Ameaças de ataques a escolas levam a reflexão sobre causas e motivações
Para especialistas entrevistados, esse tipo de ameaça visa justamente causar pânico entre a população, apesar do crescimento real dos casos
Quando o educador Cláudio Melo foi buscar a filha na saída da escola no começo de abril, a menina o surpreendeu com uma pergunta: “Por que estão querendo matar crianças?”. O questionamento da menina de 8 anos surgiu graças às últimas ondas de ataques a escolas, como aqueles ocorridos em Blumenau (SC), Suzano (SP) e Realengo (RJ), que fizeram com que o assunto também aparecesse entre as próprias crianças. O pai foi pego de surpresa. “Eu me senti frágil na hora. É uma banalização da violência enorme”, afirma o professor. O mesmo aconteceu com C.B., que, ao receber mensagens em grupos de mães, teve que conversar com seu filho, de 11 anos, sobre o assunto, e descobriu que ele mesmo já tinha escutado ameaças parecidas em tom de brincadeira – inclusive através de redes sociais. “Eu tento olhar o que ele faz, com quem ele conversa. Mas parece que sempre alguma coisa foge do controle”, revela.
Já K.C., que tem um filho de 10 anos, conta que foi na própria escola que seu filho teve contato com o tipo de conteúdo ameaçador, mostrado por um colega. Ele disse que não queria ir à aula no dia 20, data marcada para supostos massacres em escolas de Minas Gerais. A data coincide com os 24 anos do massacre de Columbine, um dos episódios mais trágicos da história dos Estados Unidos. “Conversei muito com ele sobre isso, acalmando e dizendo que são apenas boatos de adolescentes que querem matar aula. Eu não sinto receio, para mim não passam de boatos e fake news de pessoas querendo levar pânico à população”, afirma.
Para A.M., conversar com o filho de 14 anos sobre o assunto foi difícil, ainda mais porque ela mesma também ficou “profundamente abalada” com os acontecimentos recentes envolvendo massacres em escolas. “Conversamos sobre as ameaças, mas também sobre os motivos que levariam alguém a cometer algo tão cruel. Achamos que essa conversa é importante. Nossos filhos são bombardeados por todo tipo de informação”, conta. Ela conta que seu filho ficou triste e preocupado, principalmente por não ser a primeira vez que isso acontece.
Os dados do Monitor do debate político no meio digital, da Universidade de São Paulo (USP), revelaram que de fato há um aumento rápido no crescimento dos casos: em um período de 21 anos, entre entre 2002 e 2023, foram registrados 22 ataques assim no Brasil, e apenas entre os dois anos mais recentes, foram registrados 13 ataques – mais da metade do total no período. Analisar um fenômeno como esse, que apresenta um crescimento recente, exige profundidade e principalmente a recusa de respostas fáceis.
Problema coletivo
A pesquisadora Nara Liana Pereira Silva, do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFJF, recomenda aos pais que, assim que receberem esse tipo de ameaça, tentem manter a calma e procurem a origem da postagem, vídeo ou mensagem em questão, para se certificar de que não se trata de fake news – mesmo que nem sempre isso seja possível. Outra orientação importante é não compartilhar esse tipo de postagem, pois isso favorece a disseminação de algo cuja veracidade se desconhece. “Tudo isso acaba criando um clima de pânico, e o medo se espalha”, ela explica.
Em sua experiência, Nara afirma que é preciso que os pais se concentrem em conversar de uma forma bem objetiva e segura com os filhos, abordando “tanto as ameaças quanto as redes sociais, que são as fontes de onde elas estão sendo propagadas”. O mesmo afirma Kíssila Mendes, doutora em psicologia e professora do UniAcademia, que indica que esse momento de conversa foque em acolher as preocupações, acalmar quando necessário e conversar abertamente sobre a situação e o que tem sido feito para evitá-la. “A confiança entre a família, a escola e a sociedade precisa ser restabelecida. Em um problema coletivo, as soluções também devem ser coletivas”, esclarece.
Fatores que têm contribuído para o clima violento
Para os pesquisadores, é possível atribuir diversos fatores para o aumento de um “clima de violência” dentro das escolas, dentre eles: uso não supervisionado de tecnologia entre os jovens, facilidade de disseminação de ideias extremistas e violentas, discursos de ódio a minorias, culto ao armamento, dissolução de políticas públicas de educação, crescente desigualdade social e ainda o esgarçamento dos diálogos e vínculos familiares.
Para o professor e jornalista especializado em segurança pública Ricardo Bedendo, membro do Núcleo de Estudos de Políticas de Drogas, Violências e Direitos Humanos (NEVIDH) da UFJF, é preciso entender que afetos políticos estão sendo acionados através das redes e usados estrategicamente para atingir jovens. “A junção entre a ignorância e o ódio dá origem à forma mais regressiva de utilização de afetos políticos em nossas vidas, para serem usados estrategicamente na destruição do outro e na imposição do medo, como método de governo fascista e nazista. Tudo começa quando temos uma patologia instalada, sendo utilizada estrategicamente para defender uma cultura do ódio e da intolerância”, explica.
Principalmente no que se refere às escolas públicas, ele explica que é preciso também reconhecer “um passado de ausências e lacunas completas de investimentos em políticas de educação”. Isso se reflete também dentro desse cenário pois, com o tempo, há o que chama de “clima escolar” em que os alunos têm tido cada vez menos vontade de comparecer às aulas e, consequentemente, têm sido capturados por discursos que direcionam o ódio para esses locais. Ele reconhece, nesse sentido, que os ataques direcionados às escolas nos últimos anos também criaram um especial clima de ódio e desconfiança em relação a todos que habitam o espaço. Sobre esse aspecto, Kíssila Mendes indica que o alvo são as escolas justamente por esse espaço ser a principal instituição de sociabilidade de todos. Por isso e também por conta de como tem sido estruturada historicamente. A despeito de suas potencialidades e do seu importante papel social, ela explica que a escola “também desperta angústias e sofrimentos”.
Além disso, Kíssila aponta que as escolas são vistas como mais vulneráveis, e por isso o ataque a elas choca ainda mais. “Não é possível descartar ainda a misoginia presente nos atentados: escolas são compostas por maioria do corpo docente feminino, que são as pessoas que mais morrem em vários desses atentados”, explica. Ela acrescenta também que as soluções para esse problema, como também para toda situação complexa, deve ser buscada em sua raiz, que não está somente na família ou na escola. “A violência não é uma expressão abstrata do indivíduo. Entre as propostas que vejo como fundamentais, a nível governamental, está a do controle das redes sociais e da exclusão de páginas extremistas, desarmamento da população e a garantia de que as escolas tenham liberdade de cátedra para abordar temas críticos e sensíveis com foco no debate”, diz. Ela também destaca a importância da valorização da carreira docente, o cumprimento da lei que estipula a obrigatoriedade dos profissionais de serviço social e psicologia nas escolas e o fortalecimento das redes psicossociais.
Papel da tecnologia no incentivo de massacres e necessidade de controle parental
Na visão de Nara Silva, o aumento dos casos de violência nas escolas mostra uma relação de fatores sociais, econômicos, políticos e, ainda, a influência das plataformas de redes sociais. É por isso que, na visão dos especialistas, mesmo nos casos de “trotes”, é preciso analisar por que essas ameaças estão circulando. Ela destaca que, em relação a essas ameaças, foram divulgados dados do Ministério da Segurança de que foram tirados do ar 756 perfis de diferentes redes sociais que estimularam ataques e massacres nas escolas. “Isso tudo apenas nos últimos dez dias. É uma quantidade muito grande de conteúdos nessa linha, uma avalanche que estimula esse tipo de ataque”, diz.
É por isso que, em sua percepção, o papel das tecnologias no incentivo dos massacres não pode ser subestimado. É nesse espaço que, por exemplo, se encontram informações, incentivos e até mesmo é normalizado um discurso violento. “É preciso discutir o controle dessas redes sociais, inclusive sobre o tipo de conteúdo. Não somente o nível de segurança nas escolas basta. Se fosse suficiente, não teríamos neste momento, nos Estados Unidos, mais de cem ataques nas escolas ao longo de 2023, porque esse tipo de providência não inibiu os ataques lá”, diz. O mesmo afirma o psicólogo infantil e professor do curso de psicologia da Estácio, Carlos Eduardo Pereira, que alerta contra o uso desenfreado dessas redes em um momento em que a personalidade da criança/adolescente está sendo construída. “Ser bombardeado por conteúdos negativos pode ser bastante prejudicial”, diz. A substituição “da vida real pela vida virtual”, em sua análise, também acontece através de jogos eletrônicos e programas com conteúdos agressivos, que de fato podem gerar uma banalização da violência.
No sentido da segurança pública, Ricardo Bedendo enxerga como algo preocupante que esses espaços sejam usados por jovens livremente, já que nessas redes virtuais há discursos políticos estrategicamente pensados para criar realidades paralelas. Para ele, a facilidade desses discursos acaba atraindo jovens. “Não adianta blindar as escolas e não ter uma política de redução de armamento, continuar com discurso de ódio e de intolerância”, afirma. Em sua visão, as redes sociais de comunicação têm um poder muito grande de reverberação desses discursos, e essas responsabilidades aumentam ainda mais. “A liberdade de expressão precisa ser pautada ainda mais em princípios de responsabilidade e de direitos humanos”, ressalta.
Psicólogos destacam sinais que devem chamar atenção dos pais
Há alguns padrões de comportamentos que devem ser observados pelos pais, principalmente tendo em vista o tipo de conteúdo que vem sendo veiculado nas redes. Tanto no caso de indivíduos que cometem esses crimes quanto no caso dos que estão sofrendo bullying, Carlos Eduardo explica que nessas situações há um retraimento da criança, uma diminuição do seu interesse por atividades lúdicas, por outras crianças e pela própria escola. Mas isso, na visão dele, também se torna um problema. “Esses indicadores vão ficando mascarados quando analisamos como é a rotina hoje em dia. A grande parte das crianças chega em casa, vai direto para o quarto assistir uma série, jogar videogame, mexer no computador”, diz.
O que diferencia principalmente os casos normais dos patológicos, conforme ele explica, é uma mudança no padrão de agressividade: “Quando uma criança, por exemplo, reage de forma mais violenta a uma imposição de limites maior ou a uma tentativa de controle parental maior, é preciso ficar atento”, afirma. Kíssila esclarece, por sua vez, que não há outra forma de lidar com a situação sem ter “diálogo e principalmente ouvir seu filho”. “Parece-me ainda importante observar discursos de intolerância ou ódio nesses jovens, sejam eles as ‘vítimas’ ou os ‘agressores'”, esclarece a especialista.
Incentivo à cultura da paz
Há também medidas que os pais e as escolas podem incentivar nas crianças e nos jovens. Como exemplo, Carlos Eduardo destaca a prática de esportes, que desenvolve a cooperação e o respeito pelos outros, a própria convivência com outros em ambientes diversificados, as atividades lúdicas ao ar livre e o contato com a leitura. Além disso, afirma que “a interação entre pais e filhos é fundamental, pois o movimento de deixar que os filhos consumam de forma mais intensa a tecnologia vem justamente, em muitos casos, de esvaziar a necessidade que as crianças têm do contato e da convivência com os pais. O próprio brincar, com a participação dos pais nas atividades lúdicas dos filhos, precisa ser resgatado”.
Nesse mesmo sentido, Cláudio Melo, que é, além de pai, professor, partiu do receio da filha para pensar em formas de incentivar ainda mais atividades culturais e artísticas que promovessem a paz no local em que trabalha, a Escola Estadual Francisco Bernardino. “Os elementos culturais e artísticos já fazem parte da cultura da escola. Vejo a necessidade de a gente marcar nosso lugar de escola, de formação”, diz. É por isso que, diante das ameaças da última semana, eles realizaram um “Sarau da Gentileza”, que pretendem repetir ao longo do ano. “Comecei a ver a necessidade de a gente reafirmar o que a gente faz, e reafirmar esse imaginário. Se lá está a violência, temos que ocupar com informação, cultura, união”, diz.