Crescem registros de injúria racial em Juiz de Fora
De janeiro a setembro deste ano, foram 17 casos, mas há subnotificação e ativistas alertam para necessidade de não se calar diante de crimes
Este ano, em Juiz de Fora, 17 pessoas registraram ocorrência de injúria racial – quando alguém sofre ofensa com base em sua cor, raça, religião, idade, deficiência, entre outros. O dado mais recente diz respeito ao período entre janeiro e setembro de 2021 e foi fornecido pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp). Em números absolutos, o aumento é de apenas seis casos na comparação com o mesmo período de 2020, mas em termos percentuais representa um aumento de 54,54%, considerando que foram registradas 11 denúncias entre janeiro e setembro do ano passado, conforme a Sejusp.
O aumento de denúncia contra injúria racial tem sido observado nos últimos cinco anos na cidade. Em 2016, foram registradas nove ocorrências. Em 2017, o número caiu para cinco, mas em 2018 voltou a subir, chegando a oito casos. No ano seguinte, o registro também foi maior, 15. Em 2020, o total foi de 14, e a tendência é de aumento para 2021, uma vez que, em apenas nove meses, a soma de denúncias apresentadas até agora foi de 17. Entre 2016 e 2020, o aumento foi de 55% das denúncias.
Além do aumento de casos de injúria racial, foi observado, também, um crescimento no número de denúncias de crimes de racismo. Dados da Sejusp apontam que, em 2020, foram relatadas 12 ocorrências, contra apenas duas registradas ao longo do ano anterior, em 2019. Já em 2021, o número é menor, os dados mais recentes apontam para quatro denúncias de crimes de racismo entre janeiro e setembro deste ano.
Na data em que se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil, vítimas e ativistas do movimento negro em Juiz de Fora ouvidos pela Tribuna alertam para a necessidade de não se calar diante de crimes de preconceito de raça e cor. Apesar do aumento das denúncias, consideram que o número ainda é baixo e defendem que o Estado dê mais apoio e suporte às vítimas, promovendo organismos para acolher essas pessoas, como delegacias especializadas, oferecendo preparo psicológico e apoio jurídico.
Injúria racial e crime de racismo
Os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes. O crime de racismo, definido pela Lei 7.716/1989, implica em conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. Já o de injúria racial, está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra de uma pessoa.
As punições também diferem. Para a injúria racial é estabelecido pena que pode variar entre três meses a três anos de reclusão, ou multa, além de pena correspondente à violência, para quem cometê-la. No caso do crime de racismo as penas previstas são mais severas, podendo chegar até a 5 anos de reclusão.
No entanto, movimentações têm sido feitas para que esses dois crimes se equiparem. A exemplo da decisão do Senado na última quinta-feira (18), que aprovou o projeto que tipifica a injúria racial como racismo e estabelece pena mais rigorosa para quem comete o crime. A proposta, que recebeu 63 votos favoráveis e nenhum contrário, segue para análise da Câmara dos Deputados.
A proposta aprovada pelos senadores insere na Lei de Crimes Raciais, sancionada em 1989, um artigo que diz que quem “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” será punido com dois a cinco anos de prisão e pagamento de multa. O objetivo da mudança, segundo seus defensores, é eliminar qualquer dúvida de que a prática, assim como o racismo, é inafiançável e imprescritível, ou seja, passível de punição a qualquer tempo, sem a possibilidade do pagamento de fiança.
O texto alinha a legislação brasileira à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro, que estipulou que o crime de injúria racial pode ser equiparado ao de racismo e ser considerado imprescritível e inafiançável.
Como explica o professor do curso de direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bruno Stigert, com a recente decisão do STF, o crime de racismo e a injúria racial se equiparam na questão da imprescritibilidade, mas a diferença entre as punições faz com que a injúria continue funcionando como uma estratégia argumentativa para mudar a semântica da conduta praticada.
“Antes, após oito anos da ciência do ofendido, a injúria racial prescrevia, ou seja, o Estado não tinha mais o direito de punir aquela pessoa pelo crime. Já agora, tanto a injúria quanto o racismo não prescrevem, a pessoa pode responder depois de cinco, 15, 20 anos, o tempo que for, basta que ela represente a denúncia, e cabe ao Ministério Público dar andamento ao processo. Portanto, estrategicamente, as instituições usavam de uma artimanha interpretativa para enquadrar quase todas as situações em injúria, já que prescrevia e as penas eram mais brandas.”
‘Não é mais tolerável, todos precisam ter responsabilidade sobre o que falam e o que fazem’
“Com a história de um povo não se mexe, se respeita”, diz Ada de Souza Bastos, motorista de aplicativo de 42 anos, que viveu na pele a injúria racial no dia 10 de outubro. No caso, uma empresária foi indiciada por injúria racial ao ter dirigido palavras ofensivas, como “macaca”, à motorista. O crime aconteceu enquanto Ada e outros colegas de profissão se reuniram em frente a casa da empresária, uma vez que o companheiro dela era suspeito de agressão contra outro motorista.
“Quando eu a questionei sobre a injúria ela disse, “por que eu te chamei de macaca? Mas você é uma”, falou isso com muita tranquilidade, com toda certeza de que estava fazendo algo errado, mas confiando na impunidade.” Ada ainda conta que, no momento em que foi ofendida, ficou sem reação, foram os colegas ao lado que se atentaram para o crime. “Na hora, você leva um susto. Mesmo eu sabendo que esse tipo de crime existe, isso nos surpreende quando vemos tão de perto, ainda mais quando acontece com a gente. Um ato tão nojento e covarde como esse. No momento, eu fiquei uns segundos em silêncio, sem reação, mas ali mesmo soube que estava sendo vítima de um crime.”
A empresária indiciada negou a ofensa contra a vítima e disse que também teve sua integridade física e psicológica ameaçada pelo grupo de motoristas, o que também foi negado pelos condutores.
Ada afirma que o aumento de casos de injúria em Juiz de Fora já vem perdurando há tempos. “Não é mais tolerável, todos precisam ter responsabilidade sobre o que falam e o que fazem. Por isso, denunciar é muito importante. A história do povo negro é de muito sofrimento, de muita covardia. Hoje em dia existe lei, mas isso já acontece há muito tempo, de forma velada, ou não. Nós precisamos saber dos nossos direitos para entender que o preconceito existe e o racismo é crime, não podemos deixar que isso aconteça em lugar nenhum.”
Importância de se fazer a denúncia
Para Paulo Azarias, coordenador do Movimento Negro Unificado de Juiz de Fora, o aumento das denúncias, tanto de racismo, quanto de injúria racial, pode ter dois aspectos. “Esse pode ser um dado positivo, no sentido de as pessoas estarem denunciando mais. Recentemente, temos visto várias manifestações da mídia, e os crimes de racismo e injúria racial têm tido repercussão nacional, isso incentiva as pessoas a se manifestarem.”
A recente decisão do STF, de acordo com Azarias, é um ganho para o movimento negro. “Para nós, injúria racial é crime de racismo, não existe diferença.” Ele ainda ressalta que junto com a luta para evidenciar o racismo, se soma a importância da denúncia, que ainda enfrenta barreiras, principalmente devido ao despreparo das instituições. “Ainda é muito difícil para uma pessoa que sofreu racismo denunciar. O racismo destrói a pessoa enquanto ser humano. Então é necessário que o Estado promova organismos para acolher essas pessoas, como delegacias especializadas para crimes de racismo, com um preparo psicológico, apoio jurídico e uma formação antirracista dos policiais.”
Segundo a advogada e também ativista do Movimento Negro, Zizi Veiga, o número de ocorrências registradas em Juiz de Fora é baixo, se levar em consideração a população total da cidade. “Isso ocorre, não porque o racismo não exista aqui, mas porque não há a devida notificação.” De acordo com Zizi, denunciar é muito importante, porém o cenário racista da sociedade torna esse movimento ainda mais difícil. “É da própria cultura do brasileiro achar que o que na verdade foi crime, não passou de uma brincadeira. E como a injúria é um crime de caráter individual, a pessoa confunde com bullying, e acabam relevando.”
Como afirma a advogada, “Juiz de Fora não foge à regra do resto do país. O Brasil é um país racista e cabe a população entender isso”. Ela diz que o racismo está na base da sociedade brasileira, e esse comportamento, considerado estrutural, se faz presente nas mais diversas classes. “Eu sou advogada, com um escritório no Centro da cidade. Mas muitas vezes, por ser preta, não fui enxergada dessa forma. O racismo estrutural está presente quando você entra em lojas, estabelecimentos, correndo o risco de ser perseguido, fica à mercê de uma postura autoritária de quem está tomando conta do local, uma atitude extremamente hostil devido ao tom de pele da pessoa”, explica Zizi.
Liberdade de expressão
Para ela, a conjuntura política favorece esse tipo de comportamento, principalmente em um momento no qual a liberdade de expressão é confundida com a liberdade para cometer crimes. No entanto, como adverte o professor Bruno Stigert, a liberdade de expressão não protege ofensa. A doutrina do Brasil não admite o “hate speech” ou o discurso do ódio. Já a doutrina americana e a própria Suprema Corte, observa, toleram isso em muitas situações. “No entanto, no Brasil, no que diz respeito a questões de raça e cor, em hipótese alguma nós podemos relevar uma conduta que utilize o argumento da liberdade de expressão para diminuir, impedir ou isolar certos grupos de pessoas do ambiente social.”
Bruno ainda afirma que as instituições, em sua maioria, são formadas por homens e mulheres brancas, que não conseguem ter a empatia necessária para compreender o fenômeno do racismo. “Tudo acaba sendo reduzido a uma circunstância de ‘mimimização’. Enquadrar um crime como injúria é uma forma de o aparato da Justiça, branco e privilegiado, se blindar. É difícil imaginar um juiz, ou uma juíza branca, entendendo um caso de racismo para julgar, já que ele nunca será uma pessoa que sofre com o racismo”.