Mais uma morte expõe fragilidade da população de rua


Por Daniela Arbex

10/06/2016 às 08h12- Atualizada 10/06/2016 às 10h21

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Corpo de Carlos Roberto Irineu estava em praça no cruzamento da Rua Américo Lobo com Avenida Brasil. Próximo havia indícios de que fogueira teria sido acesa (Foto: Olavo Prazeres)

Mais uma pessoa em situação de rua foi encontrada morta em via pública em Juiz de Fora. O corpo de Carlos Roberto Amaro Irineu, de 31 anos, estava na praça localizada no cruzamento da Rua Américo Lobo com Avenida Brasil, no Bairro Santa Terezinha. Ele era um velho conhecido dos serviços oferecidos pela Prefeitura que envolvem o acolhimento institucional. Seu último contato com a Casa da Cidadania foi no dia 9 de maio, quando ele esteve na unidade para buscar seus documentos. O corpo foi encontrado sem sinais de violência na manhã de ontem. Ao lado do cadáver havia indícios de que uma fogueira teria sido acesa durante a madrugada, como é hábito da população em situação de rua. Além de usar o fogo para cozimento de alimentos, a intenção desse grupo é encontrar meios de se aquecer. Este é o segundo caso de morte nestas condições em menos de um mês. No dia 25 de maio, outro morador de rua, Aldmir Anselmo Alencar de Souza, 64, também foi encontrado morto por populares na região central. Como não há resultado do exame de necropsia de Aldmir, ainda é cedo para dizer que o frio provocou o falecimento dele e de Carlos Roberto, no entanto, em ambos os casos, a temperatura na cidade estava em torno de 11,7 graus. A diferença é que a sensação térmica na madrugada desta quinta-feira era de quatro graus, metade do registrado no dia 25 de maio, quando a sensação térmica foi de 8 graus. Para agravar o quadro, os dois eram usuários de álcool e tinham histórico de abuso de drogas.

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Entre a população de rua, porém, a alegação é de que a friagem da madrugada contribuiu para o óbito do homem conhecido pelos colegas como Grande. “Gente, o Grande morreu, morreu de frio”, comunicava Laíse Diana Mendes em frente à Casa de Passagem da Mulher, um novo serviço de pernoite, que está sob a responsabilidade da Fundação Maria Mãe, mantenedora da Obra Pequeninos de Jesus, que conta com financiamento público.

O chefe do Departamento de Proteção Especial da Secretaria de Desenvolvimento Social, Lindomar José da Silva, lamentou o óbito, mas afirmou que Carlos Roberto tinha resistência em aderir aos serviços municipais, embora haja registros de que ele utilizou esses espaços em outros momentos. “A gente encara como lamentável a morte de qualquer ser humano, principalmente porque trabalhamos no acolhimento de pessoas. Isso nos incomoda, mas, por outro lado, esse é o nosso desafio. A gente oferece o serviço, mas não temos como obrigar as pessoas a aceitarem. Trabalhamos na perspectiva da cidadania. Nos dois casos, o que poderíamos fazer, nós fizemos. Essas pessoas têm algo em sua trajetória de vida que as faz demorar muito para fazer essa adesão e, às vezes, pode ser tarde demais. É algo que foge a toda lógica do cuidado na sociedade. Diante da resistência de alguns em aderir ao atendimento de saúde e aos serviços disponíveis, estamos dando ciência ao Ministério Público e fazendo esse movimento de informar, para que a gente tenha o respaldo desse controle

Para Fabiana Rabelo, membro do Centro de Referência em Direitos Humanos, a Prefeitura não tem cumprido o seu papel nas políticas de promoção e proteção à população em situação de rua. “Infelizmente, Juiz de Fora contabiliza mais um óbito de um morador em situação de rua. Independentemente da causa, a situação deflagra uma falha das políticas públicas municipais em relação aos moradores em situação de rua. O Núcleo do Cidadão de Rua de Juiz de Fora (albergue) se encontra em precárias condições de atendimento. Além da redução do número de vagas no albergue, os moradores em situação de rua – que conseguem acessar o serviço – têm dormido no chão sobre colchões em péssimas condições de uso. Diante da gravidade da situação, fica evidenciado que o Poder Público precisa intervir imediatamente para que, minimamente, o albergue ofereça um dormitório que garanta a dignidade da pessoa humana”, afirma.

Atualmente, a média de ocupação do albergue gira entre 60% e 70%. A sobra de vagas é uma realidade preocupante, principalmente no inverno. Lindomar, porém, não atribui a oscilação a uma causa específica. Desde fevereiro, entretanto, a precária situação do albergue vem sendo denunciada, mas a resposta do Poder Público não tem sido rápida. No início do ano, o local que hoje oferece cem vagas para homens em situação de rua vem sofrendo com infestação de piolho humano. Na tentativa de eliminar o problema, a Prefeitura transferiu, temporariamente, os usuários para o Cesporte e realizou diversas dedetizações no espaço que não surtiram o efeito desejado. Neste momento, o Núcleo do Cidadão de Rua passa por reformas. “O albergue continua sem camas, porque, como elas eram de madeira, foi preciso desmontar. Também decidimos aprofundar as reformas. Além da pintura, tacos foram arrancados e todas as frestas impermeabilizadas. Os cem colchões novos já chegaram e estamos aguardando a confecção das camas complementares de ferro. Assim que elas chegarem, as reformas em curso serão concluídas”, afirmou Lindomar.

Casa de Passagem oferece pernoite para mulheres

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Casa de Passagem, no Centro, tem estrutura para atender 20 mulheres diariamente (Foto: Marcelo Ribeiro)

A sociedade civil tem sido importante para garantir a oferta de serviços a indivíduos com vínculos familiares fragilizados que acabaram tendo a rua como endereço. Para a população em situação de rua, uma das principais referências tem sido o trabalho desenvolvido pela Fundação Maria Mãe, mantenedora da obra Pequeninos de Jesus, no Ladeira. A entidade sem fins lucrativos conta com R$ 8 mil mensais repassados pela Prefeitura e faz promoções sociais para conseguir servir diariamente café da manhã para 130 pessoas, além de oferta de banho, produtos de higiene pessoal, corte de cabelo, espaço para a limpeza de roupas e tratamento odontológico, esse último realizado em parceria com a UFJF. Os usuários também têm acesso a palestras com profissionais de saúde e participam da evangelização. No inverno, alimentos quentes são priorizados. Ao contrário do que acontece no albergue, não há problema de adesão da população de rua ao serviço oferecido pelos Pequeninos de Jesus.

Segundo a presidente da Fundação, Vanessa Farnezi, muitos usuários chegam da rua ou do albergue sentindo frio e solicitando agasalho. “É muito triste, nos dias de hoje, uma pessoa morrer sem apoio e solidariedade na rua. Me entristeço por este homem que morreu e por outros que possam vir a falecer se a gente não tiver um olhar de misericórdia. Nós tentamos humanizar ao máximo o atendimento que oferecemos a essas pessoas, as quais procuramos chamar pelo nome. Um dia, ao me despedir de um desses moradores, ele me disse: quando a senhora me chama pelo nome, eu até me sinto gente”, relata.

Exatamente para oferecer dignidade a esse grupo é que a fundação criou a Casa de Passagem da Mulher. Antes mulheres e homens pernoitavam no albergue. Desde março, o novo dormitório feminino, localizado na Rua Professor Oswaldo Veloso, no Centro, oferece jantar, camas individualizadas e refeitório com aspecto de lar. Curiosamente, não foi feita nenhuma divulgação oficial sobre o novo serviço pelo Poder Público, e as vagas ainda não foram totalmente preenchidas. A capacidade atual é para 20 mulheres, mas o projeto prevê até 50 lugares. Muitas mulheres ainda resistem em dormir longe dos companheiros e, por causa disso, acabam se tornando vítimas permanentes de violações. “As mulheres em situação de rua sofrem de tudo um pouco: violência e preconceito. Esse lugar oferece para elas mais dignidade”, afirma o coordenador Luã Farnezi Santos.

Outro ponto de apoio é a Sopa dos Pobres, que atende 200 pessoas diariamente no horário do almoço. Por dia, a entidade filantrópica gasta, em média, dependendo do prato, 20kg de feijão e 15kg de macarrão, além de mais de 15kg de carne ou frango. Sem nenhuma espécie de convênio, a entidade sobrevive há 85 anos de doações da comunidade. “A gente não pode esperar outro óbito acontecer para agir. Precisamos pensar que o mundo dá muitas voltas e poderia ser qualquer um de nós a estar na rua ou um ente querido. Ninguém sabe o dia de amanhã”, alerta a secretária da entidade, Rosilaine Ribeiro Assunção.

 

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