Para especialistas, é hora de reforçar isolamento e não retomar atividades
Em debate da CBN, infectologista e pesquisadores temem por uma piora do cenário da Covid-19 em Juiz de Fora
Apesar da pressão pela retomada das atividades em Juiz de Fora, o isolamento social é destacado por especialistas como medida fundamental para conter o avanço do coronavírus na cidade. O aumento significativo de casos confirmados na semana passada, que representou quase 30% do total de infectados no município desde o início da pandemia, já havia sido destacado em reportagem da Tribuna nesta terça-feira (23) e voltou ao centro da discussão em debate promovido pela Rádio CBN. O total de infectados chega a 1.415 e ainda há 6.887 suspeitas da doença, que já causou 52 óbitos na cidade, segundo dados da Prefeitura divulgados até terça-feira (22).
Mesmo perante a angústia da população, adotar medidas mais restritivas, como o lockdown, não é descartada pelos especialistas que participaram do programa: o infectologista Guilherme Côrtes; o pesquisador do Departamento de Estatística da UFJF e idealizador da plataforma virtual JF Salvando Todos, Marcel Vieira; e o doutorando em Física pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), que está na Espanha, Wesley Cota. Ele desenvolveu uma base de dados sobre a evolução da Covid-19 no Brasil, que tem sido fonte de referência para organizações científicas e para importantes canais de comunicação do país e do mundo, como o jornal “The New York Times”.
Marcel destacou que o aumento de infectados em Juiz de Fora, na semana passada, foi muito grande. “Tivemos 386 novos casos confirmados (do dia 14 ao 20) e sete vidas perdidas. Vamos tentar entender o que está por trás dessa evolução tão rápida”, disse ele, sobre a próxima nota técnica da UFJF, que poderá ser divulgada nesta quarta. “Vamos ter um olhar especial para a Macrorregião Sudeste, onde Juiz de Fora se insere. O número de casos por milhão de habitantes é maior do que em Minas. É uma região que se destaca e preocupa.”
Para Marcel, Juiz de Fora vive processo de aceleração semelhante aos de outras regiões do país. “Estamos observando, não apenas em Juiz de Fora, desde a semana passada, mas também em São Paulo, Rio, Espírito Santo e no estado de Minas todo, esse processo de reaceleração do crescimento dos números. A cidade sempre foi considerada muito bem localizada, por estar entre Rio, São Paulo e Belo Horizonte. E estamos vivendo esse contexto. Não estamos em uma bolha protegidos.”
O infectologista Guilherme Côrtes afirma que a disponibilização de dados feita de forma independente, com base nos números oficiais, como tem sido realizada por Wesley e Marcel, é fundamental para entendimento do cenário. “Se não há dados, não há como haver tomada de decisões, principalmente em relação a uma doença tão dinâmica como a Covid-19. O processo de decisão tem que ser reestruturado semanalmente.” O infectologista lembrou que a realidade pode ser ainda mais grave, porque há subnotificação. “Em primeiro lugar, por falta de testagem. Em segundo, pelas características dos testes e as chances de falso positivo. Em terceiro, pela estratégia de testagem: só testamos, ao longo desses três meses, os pacientes internados. Não testamos a comunidade. Portanto, a subnotificação é incrível.”
Côrtes avaliou que os dados oficiais divulgados são “lacônicos”, mesmo com toda a capacidade atual de análise estatística e epidemiológica, além da rapidez das ferramentas: “Acho completamente anacrônico o tipo de relato estatístico epidemiológico que os órgãos públicos fornecem, diante do que pode ser feito.” Ele reforçou a necessidade da transparência, em tempo real, para que a população entenda os riscos, já que a percepção da gravidade há três meses era maior, quando na verdade o perigo atual é crescente. “Em março, o isolamento social, às custas da própria população, funcionou. Hoje em dia, não funciona mais. Talvez as pessoas estejam escutando o que querem: vamos abrir, vamos afrouxar, está tudo controlado. E foram voltando às ruas.”
O infectologista observou que, se já estamos em Juiz de Fora com mais de 80% de ocupação dos leitos de UTI SUS, fica clara a questão de oferta e demanda. “Nossa capacidade de aumentar leitos de UTI (com recursos humanos, espaço físico e respiradores) não aumenta na mesma proporção geométrica da curva. É impossível ofertar leitos na mesma velocidade da evolução da doença e de casos graves. Portanto, temos que agir na prevenção. Neste momento, significa ser rigoroso, intensificando as medidas de isolamento.”
‘Redução de isolamento relacionada a aumento de casos’
O pesquisador da UFJF, Marcel Vieira, falou da angústia daquela parcela da população que aderiu às medidas de isolamento. “A pergunta sempre feita é: quando vamos atingir esse pico, estimado para maio, junho e agora julho? É importante entender os limites desses modelos estatísticos e epidemiológicos, que são tentativas de entender a evolução dos números, levando em consideração diversos fatores, como os números de testagens e de positivados. Outra questão é essa dinâmica da adesão ao isolamento social, que hoje é uma, amanhã é outra. Por isso, a necessidade de estarmos sempre atualizando essas previsões. Mas mesmo que a gente nem sempre acerte quando será esse pico, algumas mensagens são importantes. Já está claro que uma redução da adesão ao isolamento social está relacionada ao aumento do número de casos. Em Juiz de Fora, tínhamos algo em torno de 60% em abril e caiu para um pouco menos de 50% na última semana. É uma queda de 10%, acompanhada de aumento dos casos e dos óbitos.”
De acordo com Marcel, estudos de outros países indicaram que, para serem eficientes, as medidas de isolamento social devem atingir, pelo menos, 70% da população. “Nos momentos em que estivemos próximos disso, chegamos a 60% em Juiz de Fora.” Segundo ele precisa haver combinação de alta taxa de isolamento social com baixa taxa de pessoas contaminadas por outras, para um possível afrouxamento. “Entendo a angústia, que eu também sinto, de estarmos em casa isolados. Já são três meses, e entendemos que parcela substancial da população tem que sair para trabalhar. Por outro lado, vemos muitas pessoas saindo sem necessidade, com relatos de aglomerações, festas, encontros.”
Ainda sobre o pico, Marcel disse que este pode não acontecer claramente no Brasil. “Pesquisadores estão dizendo que talvez não tenhamos um pico claro. É como se tivéssemos em uma montanha russa, com vários picos e quedas, justamente pela falta de adesão mais forte ao isolamento social.” O professor Wesley Cota também corroborou a dificuldade de se prever o pico da doença, já que envolve variáveis, como o comportamento humano e os níveis de testagem.
Wesley construiu uma base de dados por município, que não eram divulgados pelo Ministério da Saúde, mas sim pelas secretarias de Saúde estaduais. “Minha ideia foi divulgar os dados de uma maneira mais clara. As secretarias, por exemplo, divulgam os números de recuperados, e eu os agrego de maneira única.”
‘Querem reabrir, quando deveriam fechar’
O infectologista Guilherme Côrtes acredita que o Brasil pode enfrentar problemas semelhantes ao que a Espanha encarou, justamente por não adotar medidas restritivas mais enfáticas. “O Estado tem que intervir, não adianta esperar que as pessoas adotem as medidas. Isso não funcionou nem na Espanha, nem na Itália. Não vai funcionar no Brasil.”
Ele destacou que, mesmo tardiamente, a Espanha fez um lockdowwn, com a intensificação das medidas de isolamento social para, posteriormente à queda da incidência de casos, permitir um afrouxamento. “Aqui, essas medidas foram adotadas sem que houvesse queda da incidência, durante ascendência da curva, somente considerando que a subida da curva estava lenta. Por tudo o que sabemos de doenças infecciosas, foi minimamente imprudente tomar uma atitude dessas.”
Wesley destacou que, mesmo tardiamente, na Espanha, houve lockdown completo, inclusive na área rural. “Ficamos um mês sem poder sair de casa sem justificativa e mais um mês com lockdown mais flexível, de evitar sair. Como ficamos realmente trancados por um mês, a situação se reverteu nessa primeira onda. Estamos em uma fase em que o número de novos casos e óbitos é muito baixo. No Brasil, não estamos em um lockdown. A grande maioria das cidades está em uma coisa parcial: você evita sair de casa, mas não há nada para punir. Isso ajuda a reduzir os casos, mas não é suficiente. Ainda na percepção de Wesley, no Brasil, “as cidades do interior se fecharam muito cedo e, agora que é o momento crítico, quando os casos estão crescendo, os políticos estão falando em reabertura”.
O pesquisador Marcel pontuou que todos os estudos concordam em uma coisa: “O número é subnotificado. Para cada teste positivo, o número de pessoas doentes poderia ser de seis a 12 vezes maior. Temos pouco mais de 1,1 milhão de casos no Brasil, então poderíamos ter entre seis e 12 milhões de pessoas que já foram contaminadas.”
Sobre atingir os falados 70% de contaminação da população – que seria uma das formas de se obter o controle da epidemia, por meio da probabilidade de diminuição da transmissão, porque a maioria das pessoas já estaria imunizada -, Marcel espera não precisar dessa “imunidade de rebanho”. “Pensar que 70% da população seja contaminada é imaginar que teríamos mais de um milhão de vidas perdidas. Precisamos ter medidas que impeçam de chegarmos a esses números, uma solução por outras vias.” Em relação à “imunidade de rebanho”, Côrtes ponderou que nem é certo que o coronavírus cause imunidade. Segundo ele, por enquanto, há evidências da queda progressiva da imunidade em três meses. “Pode ser que a Covid-19 se comporte semelhante à gripe ou a outras infecções por influenza, que não conferem imunidade total.”
Ampliação de testes e rastreamento de contatos
Segundo o infectologista Guilherme Côrtes, a intensificação da testagem, com os devidos rastreamentos de contatos, é fundamental para se pensar em uma retomada gradual das atividades. “A questão é que critério adotar, na ausência de possibilidade de testagem. Podemos usar o critério de casos suspeitos, de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) como definição de caso. Portanto, é possível, mesmo sem testagem, implementar o ‘contact tracing’ para reabertura.”
Também para o serviço de saúde funcionar melhor, o infectologista apontou a necessidade de testar recorrentemente todos os profissionais de saúde, os quais, na visão dele, deveriam atuar de forma exclusiva em cada instituição, sendo separados aqueles que atendem os casos de Covid. “Essa é a única forma, com segurança, de retomarmos com as cirurgias eletivas e outros procedimentos necessários. Senão, teremos cada vez mais profissionais de saúde infectados, sendo vetores para outros profissionais e pacientes.”
O pesquisador Marcel reforçou que estão testando pouco no Brasil e, ainda menos, em Minas. “Não são só os países desenvolvidos que testam. O Peru está testando quase quatro vezes mais do que nós. Uruguai também.” Porém, ele disse que apenas testar não é suficiente. “Precisamos de uma estratégia que combine uma ampliação da testagem com esse rastreamento dos contatos daqueles que testaram positivo ou, pelo menos, daqueles que contataram pessoas suspeitas.”
Para reforçar a necessidade do isolamento, Côrtes analisou que a Covid-19 é transmitida essencialmente por vias aéreas. “Quanto maior for o meu contato com pessoas, maior a probabilidade de eu transmitir ou adquirir Covid-19.” Como exemplo, ele citou que o comércio aumenta a probabilidade de as pessoas se encontrarem. “Alternativas, como delivery, minimizam esse contato. As medidas sanitárias, como uso de máscara, álcool gel e distanciamento, diminuem o contágio, mas não funcionam tão bem na prática como o clássico isolamento social, com as pessoas não indo às ruas. Os dados são necessários para serem tomadas decisões seguras para a população, ressaltando que as medidas sanitárias tradicionais não são suficientes para o retorno às atividades.”
Tópicos: coronavírus