia. A associação pontuou que o grupo é um dos que mais sofre discriminação na sociedade, sendo “vulnerabilizado pela falta de políticas públicas que garantam o acesso a direitos básicos. E a educação é um deles”, destacou a presidente da Antra, Keila Simpson, em nota.
Ativismo judicial
O advogado Júlio Mota destaca que todos os avanços são oriundos do ativismo judicial e não da atuação do Poder Legislativo, por meio de projetos de lei. “Esse fenômeno decorre diretamente da influência das bancadas religiosas e conservadoras que ocupam as casas legislativas, principalmente o Congresso Nacional, e atuam para barrar os projetos que se relacionem às conquistas de direitos pela população LGBTQI+, embora a Constituição Federal preveja a laicidade do Estado.”
Para o professor da Faculdade de Educação da UFJF e um dos líderes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed), Anderson Ferrari, é importante, em primeiro lugar, não perder de vista que todas as conquistas são resultado de uma longa e árdua trajetória de luta e da construção de um movimento. “Podemos marcar que é uma luta datada no período da redemocratização, que fala de alguns momentos importantes. O primeiro deles foi a organização das trans e travestis também em grupos, reivindicando lugar na política das identidades. Isso mudou a configuração do movimento gay no Brasil, que foi chamado de movimento gay por muito tempo, mas deixou de ser. Hoje falamos no movimento LGBTQI+. Além disso, tem uma questão fundamental que desemboca em várias conquistas, que é a entrada e a permanência de transexuais e travestis nas escolas.”
Ainda que se tenha feito conquistas importantes, é preciso lembrar que ainda falta muito. Para Júlio, entre as principais demandas ainda não atendidas estão a promoção e a efetivação da saúde, da segurança e da educação para a população LGBTQI+, especialmente para travestis, homens e mulheres trans. Ele destaca que é necessário que haja atendimento médico e psicológico especializado e de qualidade para atender às especificidades dessa população. “Como no caso da cirurgia de redesignação sexual e hormonioterapia, é preciso capacitação dos agentes públicos para que, no atendimento à população LGBTQI+, estes não reproduzam as violações sofridas anteriormente pelas vítimas, bem como o aparelhamento do Estado para solucionar os crimes motivados por ódio, preconceito e intolerância religiosa, que são agravados pelo alto índice de impunidade. E, por fim, a criação de projetos educacionais que contemplem o respeito às diversidades e às diferenças, que prezem pela dignidade da pessoa humana, pelas liberdades individuais e pelo direito de autodeterminação”.
Subverter pela educação
De acordo com o professor Anderson Ferrari, durante muito tempo, pessoas travestis e transexuais não resistiam à violência a que eram submetidas ao longo da trajetória escolar. “Por muito tempo, a literatura da educação dizia que elas abandonaram as escolas. Mas não foi isso o que aconteceu. Elas eram expulsas das escolas. Agora elas estão resistindo, porque ainda é um ambiente que discrimina. A escola continua sendo preconceituosa. Mas, ao mesmo tempo, nós temos outro contexto no qual as trans e travestis se colocam muito mais, fazendo com que elas resistam ao processo de escolarização e ingressem na universidade.”
Ao chegar a esse ingresso, de trans e travestis nas universidades, conforme o professor, a configuração da instituição é alterada. Mas ele também salienta que, além de chegar, é preciso trabalhar para garantir a permanência. “A universidade começa a olhar para elas e pensar em uma instituição mais democrática, isso é fundamental para que elas continuem nesse meio. As instituições superiores, assim como as escolas, ainda discriminam e são muito preconceituosas. Esse ainda é um espaço social em que trans e travestis sofrem”, frisa Ferrari. Ainda que o ensino superior ainda seja marcado pela discriminação, segundo o professor, é preciso lembrar que o conhecimento é concebido dentro dessas instituições.
“A construção do conhecimento acontece quando problematizamos algo que nós temos. A universidade é o local de darmos um passo atrás, para transformar em problema aquilo que comumente não é. Um dos papéis da universidade é, exatamente, combater o senso comum e, nesse combate, pensar o contexto social e político de formação das identidades que estão construindo os sujeitos transexuais e travestis. Nesse sentido, a UFJF vem caminhando para ser um lugar mais acolhedor e de respeito com as diversas identidades que a compõem.”
Tempos difíceis
Quando as pautas encontram um ambiente de muita resistência, os grupos e os movimentos que lutam pela diversidade sexual e de gênero precisam estar fortalecidos e unidos, porque todos esses direitos e garantias conquistados podem estar ameaçados, conforme salienta o advogado Júlio Mota. Ele recomenda que, diante do cerceamento desses direitos e garantias individuais, o cidadão procure instituições que realizem o acolhimento dessas demandas. Seja, por exemplo, o Centro de Referência de Promoção da Cidadania LGBTQI+, vinculado à Faculdade de Serviço Social da UFJF, a Defensoria Pública e até mesmo um advogado particular para se informar sobre as atitudes a tomar.
“Nos casos em que houver a incidência de crime, como no caso da LGBTfobia, é imprescindível que a vítima registre um boletim de ocorrência, que é o documento que lavra a notícia do crime. Tal registro é importantíssimo tanto para que os fatos sejam apurados através do exercício da Polícia Judiciária, quanto para o registro de dados oficiais que atualmente não são coletados pelo Estado, uma vez que a maioria das delegacias não registra orientação sexual, identidade de gênero, nome social ou até mesmo a motivação do crime, o que inviabiliza o diagnóstico preciso do problema.” Ainda de acordo com Júlio, o reconhecimento devido dos direitos LGBTQI+ acontece via Poder Legislativo, por meio do voto consciência nas eleições. “É necessário, portanto, que haja união para eleger o maior número de representantes com voz e interlocução, que tenham identidade com a causa e realmente defendam os direitos e a cidadania dos corpos dissidentes.”