A história por trás da história
Toda história tem uma outra por trás dela. O caso do Hospital Colônia não foge a essa regra. O desejo de revelar o Holocausto brasileiro ocorrido em Barbacena surgiu, em 2009, dentro de uma sala de seis metros quadrados. Durante uma entrevista com o psiquiatra José Laerte, em seu gabinete na Câmara, onde ele exerce mandato de vereador, o médico tirou um livro da gaveta e me disse: "você precisa ver isto." Bastou o contato com a primeira imagem do livro Colônia para que a senha da indignação fosse acionada . Lembro de repetir, ali mesmo, por diversas vezes, a expressão "não acredito". O impacto que aquelas cenas me causaram foi tão forte, que a vontade de contar essa história me perseguiu por todos os dias que se passaram. Só conseguia pensar que precisava ir até Barbacena e ver de perto o que havia restado do pior capítulo da história da psiquiatria mineira. Me senti na obrigação de contar as novas gerações que o Brasil também registrou um genocídio. Esperei por dois longos anos até conseguir, na correria da redação, uma oportunidade de mergulhar no universo da colônia.
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Em outubro deste ano, iniciei, na companhia do fotógrafo Roberto Fulgêncio, uma viagem a abril de 1961, ocasião em que o fotógrafo Luiz Alfredo, da então revista O Cruzeiro, entrou no hospício de Barbacena. Decidi procurar os sobreviventes daquela tragédia silenciosa, a partir dos flagrantes feitos pelo repórter fotográfico. Cinco décadas depois, existiria alguém vivo? O próprio Luiz Alfredo estaria com quantos anos, já que meio século havia se passado a partir do mais dramático flagrante de sua carreira?
Minhas perguntas começaram a ser respondidas aos poucos. Primeiro em Belo Horizonte. Foi lá que fiz a pesquisa inicial, a fim de obter mais informações sobre a colônia, já que o livro do mesmo nome havia sido viabilizado pela Secretaria de Estado da Saúde, na gestão do secretário Marcus Pestana, em 2008. De lá, parti para Barbacena, onde tudo havia se passado. Após contato com o psiquiatra Jairo Toledo, diretor do atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB) e idealizador do Museu da Loucura, eu e Roberto entramos na antiga Colônia e na vida de José Machado, Marlene Laureano, Maria Aparecida de Jesus, Antônio Sabino, Sônia Aquino e um mundão de gente. Foi com a ajuda dos funcionários do hospital que localizamos os personagens que resistiram a meio século de internação. Cada rosto reconhecido nas fotos de 1961 fazia o coração descompassar. "Quando fazia estágio, em 1978, vi muitos pacientes deitados sobre colchões de capim. Tinha medo deles", revelou Serly Maria da Silva, 61 anos, auxiliar de enfermagem do CHPB, há 21 anos, e que contribuiu com a localização de alguns sobreviventes. As páginas da "Colônia" foram folheadas centenas de vezes por pelo menos uma dezena de pessoas até que chegássemos aos personagens que resistiram ao holocausto e as testemunhas daquele tempo de horror. O ritual se repetia em cada pavilhão do hospital.
Fazenda da Caveira originou hospital
O pavilhão Antônio Carlos, onde tudo começou, foi construído sobre terreno da antiga Fazenda da Caveira, que pertenceu a Joaquim Silvério dos Reis, traidor dos Inconfidentes. Ele ganhou as terras pela delação do movimento e antes de ser Colônia a caveira foi um sanatório para tuberculosos. Desativado, o Antônio Carlos ainda mantém os mesmos cômodos onde, 50 anos antes, seres humanos se arrastavam pelo chão. Restou ao pavilhão vazio, que abrigava a antiga ala feminina, o silêncio. Mas as portas onde, no passado, pacientes eram trancafiados, ainda estavam ali. Difícil imaginar o que sentiu quem viveu em condições tão degradantes, entoando lamentos flagrados no documentário "Em Nome da Razão", de Helvécio Ratton. Aliás, encontrar o cineasta em Belo Horizonte e ouvi-lo relatar os momentos que passou dentro do hospital para fazer o filme que chocou o mundo, em 1979, contribuiu para dimensionar a tragédia. Ratton disponibilizou uma foto sua dentro da Colônia e se lembrou das dificuldades para conseguir viabilizar o projeto. "Como você pode ver na foto, tivemos que improvisar, com espuma e fita crepe, uma proteção acústica para a câmera. Não tínhamos dinheiro para alugar uma câmera com essa proteção de fábrica. O "Em Nome da Razão" foi feito com muita gana e pouca grana", contou.
O jornalista Hiram Firmino, outro ícone da luta pela humanização no atendimento aos doentes mentais no Brasil, também foi encontrado na capital mineira. O autor da série "porões da loucura", publicada, em 1979, no jornal "Estado de Minas", tem uma história de vida tão rica quanto as matérias que publicou. Levou uma paciente psiquiátrica para a própria casa, furou todos os veículos com o flagrante que conseguiu após ir para o endereço errado de uma pauta, o equívoco mais acertado da sua vida. Durante a nossa conversa, Hiram revelou que logo que a série de matérias foi anunciada, ele não conseguia escrever. "Estava bloqueado, porque não sabia por onde começar diante de tanto horror. Um colega da redação me disse: apenas descreva o que viu, sem adjetivar, porque a matéria é forte por si só", comentou.
Localizei Luiz Alfredo, em Niterói, aos 77 anos, e descobri que além de bom fotógrafo ele é uma grande figura humana. Comoveu-se por, 50 anos, depois, ainda emocionar com o seu trabalho. Ao final da conversa, nós dois estávamos com a voz embargada.
Depoimentos resgatam a rotina
Na peregrinação pela antiga Colônia, hoje hospital regional, o primeiro encontro foi com Machadinho, o paciente número 1.530, reconhecido nas imagens de Luiz Alfredo. Com 80 anos, ele precisa de cadeira de rodas para se locomover. Ao abordá-lo, ele mirou fixo meus olhos, mas não quis falar. Fechado dentro de si mesmo, talvez tenha guardado num canto da memória tudo que passou naquele campo de concentração até conhecer um pouco de dignidade. Aí veio Marlene Laureano, antiga funcionária, e o encontro com os outros sobreviventes, Antônio Sabino e Maria de Jesus. No caminho para os módulos residenciais, que fizemos a pé, Marlene confidenciou. "Para mim é muito difícil falar sobre o que se passou aqui. Nunca contei em casa o que ocorria no hospital. Só aguentei, porque acreditava num futuro melhor com cama e comida para todos. Aconteceu."
Diante de uma tragédia com um saldo de 60 mil mortos, a história de uma funcionária que se apaixonou por um paciente da Colônia foi uma pausa. Como ela não pôde viver sua paixão, após a morte do interno, guardou por mais de 20 anos o crânio dele. Era vista nos barzinhos de Barbacena tomando cerveja com o crânio do amado ao lado. Como estava ficando "falada", foi convencida a doar a caixa óssea para o Museu da Loucura. A história é real e o crânio está lá para quem quiser comprovar.
Na volta a Juiz de Fora, partimos para a localização dos psiquiatras que testemunharam o massacre da Colônia. Ronaldo Coelho, Wellerson Alckmim, Antônio Simone, Paulo Henrique Resende Alves, Francisco Paes Barreto, todos residentes em Belo Horizonte. Um a um eles foram sendo encontrados e com seus depoimentos ajudaram a reconstituir a rotina de Barbacena. Ronaldo, autor de dezenas de livros infantis, fez um conto sobre um paciente internado na colônia aos 13 anos de idade, após ser flagrado pelo pai se masturbando. "Ele é baseado em fatos reais. Esse adolescente esteve com um médico por duas vezes. Uma quando deu entrada no hospital, com diagnóstico de onanismo, considerado uma das causas da loucura, na época. Outra, aos 75 anos de idade, quando morreu. No atestado de óbito, o diagnóstico foi de esquizofrenia, dado por um médico que nunca havia visto ele", revela. Ronaldo convidou o filósofo francês Michel Foucault para vir ao Brasil, em 1979, em função da publicação de seus trabalhos que tiveram a loucura como tema. Na troca de dezenas de telefonemas com Ronaldo, descobri, ainda, que ele viveu em Juiz de Fora na juventude. "Foi a única cidade onde passei fome, porque a comida do Exército era horrorosa", divertiu-se.
"Sorôco, sua mãe, sua filha"
É de Guimarães Rosa a expressão "trem de doido" incluída no conto "Sorôco, sua mãe, sua filha", do livro Primeiras Estórias. Ali o autor resume a situação dos trens que chegavam a Barbacena apinhados de gente "em busca de tratamento psiquiátrico". Ele conta a angústia do personagem Sorôco na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. O importante escritor brasileiro, aliás, morou em Barbacena, em 1933, quando foi oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria. O simbolismo da loucura em seus contos são indício de que Guimarães Rosa conhecia a realidade da Colônia. O psiquiatra Francisco Paes Barreto entra no mundo ficcional de Guimarães Rosa e consola Sorôco em carta endereçada ao personagem. "Meu querido Sorôco, esteja onde estiver, quero que ouça o que tenho a lhe dizer. Visitei hoje o lugar onde morreu sua mãe, onde morreu sua filha, onde morreram as mães, os pais, os filhos e os irmãos de um incontável número de pessoas. Sabe o que encontrei lá? Um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Um hospital regional de clínica médica e cirúrgica. Um centro social urbano. Uma escola. (…)Do que havia do antigo hospital resta apenas um edifício imponente, que é a principal atração turística da cidade. Chama-se Museu da Loucura. Está aí exatamente para não deixar esquecer, para registrar uma época. É um templo dedicado à loucura. Não à loucura de pessoas como sua mãe, sua filha, mas a nossa loucura, Sorôco, à loucura dos chamados normais."
"Que Deus nos livre de nós mesmos"
Cheguei a ouvir a crítica de que denunciar o Holocausto brasileiro seria como uma exumação. Respondi que a história precisa ser desenterrada todas as vezes que a indiferença ameaçar passar uma borracha sobre ela. Quando o genocídio da colônia veio à tona, descobri que milhares de pessoas não tinham perdido a capacidade de se indignar. Holocausto brasileiro foi uma das matérias mais acessadas no site do jornal nos últimos tempos. Nas bancas de jornal, leitores passaram a fazer reservas da edição para não ficar sem o exemplar da série. Recebi dezenas de comentários sobre a descoberta do destino de familiares após a publicação da série.Blogs do país reproduziram a série.
A resposta dentro da redação da Tribuna antecipou um pouco o impacto nas ruas. Todos os dias, ao chegar no jornal, era abordada por colegas de trabalho que faziam questão de externar o seu choque com as revelações e saber o que seria revelado no dia seguinte. Por e-mail, o psiquiatra juizforano Uriel Hecket considerou a série um alerta. "O benefício maior que antevejo nesta iniciativa jornalística é o de alertar-nos para o que se está praticando hoje sob o respaldo dos proclamados avanços científicos e dos novos dispositivos assistenciais. A experiência pretérita deve nos alertar para os riscos inerentes a todas intervenções humanas; e isso não só no campo da saúde, mas também nas demais áreas do saber. Até os bons projetos e as boas intenções tendem a deturpação, em decorrência da miserável condição de nós humanos. Que Deus nos livre de nós mesmos."