Flúor na água faz mal? Entenda a polêmica
Apesar do respaldo de grandes entidades de saúde, a fluoretação da água enfrenta questionamentos baseados em pesquisas e decisões políticas, reacendendo um antigo debate

Durante décadas, a adição de flúor na água foi celebrada como uma das estratégias mais eficazes e acessíveis para combater a cárie dentária no mundo. Desde que Grand Rapids, nos Estados Unidos, se tornou a primeira cidade a adotar a medida em 1945, a prática se espalhou globalmente. Mas, quase 80 anos depois, a fluoretação voltou ao centro de um debate polarizado, alimentado por estudos recentes, decisões políticas e uma onda de desinformação.
Em 2025, Utah e Flórida aprovaram leis que proíbem a adição de flúor nos sistemas públicos de água. Os legisladores alegam preocupação com possíveis riscos ao desenvolvimento neurológico infantil, embora grandes instituições de saúde continuem a apoiar a prática. A Organização Mundial da Saúde (OMS), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) e a Associação Dental Americana (ADA) mantêm recomendações favoráveis à fluoretação.
A polêmica ganhou força após um estudo do Instituto Karolinska, na Suécia, publicado em março na Environmental Health Perspectives. Pesquisadores acompanharam 500 crianças em Bangladesh por 10 anos e encontraram uma associação entre exposição ao flúor — mesmo em níveis inferiores ao limite de 1,5 mg/L recomendado pela OMS — e pequenas quedas nos índices de inteligência e habilidades cognitivas. Os autores reforçam que o estudo não comprova causa e efeito, mas recomendam mais pesquisas. Ainda assim, as descobertas foram suficientes para acender o alerta entre gestores públicos e parte da população.
Segundo Bruna Fronza, professora de Odontologia da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE), esses estudos têm limitações. “Faltam controles para outras variáveis ambientais e fontes adicionais de flúor, o que compromete a confiabilidade das conclusões”, afirma.
Evidências sólidas e benefícios comprovados
A fluoretação fortalece o esmalte dos dentes, revertendo pequenas perdas minerais causadas por ácidos. Por alcançar toda a população, ela reduz desigualdades no acesso à saúde bucal. No Brasil, a prática é obrigatória desde a lei nº 6.050, de 1974, e contribuiu para uma queda expressiva da cárie dentária. O índice CPOD (que mede dentes cariados, perdidos e obturados) caiu de 7,3 em 1980 para 1,7 em 2023.
“O ajuste da concentração de fluoreto na água é uma medida de baixo custo e alta eficácia preventiva”, explica Paulo Frazão, da Faculdade de Saúde Pública da USP. “É a única estratégia capaz de reduzir desigualdades de cárie entre crianças de diferentes rendas.”
Riscos reais e suposições
Os efeitos colaterais conhecidos, como a fluorose dentária — manchas esbranquiçadas nos dentes — são geralmente leves e raros quando o nível de flúor é monitorado, como no Brasil. Casos graves são mais associados ao uso excessivo de cremes dentais com flúor em crianças do que à água fluoretada, diz Fronza.
Uma revisão do National Toxicology Program (NTP) dos EUA analisou 74 estudos e identificou relação entre altos níveis de fluoreto e pequenas quedas no QI infantil. Porém, os próprios autores alertaram sobre a baixa qualidade metodológica das pesquisas.
“O que vemos são interpretações equivocadas ganhando força nas redes sociais e minando políticas públicas, como ocorreu com vacinas”, alerta Frazão.
Um estudo da Harvard School of Dental Medicine, de maio de 2025, estimou que o fim da fluoretação resultaria em 25 milhões de dentes cariados a mais em crianças nos EUA, com custos de quase US$ 10 bilhões em tratamentos.
E o Brasil?
Aqui, a política continua, mas enfrenta desafios. Cerca de 25% da população ainda não tem acesso à água fluoretada, segundo o Conselho Federal de Odontologia (CFO). Em muitas cidades, a vigilância da qualidade é falha. “Há espaço para expandir e qualificar a fluoretação”, diz Frazão.
Claudio Miyake, presidente do CFO, reforça: “O aumento do CPOD em locais sem fluoretação mostra a importância de manter e ampliar a política”. Além disso, o flúor atua junto a outras práticas: higiene oral regular, dieta saudável e acesso ao dentista. Mas, como lembra Fronza, essas medidas dependem de escolhas individuais, enquanto a fluoretação protege coletivamente.
“É uma estratégia efetiva porque não exige ação direta do indivíduo. Isso faz toda a diferença em contextos de vulnerabilidade social”, conclui a especialista.
Tópicos: flúor / Políticas públicas / saúde bucal