Seguindo dado nacional, estupros contra vulneráveis crescem em Juiz de Fora
No Brasil, meninas negras e de 13 anos são a maioria das vítimas, família de menina de 4 anos relata caso de abuso à Tribuna
Os olhares atentos de uma mãe e uma professora foram cruciais para devolver a uma criança 4 anos o direito a sua infância – que, até então, estaria sendo usurpada pelos abusos sexuais cometidos pelo próprio pai, na época com 47 anos. O caso ocorreu em Juiz de Fora em 2020, mas denúncias sobre crimes contra a dignidade sexual continuam acontecendo e o combate muitas vezes vai de casa à escola. A Tribuna questionou a Polícia Militar quanto à segurança para essa parcela da população em Juiz de Fora. A instituição, entretanto, preferiu não se manifestar sobre a incidência dos casos de estupros contra crianças na cidade e disse não poder responder quais são os protocolos estabelecidos a partir da ocorrência desse crime.
Em 2020 – quando ocorreu o caso relatado à Tribuna-, entre janeiro a junho, havia 27 casos de estupro registrados em Juiz de Fora, a maior parte deles tendo vulneráveis – grupo formado por crianças, pessoas com deficiência ou aqueles que não estavam conscientes no momento do ato – como alvo, e essa é uma realidade que de lá pra cá se manteve. Ao longo do primeiro semestre de 2024, 34 pessoas foram abusadas sexualmente na cidade. Dessas ocorrências, 22 tiveram como vítimas pessoas vulneráveis. A informação é fruto dos dados do Observatório de Segurança Pública da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
Dados locais refletem panorama do estado e do país
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado neste ano e referente a 2023, aponta que há um caso de estupro a cada seis minutos no Brasil, o maior índice desde o início da série histórica em 2011, marcando um crescimento de 91,5% ao longo dos últimos 13 anos. Do total destes casos, 76% correspondem ao crime de estupro de vulnerável, e a a maioria das vítimas são meninas negras de até 13 anos. Ainda de acordo com o levantamento, violações contra vulneráveis se mantêm como maioria em Minas Gerais. Em 2022, foram registrados 1.153 ocorrências de estupro e 3.578 de estupros contra vulneráveis, como o dado nacional indica. No ano seguinte, esse indicador continuava sinalizando um problema público, foram 1.233 crimes do gênero contra pessoas adultas e 3.990 contra pessoas legalmente indefesas.
O caso de um estupro coletivo cometido contra uma menina de 13 anos, durante encontro com o ‘suposto’ namorado, de 15 anos, chocou o país. O crime aconteceu em julho deste ano, em Praia Grande, no litoral de São Paulo, e teve repercussão nacional na semana passada.Um homem de 18 anos já foi preso e a Polícia Civil trabalha na identificação de outros sete suspeitos, sendo seis deles menores
A pesquisadora da cultura do estupro, Leiliane Germano, explicou que tanto os dados do anuário quanto os números de Juiz de Fora seguem um padrão. “A violência sexual contra pessoas vulneráveis impacta diretamente no processo de identificação e denúncia. Além disso, a maior parte desses crimes é cometida por pessoas de confiança da vítima”, diz Leiliane.
No caso levantado pela Tribuna, a mãe e a professora participaram ativamente da identificação dos sinais de abuso. O suspeito era pai da vítima.As mulheres se juntaram para conseguir compreender os indícios de uma possível violência, e o que a criança reconhecia como tal para poder dizer. Segundo a professora, a descoberta veio de uma desconfiança a que ela se atentou. “Até aí, eu não sabia o que estava acontecendo, só tinha suposições”, contou a professora Ana Paula à Tribuna.
Sinais começaram a aparecer na escola
Foi a partir dos desenhos feitos em sala de aula que a docente desconfiou que algo errado estaria acontecendo com uma de suas alunas. Em um desses momentos, o pai foi desenhado com três pernas, e quando a professora questionou o porquê, a menina, que já era desfraldada, se urinou. Diante disso, a professora resolveu ter uma reunião com os responsáveis, na qual a mãe da aluna compareceu.
Os pais eram divorciados, e a menina costumava passar os domingos acompanhada do pai. Era principalmente nas segundas-feiras que outros comportamentos incomuns da menina ficavam mais perceptíveis – ela ia ao banheiro com mais frequência, e também aparentava estar mais sonolenta.
“Eu peguei os desenhos e os coloquei em um envelope. Me mantive bem próxima da mãe dela e pedi para ela procurar ajuda com uma psicóloga”, explica Ana Paula, que chegou a instruir que seu contato fosse passado para a profissional. A Tribuna conversou com a mãe da menina, que não será identificada para que a identidade da criança também seja preservada.
Ela contou que o papel da professora, neste cenário, foi essencial para resguardar os direitos da filha e acabar com a violência que ela vinha sofrendo. “A Ana Paula foi iluminada e começou a me mandar os desenhos. Isso acabou entrando como prova também”, disse a mãe. Ela também foi a ponte até uma psicóloga, a profissional confirmou um indicativo de abuso contra a menina.
“A gente sempre vê, acha que acontece longe da gente e que nunca que vai acontecer com o filho da gente. Realmente foi bem difícil e, no início, eu acho que eu até demorei para ver alguns sinais que ela me dava. A gente leva um choque e fica sem chão. Eu senti até culpa de não ter percebido antes, de não ter ajudado antes. E também um sentimento de impotência”, desabafou a mãe. Enquanto ela se comprometeu a observar o comportamento da filha em casa, a professora incumbiu-se de ficar atenta à criança na escola. Embora cercada de uma rede de apoio, a mãe iniciava agora uma nova jornada em busca de segurança para a filha.
A importância dos desenhos como provas: julgamento ainda em curso
O Registro de Eventos de Defesa Social (Reds) foi feito em 2020 e registrado como “Outras infrações contra a dignidade sexual e a família”. No documento, há o relato da criança sobre os abusos, o parecer da psicóloga, e a demonstração de aspectos incomuns nos desenhos. O primeiro passo de uma denúncia formal contra o pai, em um caminho que ainda não teve fim.
No inquérito policial que se seguiu na Delegacia da Mulher, foi registrado que o homem “mediante múltiplas ações livres, dolosas e conscientes, com planejamento unitário, nas mesmas condições de tempo, lugar e modo de execução, praticou atos libidinosos diversos da conjunção carnal com menor de 14 (catorze) anos, sua filha”. A finalização deste processo de investigação foi enviado como denúncia também ao ministério público – que acatou a queixa em 2023.
Ao mesmo tempo em que isso ocorria, a menina recebeu acompanhamento da psicóloga do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e da assistente social da Vara da Infância e Juventude. Segundo a Promotoria de Defesa dos Interesses da Criança, do Adolescente e da Educação, Samyra Ribeiro Namen, essa é uma das alternativas possíveis em um cenário como este. A medida protetiva pode ser requerida tanto pelo Conselho Tutelar, quanto pela delegacia ou a promotoria para que haja aplicação da distância judicial do suspeito a fim de garantir proteção.
Medida protetiva teve papel decisivo na segurança da vítima
A mãe da menina pediu uma medida protetiva de seis meses contra o pai da criança. A proteção judicial chegou a ser expedida e, segundo a mãe, neste período, a criança já não citava mais a violência da qual foi vítima. “Então, depois, no final desses seis meses, ela já não mencionava mais, não lembrava do que havia acontecido, não fazia comentário sobre o assunto e eu pedi para aumentar essa medida protetiva, mas o juiz alegou que, como ele não a procurou durante aquele período, ele não iria dar uma nova medida protetiva”, revela a mãe.
Após a decisão, o suspeito continuou sem procurar a família por um hiato, pedindo depois ao juizado da Vara a possibilidade de voltar a visitar a filha. Como o pai ainda não foi a julgamento, a presunção de inocência garantida por lei determina que até que isso aconteça e haja, de fato, sentença penal condenatória, ele seja considerado apenas suspeito.
Em, 2022, foi acatado o pedido do pai para visitar a filha que o denunciou por abuso, com ressalva de que seja uma visita assistida por outro adulto, presente durante os encontros. Isso ocorre a cada 15 dias. Faz dois anos que ela o visita a cada quinze dias. O tempo para o final do julgamento ainda não foi definido. Quanto ao curso do processo, a mãe relata que os desenhos são provas determinantes, pois foi algo que criança demonstrou fora do ambiente doméstico. Até hoje, quatro anos depois, 1.461 dias após o registro do crime, a menina continua fazendo terapia – ainda que talvez não se lembre ou não mais mencione a violência da qual foi vítima.
O que é educação sexual e por que ela é importante?
A educação sexual, isto é, o aprendizado sobre o corpo, o funcionamento dele e seus limites, vem sendo qualificado com uma das principais formas de a escola atuar no combate à perpetuação da cultura do estupro. Ainda sim, o tema é um tabu e a falta dessa frente nas escolas é um problema indicado pela pesquisadora Leiliane Germano.
Pedagoga há sete anos, Ana Paula vai na contramão deste estigma. “Entendo que o fato de não falar com as crianças alguns tipos de assuntos as leva a confiarem em pessoas que não deveriam confiar, fazer coisas que não deveriam fazer”, relata, e também exemplifica como desenvolve esse trabalho dentro de sala de aula.
“Eu uso um livro chamado ‘Não me toca seu boboca’, da Andrea Viviana Taubman, para falar sobre a importância de não deixar outras pessoas tocarem o nosso corpo, e o “Mamãe botou um ovo!”, da Babette Cole, que conta de onde vem e como são feito os bebês em uma linguagem voltada para crianças”. Outras ferramentas didáticas e lúdicas usadas são músicas e vídeos, ela cita.
Para as crianças levarem para a casa, Ana Paula disponibiliza um material chamado “Quebrando o Silêncio”, produzido pela Casa Publicadora Brasileira. O conteúdo é enfático ao mostrar que, caso algo aconteça, é importante não se calar. O trabalho dela em sala de aula, entretanto, ainda não é uma realidade dentro das grades escolares das instituições de ensino. A Tribuna chegou a questionar a Prefeitura de Juiz de Fora se os colégios municipais possuem alguma iniciativa nesse sentido, mas não obteve retorno até o momento da publicação.
A base para a educação sexual nas escolas vem da capacitação dos professores
Roney Polato trabalha para que os professores cheguem dentro de sala de aula capacitados para tratar das questões de gênero e sexualidade, que atravessam o cotidiano. Ele é docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador de um grupo de pesquisa que trata dessas questões.
É pensando que muitas das denúncias de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes se dão a partir da escola que ele destaca a relevância da preparação dos docentes para lidarem com essa realidade. O intuito, segundo ele, é que o conhecimento sobre questões de gênero e sexualidade possam contribuir para um trabalho de prevenção e proteção contra as violências.
“A escola, a partir de seu compromisso com o conhecimento científico, pode promover atividades de educação para a sexualidade que visam a conhecer o próprio corpo em sua integralidade, aprender e/ou reforçar noções de intimidade e de consentimento (Quem pode tocar meu corpo? Quando posso tocar o corpo do outro? Em que ocasiões isso é autorizado?), além de aprender diretamente sobre o que constitui uma situação de abuso e como denunciá-la”.