Gravidade atenuada afeta investigação
Dezenas de crimes graves ocorridos em Juiz de Fora nas últimas semanas, envolvendo pessoas baleadas e feridas com gravidade, estão tendo as investigações prejudicadas. O motivo é a interpretação equivocada da natureza dos delitos durante a elaboração dos Registros de Eventos de Defesa Social (Reds, o antigo BO), feitos pela Polícia Militar. Casos claros de tentativa de homicídio estão sendo registrados como lesão corporal ou disparo de arma de fogo, o que minimiza a gravidade, fazendo com que demorem a chegar na Delegacia Especializada de Homicídios da Polícia Civil, criada especificamente para investigar este tipo de ocorrência.
É sabido que, em alguns casos, é tênue o limiar entre os crimes de lesão corporal e tentativa de homicídio. Porém, a mudança da tipificação preocupa, uma vez que se não são investigados pelo crime real que cometeram, os suspeitos podem ficar livres para continuarem alimentando um círculo de crimes provocados por acertos de contas. Entre maio e junho, a delegacia especializada precisou modificar o registro de três casos inicialmente assinalados como lesão corporal para tentativa de homicídio de forma que o inquérito pudesse ser iniciado. O delegado de Homicídios, Rodrigo Rolli, afirmou que em junho não instaurou inquéritos de tentativa de homicídio, pois nenhum caso chegou ao seu conhecimento. Segundo ele, até maio, a média mensal desta ocorrência era de 20.
Chama a atenção neste tipo de registro de ocorrência o aparecimento da expressão “tiros a esmo”, usada pelos policiais para descrever fatos nos quais tiros foram direcionados a grupos ou pessoas específicas. São situações em que vítimas foram atingidas por mais de um projétil, contrariando a tese de que os disparos não tinham um alvo certo. Em contrapartida, a ocorrência em que uma viatura da PM foi alvejada, no último dia 23, no São Benedito, foi registrada como homicídio tentado. Porém, os tiros atingiram apenas o radiador e o giroflex da viatura. (ver fac-símile 1). Em 2012, a Tribuna denunciou a maquiagem de ocorrências, que na época viria como ordem do próprio comando da Polícia Militar, com o objetivo de forçar a redução das estatísticas de criminalidade. Atualmente, policiais militares ouvidos pela reportagem negam haver ordem para mudar a natureza de crimes.
Amplas distorções
Ao analisar, a pedido da Tribuna, os boletins de ocorrência com possíveis equívocos, o coordenador do núcleo de pesquisa sobre violência e políticas de controle sociais da UFJF, André Moyses Gaio, pondera que há uma natureza um tanto subjetiva no preenchimento dos BOs, tanto do policial, quanto do relato das vítimas e testemunhas. Mas reconhece que os possíveis erros podem gerar amplas distorções nos números finais de vários tipos de crimes. “A intenção de matar é um agravante no crime cometido. Tiro a esmo é tiro para o alto, não falta de pontaria.”
Por meio de nota, a PM esclareceu que existe uma padronização para os registros, e destacou que o policial militar é o primeiro a chegar ao cenário de uma ocorrência e se baseia no que presencia ali e também no relato de testemunhas, vítimas e autores. Segundo a corporação, qualquer ocorrência após registrada é entregue à Polícia Civil, tendo esta instituição a liberdade de alterar a natureza da ocorrência, caso entenda ser isto necessário para o bom andamento do processo e elucidação do caso, e essa situação é um procedimento previsto e amparado pelas normas face a integração do Sistema de Defesa Social. Quanto aos casos citados na reportagem, a PM informa que as ocorrências foram classificadas conforme os fatos e relatos que os policiais encontraram no local. No andamento e condução das ocorrências a natureza pode vir a ser modificada, tanto agravando quanto atenuando a ação praticada, conforme outros fatos e provas forem sendo apurados.
Crimes invisíveis
A Tribuna conversou com delegados que cuidam de outras unidades. Eles pediram para manter o nome sob sigilo, mas reafirmam que a incorreção na natureza das ocorrências pode fazer com que crimes graves passem despercebidos. “Ocorrência registrada como disparo de arma de fogo, por exemplo, entende-se que não houve ferido, mas muitas vezes há. Como recebemos muitos casos, estes podem acabar ficando para trás”, disse um deles.
O quadro também causa sobrecarga de trabalho nas delegacias de área, que acabam tendo que fazer uma triagem dos casos e redistribuí-los às especializadas. “Há um retrabalho. Checamos todas as ocorrências que chegam, e são inúmeras. É impossível avaliar todas de uma vez. Crimes graves podem ter a investigação atrasada”, afirmou outro delegado.
Armas à disposição em quantidade
Os três episódios recentes que tiveram a natureza modificada chegaram para investigação na 3ª Delegacia, responsável pela Zona Norte, e precisaram ser realocados para a especializada. Em um dos inquéritos, de um fato ocorrido no dia 9 de junho, na Vila Esperança II, região Norte, um adolescente, 17, foi baleado nas pernas após uma discussão. Embora no relato se informe que o suspeito do crime tenha ido armado cobrar uma dívida da vítima, os policiais descrevem o fato como tiros disparados a “esmo” (ver fac-símile 2). Assim, o delito foi inicialmente tratado como lesão corporal. Em outro episódio de disparos, ocorrido no mesmo dia, no Bairro Milho Branco, um jovem, 19, foi baleado no tórax e na mão, mas no documento policial consta que “dois indivíduos atiraram a esmo”(ver fac-símile 3). De novo, o registro aparece como lesão corporal. Um outro crime, registrado no dia 31 de maio, no Jardim Cachoeira, também relata disparo aleatório que resultou em vítima atingida no joelho. Os três inquéritos foram instaurados pela Polícia Civil como tentativa de homicídio e seguem sob investigação.
O coordenador do núcleo de pesquisa sobre violência e políticas de controle sociais da UFJF, André Moyses Gaio, chama a atenção para a grande quantidade de armas à disposição de quem quer praticar crimes. “Quem está com arma pode até não ter a intenção de matar, mas há uma grande probabilidade de que a morte seja um desfecho. Juiz de Fora apresenta um cenário muito preocupante de aumento de vários tipos de crimes. As respostas apresentadas neste cenário são tão absurdamente ineficientes que muitas autoridades deveriam ser denunciadas por omissão ou por falta de preparação para enfrentar os desafios duros do presente. As estatísticas oficiais ainda não são confiáveis e, por isso, não refletem 10% do que ocorre em Juiz de Fora. A segurança pública está à deriva.”
MP altera tipificação para punir agressor
Além da Polícia Civil, o Ministério Público também pode corrigir a natureza dos crimes registrados pela Polícia Militar. Foi o que aconteceu com o caso da advogada, de 30 anos, que foi brutalmente espancada pelo ex-companheiro, que se recusava a aceitar o fim do relacionamento. O homem, 40, agrediu a vítima com um bastão de madeira, provocando afundamento de crânio, fraturas no braço direito e na mão esquerda, além de hematomas pelo corpo e danos psicológicos. O crime aconteceu em um ponto de ônibus perto da casa da advogada, em um bairro da Zona Nordeste da cidade, em 3 de fevereiro deste ano. O caso havia sido registrado como lesão corporal e, desde então, a vítima buscava descaracterizar a natureza, a fim de enquadrar o ex-companheiro no crime de tentativa de homicídio. O objetivo era que ele fosse levado a júri popular, ficando sujeito a uma pena mais grave e que seu caso servisse de exemplo no enfrentamento à violência contra a mulher.
No último dia 3, o promotor de justiça Juvenal Martins Folly denunciou por tentativa de homicídio o ex-companheiro da advogada, que já está preso. Ele foi capturado na cidade de Rio Pomba, após ficar 22 dias foragido. No documento, o representante do Ministério Público explana que a morte da jovem só não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do denunciado, uma vez que, mesmo ferida, a vítima conseguiu chamar ajuda, gritando por socorro, até que seus vizinhos e populares se aproximaram, fazendo com o agressor interrompesse o ataque. Ainda conforme a denúncia, o delito foi cometido por meio cruel, uma vez que o denunciado buscou, por todas as formas, causar sofrimento à vítima, desferindo diversos golpes na região do crânio, braços e pernas, o que demonstrou seu total desprezo pela vida humana.
Avanço
De acordo com a advogada da vítima, Cátia Moreira, a alteração da natureza do crime não foi fácil. “Por meio do inquérito da Polícia Civil, conseguimos provar que ele, na verdade, não queria apenas lesioná-la, como apontou registro da PM, mas matá-la naquele momento. Isso é uma vitória para toda as mulheres, pois queremos que outras não passem pela mesma situação.”