‘Livros físicos x livros digitais’: entenda debate sobre o uso como material didático
A Tribuna consultou especialistas, pedagogos e Governos sobre como se planejam quanto à melhor forma de uso desses recursos para materiais didáticos e o que consideram ideal
Na última semana, a ideia do Governo de São Paulo, comandado por Tarcísio Freitas (Republicanos), em abandonar boa parte dos livros físicos em escolas da rede e abrir mão do uso das obras didáticas do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) levantou, mais uma vez, o embate entre materiais didáticos impressos e os digitais. Essa decisão do Governo paulista vai no sentido contrário ao que apontam estudos recentes, realizados pelo Governo da Suécia, sobre os impactos do uso desse tipo de material, que mostraram que os alunos que leem os materiais de forma impressa são mais capazes de ter entendimento sobre o texto, memorizam mais partes e conseguem reproduzir melhor os pontos principais do que foi lido. Mesmo nesse cenário, é possível considerar que a alternativa tecnológica pode reduzir custos e também se aproximar das ferramentas de interesse dos alunos. Por isso, especialistas, pedagogos e Governos ainda se planejam quanto à melhor forma de usar esses recursos para materiais didáticos.
De acordo com Diego Moreira, professor de Física e Matemática e doutorando na Universidade Federal de Juiz de Fora em Educação e Tecnologia, uma das principais questões é como o uso dessas novas tecnologias em sala de aula pode promover reais possibilidades de ensino e aprendizagem dos estudantes. Na sua opinião, ainda existem habilidades e competências fundamentais que são desenvolvidas somente na presencialidade. “Seja a motricidade fina em uso no cotidiano, seja pelas possibilidades que o livro físico proporciona”, explica. Em relação a este primeiro tópico, ele explica que há estudos sobre a falta de mobilidade com as mãos, em especial com os dedos, dos estudantes que foram acostumados a apenas rolar os feeds das telas dos aparelhos eletrônicos. Esse hábito fez com que ações simples, como o uso de uma régua, fossem dificultadas. “Estudantes de 11 anos, ingressantes do Ensino Fundamental nos anos finais, ainda precisam desenvolver muitas habilidades do campo da educação física e presencial, seja em habilidades motoras, cognitivas e socioemocionais. O material didático físico tem uma importância no desenvolvimento neuromotor dos estudantes, desenvolvimento esse que se consolida por volta dos 25 anos”, diz.
Já Rogério Ferreira, professor da Faculdade de Letras e que atua especialmente na área de interpretação literária com auxílio da informática, também destaca que o material didático impresso consegue trazer benefícios durante a leitura, já que no impresso é possível “pegar a página, voltar e consumir de forma a fazer anotações”, conseguindo favorecer o ambiente de estudo de forma mais eficiente do que quando a leitura é feita na textualidade eletrônica. Para além desses motivos, ele também afirma que o cultivo do livro físico, em casa, e a possibilidade de consulta acaba criando uma familiaridade maior com esse objeto. “Sem dúvida alguma, esse hábito de ter livros em casa e poder consultá-los estimula também o hábito da leitura para além dos livros didáticos. Ajuda a desenvolver esse gosto”, ressalta.
Em relação à sinalização do Governo de São Paulo, no entanto, Cristiane Brasileiro, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e que há mais de dez anos ministra cursos sobre as relações entre educação e novas tecnologias na Universidade Aberta do Brasil, destaca que não se trata apenas da oposição entre material didático digital versus material didático impresso, mas algo maior. “Trata-se da substituição de materiais didáticos variados, que, de fato, passam por um processo transparente e altamente qualificado de seleção, como ocorre no PNLD, por materiais didáticos únicos, produzidos sem o mesmo rigor nem a mesma transparência, que, na prática, eliminam o direito de escolha que os professores deveriam ter. No PNLD, várias coleções são oferecidas aos professores, depois da análise de especialistas, sem qualquer interferência política, e cabe aos professores das escolas avaliar e escolher exatamente quais desses materiais já aprovados pelo PNLD eles consideram mais adequados aos seus alunos”, explica. Para ela, a decisão de substituir esses materiais abruptamente provoca um retrocesso claro.
Livros físicos mantidos nas redes públicas de Minas
Em Juiz de Fora, a Secretaria de Educação (SE) informou que não cogita, em hipótese alguma, deixar de utilizar livros físicos na rede municipal de ensino. Por meio da Proposta Pedagógica “LêMundo”, a SE incentiva a utilização de ferramentas tecnológicas, mas reconhece o livro físico como um importante instrumento pedagógico. Já a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE) informa que, nas escolas da rede pública estadual de ensino, os livros didáticos impressos são distribuídos para todas as unidades escolares diretamente pelo Ministério da Educação (MEC), por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do PNLD.
A partir deste ano, além dos livros impressos que são distribuídos como de costume, o FNDE disponibilizará os livros didáticos do PNLD 2023, para os anos iniciais do ensino fundamental, no formato digital para estudantes e professores. “Cabe ressaltar que o livro didático digital não irá substituir a sua versão impressa. As orientações e as diretrizes são as mesmas dos livros em formato físico, e o material continua como mais uma opção para os professores trabalharem práticas didático-pedagógicas junto aos alunos. A versão digital ainda está em implementação nas redes de ensino que são adeptas ao PNLD, com previsão de ser expandida para os demais níveis de ensino. O acesso às obras digitais ocorre diretamente no sistema PNLD Digital”, afirmou a SEE em nota. De acordo com o Estado, o formato digital com recursos dinâmicos também agrega vantagens para os estudantes portadores de necessidades especiais e com algum tipo de dificuldade de aprendizagem, já que esses materiais são disponibilizados com acessibilidade para todos os alunos.
Escola não deve ser espaço de exclusão
De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Brasil tem cerca de 1,6 aparelhos eletrônicos por habitante, como smartphones, tablets e notebooks. Em contrapartida a essa informação, de acordo com o Censo, são mais de 30 milhões de brasileiros off-line e, destes, de acordo com o IBGE, quase nove milhões são estudantes (sendo 91,6% da rede pública de ensino). “Digitalizar a educação, e ainda fora do PNLD, é fechar os olhos para a desigualdade que o Brasil carrega em sua história, e continua a não ir no cerne dos nossos problemas básicos”, explica Diego. Da mesma forma, Rogério ressalta que a escola não deve ser um espaço de exclusão em nenhuma hipótese. “Temos que tomar cuidado para não excluir ninguém da escola. Se em uma turma de 40 alunos, 35 têm a condição de uma aprendizagem com uso de tecnologia em casa e cinco não têm, não dá pra excluir esses. É preciso um planejamento educacional que coloque esses alunos em condições idênticas”, afirma.
Para Rogério, porém, não é possível “fechar os olhos para a presença da tecnologia”. Na sua opinião, esse recurso deve ser bem-vindo principalmente porque o jovem se sente atraído pela tecnologia. Com isso, seu uso pode ser uma forma de fazer com que os alunos fiquem mais conectados aos conteúdos. “Isso, na escola, deve ser aproveitado para apresentar alguns conteúdos, de forma que o aluno se sinta motivado a estar ali e aprenda mais”, explica. Sendo assim, Diego exemplifica que ferramentas tecnológicas, como o uso de simuladores, mídias de interação social e de divulgação científica, criam uma rede de possibilidades de democratização de conhecimento para os estudantes que vai da escola para o mundo, impactando pessoas muito além das instituições de ensino, desde que desenvolvidas de modo crítico e mediadas pelos profissionais docentes.
Para Cristiane Brasileiro, a adoção de sistemas híbridos parece a melhor opção, porque alia um esforço de atualização tecnológica responsável da sala de aula com o tipo de cuidado pedagógico que se espera que os ambientes educacionais preservem. “A escola não deve ser apenas um mero espelho do que está fora dela, mas um lugar estratégico que busque, justamente em sua diferença, uma posição mais crítica e autônoma em relação à mera subserviência às pressões do mercado. O ideal seria o suporte adequado à concentração e ao aprofundamento que os materiais impressos dão, aliado à agilidade de consulta e ao volume e atualidade das informações que os materiais digitais podem fornecer”, diz.