Ausência de dados dificulta criação de políticas públicas assertivas para população LGBTQIAPN+
Para especialista, a falta de dados oficiais no país decorre do histórico de apagamento e reforça o desconhecimento do perfil dessa população
Há um mês, os primeiros resultados do Censo Demográfico 2022 começaram a ser divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, a falta de dados específicos sobre a população LGBTQIAPN+ brasileira, mesmo após reivindicação de organizações da sociedade civil, chama atenção para a dificuldade de implementação de políticas públicas assertivas e outros investimentos sociais. Sem a inclusão de perguntas relacionadas a orientação sexual e identidade de gênero, o perfil socioeconômico e geográfico desse grupo social permanece desconhecido por mais dez anos.
O Censo Demográfico busca entender quem são, onde estão e como vivem os brasileiros, sendo a principal fonte de referência quando se trata das condições de vida da população nos diferentes recortes territoriais do Brasil. É por meio dos resultados dessa pesquisa que os Poderes Públicos realizam o planejamento social e econômico do país. Por isso, a ausência de dados oficiais afeta de forma direta a vida da população LGBTQIAPN+, como explica o advogado e secretário da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/MG, Júlio Mota de Oliveira.
“A exclusão de marcadores como identidade de gênero e orientação sexual de uma pesquisa que visa a conhecer as características da nossa sociedade impede o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas e a realização de investimentos, tanto do Governo quanto da iniciativa privada, que visem a promoção do acesso a direitos, como saúde, segurança, educação, alimentação, trabalho e moradia pela população LGBTQIA+”, afirma Júlio.
De acordo com o advogado, a inclusão dessas informações no Censo viabilizaria transformações estruturais para combater a vulnerabilidade socioeconômica desse grupo através do conhecimento de fatores, como expectativa de vida, desigualdades raciais e de gênero, características educacionais, indicadores de mercado de trabalho e distribuição de rendimentos, por exemplo.
Situação reflete histórico de invisibilidade social
“Como verificar as demandas e planejar políticas públicas em relação a um determinado segmento social cujos dados são incompletos ou até mesmo inexistentes?”, questiona Júlio. Para o especialista em diversidade, a ausência de marcadores como identidade de gênero e orientação sexual no Censo decorre do histórico de apagamento da população LGBTQIAPN+ “através da omissão do Estado em reconhecer a existência desses cidadãos”.
Para o professor da Faculdade de Serviço Social Marco José Duarte, são poucas as estatísticas que revelam a existência desta população. Na opinião dele, o apagão de dados oficiais dificulta a produção de estudos e pesquisas que possam servir de subsídio para políticas públicas voltadas para as reais necessidades dessa população. Além disso, o professor acredita que o problema reforça a violência que o grupo sofre no país.
“O que tivemos, em 2010, é muito pouco. O IBGE contabilizou a população residente com cônjuges do mesmo sexo, criando dados que ainda não condizem com a totalidade de homossexuais que vivem de acordo com esses critérios. No caso, tratou-se de gays e lésbicas, que continuam sub-representados e sub-representadas. Deixando uma população inteira do lado de fora das estatísticas, como bissexuais, pansexuais e assexuais. Além de não terem incluído as identidades de gênero (travestis, transexuais, transgêneros, não-binária, agênero, etc).”
Em junho do ano passado, o IBGE recorreu à decisão da Justiça Federal do Acre que determinava a inclusão da população LGBTQIAPN+ no recenseamento de 2022. O instituto alegou que não era possível incluir no questionário perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero com a metodologia adequada, devido ao curto prazo para o início da pesquisa, que, naquela época, estava prevista para agosto do mesmo ano.
A reportagem questionou o IBGE se há planos para reformulação da metodologia da pesquisa para que ocorra a inclusão de perguntas voltadas para esse grupo social no próximo Censo ou se outro levantamento está previsto para suprir a demanda antes dos próximos dez anos, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Subnotificação e violência
No ano passado, o IBGE divulgou dados sobre orientação sexual da população brasileira pela primeira vez, através da Pesquisa Nacional de Saúde (Pnad) de 2019. O levantamento mostrou que cerca de 2,9 milhões de adultos se declararam homossexuais ou bissexuais no país, o que correspondia a 1,8% da população maior de 18 anos. No entanto, dados da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABLGT), principal representante da comunidade no país, estimam que 10% da população se declara homossexual ou bissexual, apontando para uma subnotificação do número levantado pela Pnad.
Entre as possíveis causas dessa subnotificação estão a falta de segurança em responder o questionário e o fato de as perguntas não serem feitas de forma individual, já que uma única pessoa da residência pode responder por todos. “O Brasil é um dos países mais violentos do mundo para a população LGBTQIAPN+. Neste sentido, não há como desconsiderar que muitas pessoas se sentem desconfortáveis para declarar sua identidade de gênero ou orientação sexual que destoe da norma heterossexual e cisgênera”, afirma Júlio.
Ao comparar os dois dados, o professor Marco analisa que a negligência do Estado persiste, o que reforça os altos índices de violência contra esse grupo social no país. “Esta população, suas pautas, seus corpos e vidas, historicamente, nunca tiveram muito espaço na política institucional brasileira. A política de violência e morte para estes corpos é real, o que afirma que o país se mantém na liderança mundial de violências diversas, como de assassinatos e mortes de LGBTQIAPN+, principalmente das mulheres trans e travestis, seguido dos gays.”
No entanto, o advogado reforça que a subnotificação não deve ser vista como empecilho para inserção desses marcadores, mas sim como um alerta para ampliar as discussões sobre diversidade e inclusão. Já o professor observa a possibilidade das questões mais detalhadas serem incorporadas, ainda em 2023, nos trabalhos do Sistema Integrado de Pesquisa Domiciliares (SIPD), como a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), com o apoio da Secretaria Nacional LGBTQIA+.
Iniciativa levanta dados independentes de JF
Marco é coordenador do Diverse, Centro de Referência LGBTQIA+ da UFJF, que busca produzir dados relacionados à população LGBTQIAPN+ em Juiz de Fora desde 2018. Na falta de informações oficiais, o professor, junto com colaboradores, foi atrás de levantar dados de forma independente para traçar um diagnóstico da população LGBTQIAPN+ juiz-forana, visando a criação de ações públicas. Em 2021, o grupo participou da elaboração do Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da População LGBTQIA+, desenvolvido pela Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), apresentando os dados e suas análises, principalmente sobre os temas de saúde, direitos humanos, educação, assistência social, trabalho e empregabilidade e renda.
O levantamento mostrou que a maioria da população sofre algum ato de violência, seja discriminação ou preconceito em algum tipo de serviço e/ou violência psicológica e moral. Grande parte não participa de nenhum grupo, coletivo ou mesmo movimento LGBTQIAPN+, restando a rede de amigos como espaço de acolhimento. O pesquisador também explica que muitos não conhecem seus direitos, como redes de proteção, e, por isso, não procuram ajuda.
“Estes dados nos revelam muito sobre a necessidade do atendimento a esta população, através de políticas públicas e seus serviços, por apresentar problemas que devem ser atendidos na saúde em geral e na saúde mental em particular. Mas também sobre trabalho, gerando renda, e no abrigo, que envolvem não só assistência social e direitos humanos, mas também a segurança pública”, ressalta Marco.