Impacto de R$ 8 mi com judicialização na Saúde
Por não terem seus direitos de acesso à saúde garantidos pelo Poder Público ou pela morosidade que o Sistema Único de Saúde (SUS) leva para oferecer atendimentos que são cruciais para o tratamento de doenças graves, os pacientes têm entrado com maior frequência com ações judiciais para obter internações ou medicamentos que irão garantir sua sobrevivência. No entanto, esse gasto extra tem impactado em mais de R$ 7,9 milhões no orçamento anual da Prefeitura e interfere no planejamento das ações de saúde. Esse valor cresce a cada mês, já que grande parte dos processos é acumulativa. Pesquisadores da UFJF analisaram 575 ações judiciais que deram entrada entre os meses de setembro de 2014 e março de 2015, nas quais foram avaliadas a responsabilidade de cada ente público. O trabalho apontou que 75,28% do custo desses processos não eram de competência da Secretaria de Saúde do município, embora a mesma arque com quase todo o custeio. A pesquisa ainda levantou o perfil do público que busca a Justiça para obter os seus direitos. O autor da dissertação “Judicialização no âmbito do Sistema Único de Saúde: um estudo descritivo sobre o custo das ações judiciais na saúde pública do município de Juiz de Fora”, Rogério Nunes, frisa que o estudo não questiona o direito à judicialização por parte do cidadão, mas sim a responsabilização pelas ações de saúde. Com base nessa pesquisa, a Tribuna inicia hoje a série “Judicialização da Saúde”, trazendo as consequências para a população desse impacto no orçamento municipal e o que poderia ser realizado para minimizar esse efeito.
Custos
Segundo a pesquisa, as demandas judiciais ocorreram para garantia de internação hospitalar, fornecimento de medicamentos e de suplementos e complementos alimentares, além de exames e insumos. O custo total dos 575 processos analisados foi de R$ 3.506.701,95. O custo médio de cada ação foi estimado em R$ 6.098,61, ou um custo mensal de R$ 1.016,44 por processo. Entre os mandados estudados, metade era referente a internação, 25,91% eram pedidos de medicamentos, 13,91% eram complementos ou suplementos alimentares, 5,04% exames, 1,91% insumos e 3,14% outros pedidos. Apesar de a maioria dos pedidos ser por leitos, foram os medicamentos que impactaram mais os cofres públicos, representando 58,62% do custo total (ver quadro).
Conforme o orientador da dissertação e coordenador do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Alfredo Chaoubah, foram avaliados apenas os processos que deram entrada entre setembro de 2014 a março de 2015. Assim, o custo é muito maior do que o analisado, já que concomitantemente há outros processos em andamento. “Você tem processos iniciados em 2005. O mandado para uma dose de insulina, por exemplo, tem que ser contado durante toda vida do paciente”, explica. “O que mostramos é que, a partir do momento em que o juiz dá autorização para o cumprimento de um mandado, aquela única autorização custa, em média, R$ 1 mil por mês”, completa Rogério.
Ações judiciais furam a fila do SUS
Os mandados judiciais afetam o fornecimento de outros serviços já que o recurso precisa ser tirado de algum lugar, conforme o coordenador do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Alfredo Chaoubah. “Você tem um orçamento X. Se você tira um pedaço dele, o recurso vai sair de algum lugar, o que pode impactar na assistência coletiva. Essa é uma grande discussão do problema da judicialização. Você tem o direito individual e tem o direito coletivo.” A secretária de Saúde, Elizabeth Jucá, diz que essa questão tem sido muito debatida. “Há um novo entendimento de que o particular não pode se sobrepor ao coletivo. Assim, um secretário de Saúde passa por decisões difíceis. Por exemplo, comprar uma medicação importada para o tratamento de câncer, de uso experimental, que não se sabe se vai dar uma sobrevida, com um custo de R$ 200 mil ou, com esse mesmo valor, abastecer por mais de um mês todas as 63 unidades básicas de saúde, que referem-se ao coletivo? O mandado judicial coloca o particular acima do coletivo.”
A titular da pasta acrescenta que essa situação também afeta as internações, já que as ações judiciais acabam por furar a fila de priorização, que é realizada seguindo um protocolo de emergência. “Isso gera um ciclo. Outros mandados judiciais são gerados em função de um primeiro. O cara vê outro conseguindo uma vaga na frente dele e pensa: a via judicial é a que eu vou recorrer para conseguir atendimento”, acrescenta o subsecretário de Regulação, Vitor Monteiro.
A secretária alega que o mandado judicial afeta todo o planejamento, gerando incerteza. “Não era para existir mandado judicial. O SUS tinha que atender integralmente. Só que temos que lembrar da Constituição e da capacidade financeira. Como o SUS foi constituído? Na base da atenção primária e da prevenção. Então, 80% dos casos deveriam ser resolvidos na atenção primária e só 20% deveriam seguir para a média e alta complexidade. Só que isso não acontece. A população ainda não assimilou essa questão da prevenção, do médico de família. Então, há uma desconexão de como o SUS foi planejado e como ele é executado, inclusive com uma diferença de 25 anos da criação do sistema.”
Todo o recurso disponibilizado para os mandados vem do Tesouro Municipal. Assim, esse dinheiro poderia ser gasto em qualquer outro setor da Prefeitura, como escolas, creches, saneamento básico, infraestrutura. “Do ponto de vista da saúde, a gente poderia investir mais nos procedimentos da atenção primária, na prevenção, naquilo que realmente é de competência do Município”, completa o subsecretário de Gestão, Mariano Miranda.
‘Essa conta não está sendo dividida’
O estudo realizado por Rogério Nunes apontou que 90,26% do custo dos pedidos judiciais para internação hospitalar correspondiam à responsabilidade da Secretaria de Saúde do município. Sendo assim, a judicialização veio a garantir ao cidadão serviços que já deveriam ter sido ofertados. Em contrapartida, 99,70% do custo dos mandados para obtenção de medicamentos não eram de competência do poder municipal. No balanço final, verificou-se que 75,28% do custo estimado para os 575 processos analisados na pesquisa se referiram à oferta de serviços que não eram da competência administrativa da Secretaria de Saúde de Juiz de Fora como gestora do SUS. Ou seja, o Município arcou com um custo de quase R$ 2,5 milhões que seriam de responsabilidade de outras esferas do Poder Público (ver quadro). “Se por um lado (a ação judicial) busca a garantia do direito constitucional do cidadão, por outro, impõe à esfera municipal o ônus de seu custo, sem observar as responsabilidades comuns e privativas de cada ente federado na organização do SUS”, enfatiza Rogério.
O autor avalia que os operadores de direito não consideram a escassez de recursos públicos e as variáveis econômicas quando emitem os mandados judiciais. “O recurso é finito. Existe um planejamento financeiro e assistencial. Isso não é considerado na judicialização. Mas o que mais me intriga é essa situação de mandar a conta para quem? Se você tem competências e atribuições privativas para cada ente, reguladas pela Lei 8.080, que diz, por exemplo, que cabe ao Ministério da Saúde incorporar medicamentos, por que são os municípios que são demandados para sanar essas questões?”
Rogério conta que, em alguns casos, são feitos mandados compartilhados. “Por exemplo, o Município deveria fornecer o primeiro medicamento, o Estado, o segundo, e a União, o terceiro. O Município vai lá, a duras penas, e fornece o primeiro mês. Quando chega o segundo mês, o Município não recebe do Estado nem a verba e nem o produto. Então, o Município vai e entrega mesmo assim. Isso é constante nos processos porque o cidadão pega o remédio aqui na cidade. Ele não vai em Belo Horizonte e nem em Brasília. Essa conta não está sendo dividida com o Estado e com a União.” Conforme o subsecretário de Gestão, Mariano Miranda, essa situação ocorre principalmente quando se trata da União. “A União costuma demorar para enviar o recurso e, muitas vezes, o valor é alto. A gente é obrigado a disponibilizar do Tesouro Municipal para comprar a parte da União. Depois, a gente busca o ressarcimento, que demora a acontecer.”
Financiamento
Entre os anos de 1980 e 2000, o total dos gastos públicos do Governo federal na saúde caiu de 85% para 45%. Em direção oposta, os municípios e estados aumentaram a sua contribuição. “O SUS é desenhado para funcionar de forma integralizada, com responsabilidades claras entre os entes, respeitando a competência e o grau de recursos que cada ente possui. E a judicialização, em alguns pontos, fere e pune o ente mais próximo e mais fraco financeiramente que é o município”, finaliza o subsecretário de Gestão.
Morosidade em outras instâncias sobrecarrega Município
Juiz de Fora foi o município responsável pelo maior número de ações de Minas Gerais em 2010, com 1.255 mandados. Em seguida estão Belo Horizonte (987 processos) e Divinópolis (213). O dado demonstra que, em Juiz de Fora, a maioria das ações é emitida contra a Administração municipal. A coordenadora da Comissão dos Direitos dos Consumidores da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ana Cristina Brandão, admite que os advogados da cidade preferem realizar os mandados contra o Município. “Normalmente, a gente entra contra o Município porque é um processo mais ágil, e há a possibilidade de ir lá cobrá-lo. Mas isso depende de cada advogado.” No entanto, a coordenadora afirma que a competência de cada ente deveria ser levada em consideração. “Mas a morosidade de uma ação contra a União, por exemplo, leva os advogados a entrarem contra o município.” Segundo ela, a OAB não foi provocada para dar abertura a essa discussão. “Ninguém nos procurou como entidade para abrir esse debate.”
Minimizando impactos
Para tentar amenizar o impacto no orçamento municipal, a Secretaria de Saúde busca implantar a utilização de uma espécie de consultoria para o Judiciário a uma junta médica que iria avaliar cada mandado. “Quem emite o mandado não é médico. O juiz dá o aval em favor a uma atestado. Então, ele não questiona. O que a gente quer é que essa ação passe por uma junta médica de avaliação”, conta a secretária de Saúde, Elizabeth Jucá. A própria Prefeitura possui uma junta com profissionais médicos, nutricionistas, enfermeiros e assistentes sociais que avaliam caso a caso as judicializações para verificar se é possível fornecer outra medida que atenda a necessidade do paciente.
Outra providência adotada foi a discussão com os emissores da judicialização, como ouvidoria, defensorias e promotorias. “Debatemos a questão do mandado judicial para medicamentos que compunham a rede, que eram recorrentes na gestão passada. Com isso, praticamente zeramos as ações para remédios que já são da cesta básica do Município”, conta o subsecretário de Gestão, Mariano Miranda.