Justiça autoriza morador de JF a cultivar maconha em casa
Homem sofre de epilepsia generalizada e poderá manter até dez pés em floração para extração de óleo da planta
A 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) concedeu habeas corpus em caráter definitivo autorizando a um morador de Juiz de Fora, de 44 anos, o cultivo, o uso e a posse das plantas de Cannabis sativa – a maconha – para fins medicinais. Transitada em julgado no dia 3 de fevereiro, a decisão em caráter colegiado foi unânime, prevalecendo, assim, a posição do relator, o desembargador Dirceu Walace Baroni, que autorizou o uso da maconha “em quantidade estritamente necessária para a produção do óleo imprescindível à continuidade do tratamento” da enfermidade do homem, que padece de epilepsia generalizada de difícil controle. O nome do paciente é mantido em sigilo, uma vez que o processo corre em segredo de Justiça.
“Autoriza-se o uso apenas do óleo extraído da maconha, sendo vedado o seu consumo de qualquer outra forma. Ficam assim impedidos os agentes das autoridades apontadas por coatoras de procederem à prisão do paciente pelo cultivo, uso e posse da planta Cannabis sativa e do óleo artesanal extraído do vegetal, bem como de realizarem a apreensão ou destruição de material correlato, que estiverem exclusivamente na residência do paciente”, afirmou Baroni em seu voto. Em outubro do ano passado, a Tribuna já havia noticiado que o mesmo desembargador já havia dado, em caráter preventivo, um habeas corpus favorável ao cultivo e ao uso da planta ao paciente.
Na ocasião, a reportagem destacou que o homem possui três laudos médicos recomendando o uso medicinal da maconha como tratamento da doença. O habeas corpus tem por objetivo evitar possíveis ações de agentes de segurança pelo cultivo, posse e uso medicinal da maconha por parte do paciente, garantindo, assim, um salvo-conduto ao morador de Juiz de Fora. Com relação à primeira decisão, a deliberação colegiada traz poucas novidades. As principais delas dizem respeito à definição de limites para o cultivo da Cannabis pelo paciente, que será limitada a dez pés em floração e também ao prazo de cinco anos, que poderá ser debatido e protelado em caso de necessidade futura. Também ficou prevista que agentes do estado fiscalizarão o plantio e a extração do óleo.
Caso foi julgado originalmente no TJMG
Na ação, os advogados que defendem o paciente, Leonardo Moreira Campos Lima e Carlos Frederico Delage, do escritório de advocacia Delage & Lima, argumentaram que o paciente não responde bem aos medicamentos convencionais, estando sujeito a crises epilépticas com risco de queda com traumatismo craniano, ‘queda da língua’ com asfixia, risco de acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio e risco de morte. Após a decisão, os advogados destacaram o ineditismo da decisão. Isto porque o processo em questão foi o primeiro na cidade que resultou em uma decisão favorável ao cultivo da maconha para uso medicinal e também foi a primeira vez no país em que o julgamento se deu originariamente em um Tribunal de Justiça, no caso o TJMG.
Segundo os advogados, que já têm em mãos ou acompanham outros casos similares, a decisão do TJMG é positiva no sentido de garantir o direito à saúde do paciente. “Ele já apresentou melhoras significativas desde que iniciou o tratamento com o óleo. Cabe observar que ele tem a plena capacidade de produzir este óleo, que é feito de forma artesanal. “Além da decisão unânime é importante destacar o parecer favorável do Ministério Público”, afirma o advogado Leonardo Lima. Já Carlos Frederico reforça que a decisão garante a dignidade da vida humana. “Esta é uma decisão importante do ponto de vista da saúde em uma área que é tratada como criminal. É importante fazer com que as pessoas entendam que não se trata, neste caso, de liberar drogas, mas da utilização da planta com uma finalidade medicinal. Conseguir fazer com que os desembargadores pensem desta forma é algo relevante.”
De acordo com informações da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Reforma), até o fim de semana, já foram registrados em todo o país 64 habeas corpus favoráveis ao cultivo de maconha para fins medicinais, inclusive para o uso de crianças, para o tratamento de doenças como epilepsia, dor crônica, autismo, síndrome do intestino irritável, paralisia cerebral, entre outras.
Histórico
Segundo a ação judicial, o paciente iniciou a plantação de Cannabis para a extração do óleo medicinal por conta própria e de forma clandestina ainda em 2017. Entretanto, a luta para viabilizar o tratamento teve início dois anos antes, em 2015, quando conseguiu autorização excepcional da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação de produto à base de canabidiol em associação com outros canabinóides, na forma de 37 unidades de uReal Scientific Hemp Oil (RSH) CBD pelo período de um ano para tratamento de sua saúde.
Em 2016, sem condições para bancar o medicamento estimado em cerca de R$ 36 mil ao ano, ele recorreu à Justiça para pedir que o Estado arcasse com os custos do tratamento. Em julho daquele ano, o Juizado Especial Cível da Comarca de Juiz de Fora deferiu tutela antecipada para que o Estado de Minas Gerais fosse intimado a fornecer o medicamento, sob pena de multa diária de R$ 200. Segundo o advogado Leonardo Lima, no entanto, o pagamento só foi feito uma única vez, sendo interrompido em seguida.
Especialistas defendem regulamentação
Coordenador do Núcleo de Estudos de Violência e Direitos Humanos (Nevidh) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o professor Paulo Fraga destaca que a questão vem sendo estudada por várias áreas de conhecimento. “O Brasil está muito atrasado no que diz respeito a ter uma legislação para tratar do assunto”, pontua o especialista. Para ele, decisão recente da Anvisa de simplificar o procedimento para importação de produto à base de canabidiol para uso pessoal não é o suficiente para atender às necessidades daqueles que fazem uso do óleo para fins medicinais.
“O preço é altíssimo”, ressalta o professor. Paulo considera ainda que, por suas características, o Brasil é um país em que o cultivo seria possível em grande parte de seu território. “Precisamos avançar em uma regulação”, diz. Neste sentido, ele cita projeto de lei que versa sobre o assunto, mas sua tramitação no Congresso Nacional se arrasta desde 2015. Sobre o habeas corpus obtido pelo morador de Juiz de Fora, o especialista considera a medida importante, porém, insuficiente, pois não tem caráter universal. “As pessoas que precisam do óleo não querem ficar na irregularidade.”
Paulo ressalta a importância da discussão por seu caráter terapêutico e medicinal. “As pessoas não conseguem obter os mesmos efeitos com outros remédios”, pontua Paulo. Professor da Faculdade de Medicina da UFJF, Márcio Alves acompanha pacientes que fazem uso do óleo extraído da Cannabis sativa e também destaca seus efeitos no combate a algumas enfermidades. “Na maioria das vezes, os resultados são impressionantes”, destaca o especialista, que monitora situações em que a opção pela produção de se dá sem autorização judicial. “É preciso retirar estas pessoas da clandestinidade”, afirma, ao defender uma regulamentação do cultivo da maconha para medicinais.
“É um direito de todos e dever do Estado a garantia de saúde e de acesso a tudo aquilo que possa garantir prevenção, tratamento e cura”, avalia Márcio. Para ele, a regulamentação do cultivo para fins medicinais ainda esbarra em tabus morais. “É preciso destacar que o óleo não traz nenhum efeito psicotrópico. É um chá. Tanto que a Anvisa já colocou a cannabis no rol de plantas medicinais.”
Além do uso do óleo em casos de epilepsia, entre os 41 pacientes acompanhados pelo docente da UFJF, entre outros, há casos de autismo e de doenças que incidem mais sobre a população mais idosa, como Parkinson e Alzheimer. “Além das questões morais, creio que existem outros interesses para que o cultivo para uso medicinal da cannabis continue proibido. O chamado ‘ouro verde’ só tem valor quando há proibição”, define. Já para Paulo Fraga, a falta de regulamentação também está relacionada à questão moral, mas ele acredita que podem, inclusive, “existir outros interesses comerciais e financeiros” travando os avanços nas discussões sobre o tema.