Triplicam casos diários de violência contra mulher
Com olhos assustados, inundados de lágrimas e mãos em movimentos repetidos, como se a qualquer momento fosse ser surpreendida por mais um ato violento, uma mulher, de 32 anos, conta como foi agredida pelo namorado, ao buscar ajuda no setor de atendimento da Delegacia de Mulheres. Uma cicatriz na testa não a deixa esquecer o episódio ocorrido logo aos cinco meses de relacionamento, quando empurrões e puxões já eram rotina entre o casal. Vítima do mesmo tipo de violência, uma dona de casa, 36, desabafa que, além de marcas físicas, as agressões deixaram traumas, como o ocorrido no último dia 7, um dia antes da data em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Após inúmeros tapas, socos e tentativas de reconciliação, ela também buscou auxílio.
As duas personagens dessas tristes histórias estão entre as 78 vítimas de violência que procuraram a Casa da Mulher apenas na semana do dia 8 de março (entre os dias 6 e 10). Isso significa que, em média, foram 15 vítimas diárias de estupros, torturas, espancamentos, humilhações e outras formas de agressão doméstica em Juiz de Fora. Anteriormente, a média era de cinco casos diários, conforme reportagem divulgada em janeiro pela Tribuna, em que foram contabilizados os registros de quatro anos e meio da Casa da Mulher. Ou seja, na comparação entre os dados de janeiro e os de agora, há três vezes mais casos diários.
Essa realidade é ainda mais grave se for levado em conta que os atos violentos aconteceram justamente nas companhias de quem elas deveriam se sentir seguras, já que a maioria dos agressores são os próprios companheiros ou namorados. Na avaliação da coordenadora da Casa da Mulher, Maria Luiza Moraes, os altos índices de registros se devem, principalmente, ao encorajamento das vítimas. Ainda de acordo com ela, desde que assumiu a coordenadoria da unidade, em fevereiro deste ano, a média tem sido de 80 atendimentos semanais. “Apesar de assustadores, os números expressam a mudança de postura por parte delas, que estão buscando providências contra os agressores.”
Levantamento sobre a violência contra a mulher feito pela Polícia Militar a pedido da Tribuna também aponta um alto número de casos na semana de 5 a 11 de março. Foram 108 ameaças e lesões corporais. Uma delas ocorreu no dia 6 de março, quando um homem, 25, acabou preso em flagrante após ameaçar de morte e agredir a companheira, 28. O crime foi registrado no Bairro Retiro, na Zona Leste. A vítima foi torturada e golpeada na cabeça com uma garrafa de café. O suspeito ainda teria jogado o líquido quente sobre a mulher, causando queimaduras. A bebê, filha da vítima, acabou sendo atingida pela bebida, ficando com a pele avermelhada. De acordo com o documento policial, antes de praticar as agressões, o suspeito disse que iria buscar uma arma para matá-la e retornou com um objeto na cintura. Ela disse à PM que não era a primeira vez que sofria agressões do companheiro.
Medidas de proteção
Entre os pontos considerados essenciais da Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, estão as medidas protetivas (ver quadro). Elas podem ser concedidas, mesmo antes do julgamento do caso, sempre que a vítima estiver em situação de violência doméstica. A finalidade é protegê-la contra novas agressões, além de tentar cessar esse tipo de crime. Entre os dias 6 e 10 de março, foram solicitadas, à Polícia Civil de Juiz de Fora, 87 medidas protetivas. Outras 25 partiram da Casa da Mulher, nessa mesma semana.
‘Medo do que está por vir’
“Fui agredida pelo meu marido, e isso já tinha acontecido outras vezes.” Com um relacionamento de dois anos, a dona de casa, 36, desempregada, não tinha procurado ajuda até o último episódio de violência vivido dentro de sua própria casa. Segundo ela, a demora em pedir socorro era por acreditar nas promessas de mudança do companheiro e nas demonstrações de arrependimento. No dia 8 de março, ela não teve nada a comemorar, já que a data foi marcada por hematomas e a residência toda quebrada. Após o ocorrido, o homem foi embora, no entanto, diante das constantes ameaças, ela foi obrigada a se refugiar na casa de sua mãe. “No início, as pessoas me disseram que ele era um homem violento, mas pelo trato carinhoso comigo, não acreditei. Após alguns socos, mudei para perto de minha família, acreditando que não aconteceria mais, só que não foi assim. Tenho medo do que está por vir.”
Medo é o estado diário em que vive outra vítima de violência doméstica. A dona de casa, 32, não consegue esquecer a violência que sofreu do namorado. “Toda vez que olho no espelho, vejo essa cicatriz na minha testa.” Tudo começou com puxões e tapas. Após cinco meses juntos, ela teve jogado contra sua testa um chaveiro, durante uma discussão. “O sangue começou a jorrar e tive que levar três pontos.” Após o episódio, o casal rompeu a relação e, logo depois, ela decidiu reatar mas, segundo ela, pouca coisa mudou. Com um ano de namoro, as agressões voltaram e os tapas viraram chutes, garrafadas e socos. Não aceitando tal situação, ela passou a revidar. “Registrei uma ocorrência, mas por acreditar na mudança dele, desisti de dar continuidade”, disse a mulher, que mais uma vez foi vítima do comportamento agressivo do companheiro. “Até dentro de casa ele me oprime. Me obriga a conversar, não me deixa dormir, já não posso sair com meus amigos. Brigamos por motivos fúteis e por isso, pensei em deixar a casa, porém minha situação financeira não me permite.”
Segundo a coordenadora da Casa da Mulher, Maria Luiza Moraes, a principal motivação para que as mulheres não deem continuidade aos processos judiciais e retornem às relações violentas suportando agressões físicas, sexuais, morais e psicológicas é a dependência financeira de seus parceiros. “Estamos estudando um mecanismo para a inserção dessas vítimas no mercado de trabalho e ampliação dos nossos serviços. No entanto, a casa não tem por finalidade a manutenção das mulheres carentes de recursos. Nosso papel é fortalecê-las psicologicamente, amparando-as com advogados, fazendo daqui um ambiente seguro para o registro de ocorrências.”
Dificuldades
Neste sentido, a vereadora e delegada Sheila Oliveira (PTC) diz que as dificuldades no combate à violência são grandes. “Apesar dos avanços, enfrentamos muitos problemas, como a questão cultural, a falta de investimentos em políticas públicas em prol das mulheres, além do machismo, que é a mola propulsora de toda essa violência.” A delegada considera a falta de efetivo a maior barreira enfrentada pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher , que funciona conjugada à Casa da Mulher com atendimento multidisciplinar, tratamento psicológico, advogados e assistência social. “A especializada tem o maior número de investigadores, e, mesmo assim, ainda é pequeno. Precisamos ampliar o atendimento com mais policiais civis e tornar realidade um plantão de atendimento, uma vez que a unidade funciona em horários específicos, não incluindo os finais de semana.”
Na região, 30 casos diários de violência
Aproximadamente 30 mulheres são vítimas diárias de estupros, torturas, espancamentos, humilhações, homicídios, roubos e outras formas de agressão no ambiente doméstico e familiar nos 86 municípios, incluindo Juiz de Fora, que compreendem a 4ª Região Integrada de Segurança Pública (4ª Risp). A estimativa refere-se ao ano de 2016, quando foram registrados 11.047 casos e 32 mortes. Nos últimos três anos, foram quase 34 mil ocorrências de crimes relacionados à violência ligada ao gênero feminino. Dessa forma, a existência de violência é identificada considerando as espécies de relacionamento entre vítima e autor, que configuram relação doméstica ou familiar nos termos da lei. É o que mostra o Diagnóstico da Violência Doméstica e Familiar de Minas Gerais 2015/2016 divulgado às vésperas do Dia Internacional da Mulher pela Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp).
Embora os números globais de ocorrências apresentem queda, quando analisados ano a ano, 2014 (11.746), 2015(11.194) e 2016 (11.047), a delegada de Mulheres, Ângela Fellet, acredita que, desde o ano passado, as denúncias com relação direta à Lei Maria da Penha têm aumentado devido ao empoderamento das mulheres. No entanto, ainda há muita subnotificação. “Está crescendo o número de denúncias, o que não significa que os casos têm aumentado da mesma forma. As denúncias que estão surgindo atualmente são de mulheres que vinham sofrendo agressões há anos, mas só agora tiveram coragem para procurar ajuda.” A atuação da Polícia Civil se dá no âmbito da investigação, ou seja, após a ocorrência do crime e, dessa forma, a delegada acredita que os pedidos de prisão e a apuração com celeridade são a melhor forma que a instituição encontra para frear os episódios.
Já para Sheila Oliveira, Juiz de Fora se diferencia com relação a esses dados, pois, na cidade, os trabalhos da Casa da Mulher com a Polícia Civil representam a porta de entrada e apoio às vítimas. Trabalho conjugado que elas não encontram em outras localidades. “A questão da violência doméstica envolve sentimento, questões patrimoniais, psicológicas e interferem nesses números. Os registros deste tipo de ocorrência são delicados”, finalizou.
Preocupação além dos crimes sangrentos
O feminicídio ocorre quando o gatilho é acionado contra uma mulher apenas por ser mulher. No entanto, não são somente os crimes sangrentos que fazem vítimas. A cultura machista e patriarcal, que reverbera até os dias atuais e ainda impera no convívio social, está ligada diretamente ao que estudiosos classificam como violência simbólica. A degradação da imagem da mulher na mídia através da publicidade, na qual ela pode ser comprada e vendida, tem influência no comportamento da sociedade. Dessa forma, a violência simbólica é considerada aquela invisibilizada e naturalizada.
Para erradicar este tipo de violência, a professora da Faculdade de Comunicação da UFJF, Cláudia Lahni, que é também uma das coordenadoras do coletivo feminista e grupo de pesquisa Flores Raras, acredita que o caminho para a mudança desse cenário está na ampliação das formas de comunicação e reflexão e investimentos em políticas públicas em prol das mulheres, uma vez que muitas não se dão conta de que a figura delas é usada apenas para contribuir com a venda de determinado produto. Ampliar o diálogo sobre a violência contra o sexo feminino é o que também pretende o Centro de Pesquisas Sociais (CPS) da UFJF. Segundo a diretora, Célia Arribas, há um hiato entre dois universos – o acadêmico e o da prática da segurança pública-. “Estamos mapeando os coletivos feministas da cidade para levantar as principais demandas e encontrar resoluções.”
Na avaliação de Cláudia Lahni, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff contribuiu ainda mais para a desvalorização da mulher e do universo feminino. “Apesar de eu não ter pesquisas sobre isso, acredito que o fato colaborou para o crescimento da violência simbólica. Neste sentido, precisamos dizer não a essa situação de golpe, que é machista e misógina”, assevera a pesquisadora, acrescentando que a sociedade precisa aceitar e entender que o lugar da mulher é na política, na economia, nos cargos de chefia e em todos os setores sociais. “Homens e mulheres precisam viver em harmonia.”