Escola resgata memória do Dom Bosco junto a alunos

Através de histórias de moradores do bairro, Escola Municipal Álvaro Braga de Araújo exibe herança cultural do bairro nas salas de aula


Por Elisabetta Mazocoli, estagiária sob supervisão da editora Rafaela Carvalho

26/06/2022 às 07h00

O Bairro Dom Bosco é muitas vezes associado por parte dos juiz-foranos a um lugar de criminalidade e violência. Mas o projeto “Corredor Cultural”, organizado pela Escola Municipal Álvaro Braga de Araújo, mostra que o Dom Bosco é muito mais. Desde abril, alunos de 4 a 10 anos estudam como o bairro se formou, conhecendo sua herança cultural e ouvindo histórias dos próprios moradores, que ensinam muito sobre a vida de lá. E o que aprenderam se transformou em exposição escolar, aberta a toda a comunidade na última semana. A proposta da escola é mostrar a importância de conhecer o passado, para construir um futuro melhor, podendo alterar a trajetória de cada um dos alunos nesse processo.

A coordenadora da Escola Álvaro Braga, Tânia Moreira, conta que a ideia do “Corredor cultural” surgiu quando uma das professoras do quarto ano do ensino fundamental começou a estudar uma das temáticas do currículo para a série, que é justamente conhecer o bairro. Ela percebeu, então, que os alunos sabiam pouco sobre a formação do local, e que conhecer mais sobre essa história poderia até mesmo aumentar a autoestima deles, já que vivenciam a realidade de um bairro que, além de lidar com problemas reais, sofre muitos preconceitos pela sociedade. A partir desse momento, toda a escola passou a abraçar a ideia e querer trazer mais atividades para a sala de aula.

Desde então, foram convidadas diversas pessoas do bairro para contar suas histórias e trajetórias de vida. Tânia explica que o objetivo era chamar pessoas com vivências distintas, “valorizando as possibilidades que os estudos podem trazer e reforçando a importância das crianças permanecerem em sala de aula”. Para a coordenadora, uma das partes mais importantes desse processo foi de os alunos conhecerem caminhos que podem seguir futuramente, que muitas vezes não vislumbram, devido às circunstâncias socioeconômicas de vulnerabilidade em que se encontram.

Muitos moradores conhecidos do bairro, cujas histórias quase ninguém conhecia, e até pessoas que os alunos jamais imaginaram que haviam nascido ali, passaram pelo “Corredor cultural”: um grupo de garis, uma escritora, um padeiro, um senhor que dá informalmente nome à rua do bairro e ainda as tradicionais lavadeiras da região, cada um com sua história, apresentando suas vivências e incentivando os alunos a olhar o bairro com novos – ou antigos – olhos.

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Alunos de 4 a 10 anos realizaram um “Corredor cultural”, mostrando, através de cartazes, esculturas, exposição de fotos e música, o que aprenderam através do projeto (Foto: Leonardo Costa)

Personagens da história de Juiz de Fora

Conhecer as histórias de pessoas comuns e inspiradoras, é também conhecer uma parte importante da história de Juiz de Fora. O padeiro apelidado de Leo, conhecido no bairro por sempre entregar os pães no mesmo horário, por exemplo, disse firme para os alunos: “Eu saí da roça, e a vida me deu muitos caminhos pra eu trilhar. Eu escolhi o meu”. Os garis, por sua vez, vieram todos animados e até fantasiados, falando que “lixeiros” são aqueles que produzem o lixo – eles são as pessoas que recolhem o lixo.

Já as lavadeiras contaram sua história como mulheres já mais idosas e que, em geral, viveram boa parte da vida como mães solo, que lavavam roupas para dar o que comer aos filhos. Já o “seu Genô”, filho de uma delas, homem que até nomeia uma rua, é quase uma lenda local e também contou sobre sua vida e sobre como lembra de todo o bairro em várias épocas diferentes. A escritora Ellen de Paula Moreira, autora do livro “A mala maluca da vovó Zenilda”, se orgulha de lembrar das suas raízes, filha de uma mulher analfabeta e que possibilitou que ela pudesse viver escrevendo.

Todas essas histórias começaram, como conta a diretora da escola, Sandra Rocha Martins, em um local que os mais velhos dizem que era um quilombo – justamente um espaço de resistência dos negros que foram escravizados. Para ela, esse é um dos motivos inclusive pelo qual o bairro tem uma herança cultural tão importante, ainda que pouco rememorada pela população. Na opinião de Sandra, a importância desse projeto é justamente que as crianças possam “fazer um resgate da memória e da cultura do bairro, para trabalhar essa identidade”.

Segundo a diretora, a maioria dos alunos não fazia ideia dos lugares que eram lembrados pelos moradores mais antigos e nem sabia dessa herança cultural que ainda está viva. O ensino se deu a partir, então, dessas conversas que geraram trabalhos das próprias crianças. “Os alunos do quinto ano, por exemplo, fizeram uma paródia de música com tudo que aprenderam com os moradores. Já outras séries fizeram cartazes, esculturas e até exposição de fotos.”

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Um dos trabalhos realizados dentro do projeto (Foto: Leonardo Costa)

A perda dos espaços de lazer

A diretora Sandra Rocha Martins, que está há dez anos na Escola Álvaro Braga de Araújo, explica que o projeto era um sonho antigo. Para ela, é importante que as crianças saibam da quantidade de espaços de lazer que existiam no bairro e que foram sendo tomados aos poucos. “O Dom Bosco é bem próximo de bairros prestigiados e de grandes construções frequentadas pela classe média, mas quem mora aqui foi sendo excluído desses espaços”. Ela cita como exemplo a Curva do Lacet, que era um espaço importante de brincadeiras para as crianças do bairro e que foi perdido.

“Esses espaços foram retirados e não tiveram outros para substituir. Aqui perto temos uma pista de skate, por exemplo. Mas quem aqui tem condições de ter um skate? São poucos”, questiona Sandra. A coordenadora Tânia Moreira mostra a mesma preocupação com a falta de espaços para os alunos e observa que o pouco que há, “foi tomado pela criminalidade, e as crianças não frequentam”.

Tânia também aponta que há espaços em Juiz de Fora próximos ao Dom Bosco que não foram feitos para que as pessoas do bairro possam frequentar. “Se os jovens chegam, são seguidos. Não deixam entrar, olham feio, como se eles não pertencessem ao lugar.” As duas lamentam a forma como as crianças crescem sem esse contato com espaços mais livres, que as gerações anteriores já tiveram.

Para diretora e coordenadora, é importante desenvolver esse pensamento crítico e permitir que as crianças saibam a identidade do local em que vivem. “Queremos formar seres humanos, antes de tudo”, afirma Tânia.

Colégio luta para incentivar o futuro das crianças

Tânia Moreira afirma que, enquanto coordenadora, também sabe a importância de mostrar para os alunos, que são em sua maioria negros, “que eles têm caminhos para ser o que quiserem”. Ela diz que o papel de uma escola, como a Escola Municipal Álvaro Braga de Araújo, é justamente incentivar os sonhos dos estudantes e mostrar que a educação pode mesmo mudar vidas – assim como mudou, por exemplo, a da escritora que foi até a escola e de tantas professoras que trabalham ali. “Se você é negro e pobre em uma comunidade como o Dom Bosco, alguém tem que acreditar em você. E a escola acredita”, diz.

Para ela, fazer com que eles vejam que, mesmo com todo o preconceito que existe contra o bairro, há pessoas que lutam pela sua melhoria, também faz com que possam se pautar em exemplos de pessoas como eles – seja qual for a profissão delas. “São essas crianças que hoje podem mudar a realidade do bairro”, afirma.

‘Muito perto do centro, mas distante da realidade central’

A direção da escola comemora o envolvimento de professores, alunos, familiares e toda comunidade no projeto. “E as pessoas vieram mesmo”, conta emocionada a diretora Sandra Martins. A assistente comercial Glauciane Chagas, mãe de uma das alunas da escola, participou do “Corredor cultural” e fala de sua experiência. “A maioria da população é negra, então a gente tem que conhecer a história de onde viemos. Antigamente, não aprendíamos nada sobre isso na escola. Eu tenho 31 anos e não sabia como surgiu o bairro, descobri pesquisando junto com a minha filha, conversando com os mais velhos. Foi uma oportunidade pra mim também.”

Sandra afirma que, avaliando “os frutos que já estão nascendo”, o projeto não vai ficar apenas no “Corredor Cultural”. “Queremos chamar a atenção do poder público e discutir projetos de lazer para o bairro”, avisa. Para o segundo semestre, há expectativa de desenvolvimento de mais atividades, porque, segundo a diretora, é preciso lembrar que o Dom Bosco “está muito perto do centro, mas distante da realidade central”.

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