Após circum-navegação com mais de 20 mil quilômetros na Antártica, cientistas estudam o efeitos do aquecimento global
Expedição estuda o recuo do gelo, a emissão de gases e as mudanças no solo para entender o futuro do clima
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Entre os dias 20 de novembro de 2024 e 31 de janeiro deste ano, a maior expedição já liderada pelo Brasil na Antártica reuniu inúmeros pesquisadores, incluindo 27 brasileiros. Durante mais de 60 dias, a equipe enfrentou temperaturas extremas, explorou paisagens que variam do deslumbrante ao inóspito e coletou amostras para pesquisa que busca compreender os processos das mudanças climáticas. No fim do ano passado, a Tribuna acompanhou o início dessa jornada, que percorreu mais de 20 mil quilômetros da costa do continente. Agora, quase um mês após o retorno de parte dos cientistas, a reportagem traz os primeiros achados e impressões dessa missão.
A Antártica, assim como o Ártico, são as regiões mais sensíveis às mudanças climáticas e, por isso, ajudam a indicar o que poderá acontecer ao resto do mundo, conforme a evolução de fenômenos extremos.
O professor do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa (UFV), José João Lelis de Souza, foi um dos brasileiros selecionados para a expedição. Especialista em solos, ele já esteve em terras geladas quatro vezes, mas destaca uma diferença fundamental na experiência mais recente em relação às anteriores: enquanto em outras ocasiões os pesquisadores montavam acampamentos fixos, desta vez, a travessia foi realizada a bordo do navio quebra-gelo científico Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica, de São Petersburgo, na Rússia. Foi a embarcação que tornou possível a coleta de amostras em inúmeras regiões do continente. “Quase um cruzeiro”, brinca.
A expedição teve como principal objetivo estudar os solos antárticos para mapear eventos climáticos passados e monitorar possíveis mudanças futuras. Em entrevista à reportagem, José explica que “em outras regiões do globo, é comum pesquisar a vegetação para entender as oscilações climáticas de determinado local”. No entanto, ele ressalta que, nos pólos, onde a cobertura vegetal é muito incipiente, o solo entra como uma “biblioteca de dados”, um “guardião das memórias”, em outras palavras. Dessa forma, a análise permite reconstruir o passado climático, fazer previsões e identificar possíveis irregularidades.
Os estudos de José estão voltados para a reconstrução do passado climático, enquanto seu parceiro de pesquisa, também professor do Departamento de Solos da UFV, Márcio Rocha Francelino, foca no futuro. Estudioso da Antártica desde 2002, Márcio participou de sua 17ª expedição ao continente, mas, desta vez, explorou, pela primeira vez, a porção oriental. Durante a missão, ele observou de perto os impactos das mudanças climáticas na região, como o recuo e a desintegração de plataformas de gelo, acompanhados pelo aumento na quantidade de icebergs.
Para monitorar essas transformações, desta vez foram instalados três sítios de pesquisa equipados com sensores de temperatura e umidade do solo, além de dispositivos para medir a emissão de gases de efeito estufa. Os dados coletados são transmitidos diariamente via satélite, permitindo acesso remoto de qualquer lugar com conexão à internet. Ao longo do tempo, essas informações serão analisadas e processadas para oferecer uma compreensão mais clara das mudanças climáticas passadas, presentes e futuras na região. A pretensão dos especialista é monitorar a região por, no mínimo, seis anos.
Contribuição para políticas ambientais
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As pesquisas ainda estão em fase inicial. Embora os efeitos das mudanças climáticas na Antártica já sejam evidentes, análises mais detalhadas ainda serão realizadas. As amostras coletadas precisam ser transportadas congeladas para o Brasil, um trabalho que ficará a cargo do Programa Antártico Brasileiro (Proantar). A previsão é que elas cheguem ao país em abril e, durante esse período, os pesquisadores se dedicam ao planejamento das próximas etapas do estudo.
“A gente já vai conversar com os colaboradores chineses, indianos, russos que conhecemos durante a expedição. Vamos planejar cuidadosamente todas as análises que precisam ser feitas e quais experimentos devem ser conduzidos para aproveitar ao máximo essas amostras”, explica José. Essas análises vão apresentar os reais efeitos das mudanças climáticas sobre a Antártica, e é justamente essa coleta de informações que permitirá entender a gravidade da situação climática do globo, especialmente quando falamos da emissão de gases de efeito estufa.
Com o derretimento das geleiras e o recuo do gelo, novas áreas – antes congeladas- ficam expostas e passam a ser ocupadas por vegetação, aves, pinguins e outros mamíferos. No entanto, ainda não se sabe se essa colonização aumenta ou reduz a liberação de gases de efeito estufa. Os especialistas explicam que compreender esse processo é essencial para determinar se a Antártica está absorvendo ou emitindo esses gases à medida que o gelo derrete. Essas informações impactam diretamente a forma como os países irão pensar suas estratégias de mitigação das mudanças climáticas e suas políticas de conservação para a região.
Ainda de acordo com os especialistas, o Brasil, como signatário do Tratado da Antártica, precisa realizar esse tipo de pesquisa, que é extremamente relevante para o país. O clima da Antártica influencia diretamente as dinâmicas atmosféricas e oceânicas da América do Sul, afetando padrões de chuva e temperatura. Essa relação tem um impacto direto na agricultura brasileira, especialmente para os pequenos produtores, que representam mais de 70% da produção de alimentos consumidos no país, segundo a edição do Plano Safra 2023-2024.
Esses agricultores não têm grande capacidade de adaptação às mudanças drásticas no clima, como períodos de seca mais longos ou chuvas mais concentradas. Com o avanço do aquecimento global, a tendência é enfrentar temperaturas cada vez mais extremas, e compreender a influência da Antártica nesse processo pode ser o caminho para garantir a segurança alimentar e a qualidade de vida da população.
Diário de bordo
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Ficar mais de dois meses na Antártica é garantia de histórias para contar. Para José, mesmo não sendo sua primeira vez no continente, cada expedição reserva uma surpresa diferente. “Há regiões com mais vida, outras mais sóbrias, algumas com vegetação e outras dominadas por rochas. Essa diversidade desmonta o estereótipo de que os pólos são apenas um imenso branco”, explica o especialista.
Entre as descobertas, também tem várias curiosidades do cotidiano. “Durante as viagens, sinto falta de escovar os dentes com água morna. São confortos que a gente nem percebe no dia a dia”, brinca. A alimentação também muda: no navio, onde há uma cozinha equipada, as refeições são mais próximas da rotina comum. Já durante as coletas em campo, é preciso optar por alimentos práticos e energéticos, e um clássico que não pode faltar é o café com chocolate. Também é preciso ter energia. “ Ao longo da expedição, passamos por 24 fusos diferentes, exigindo adaptação constante nos horários de sono e alimentação”
A saudade da família é um tema constante entre os cientistas, principalmente porque a circum-navegação aconteceu durante as festas de fim de ano. Mas, desta vez, o impacto foi menor, já que, pela primeira vez, tiveram acesso contínuo à internet, permitindo um contato mais frequente com os familiares.
E apesar de muito preparo, vez ou outra acontece algum perrengue. Márcio relembra um dos momentos mais críticos da expedição, quando um grupo de pesquisadores parceiros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ficou preso no alto de uma geleira. Uma brusca mudança no tempo trouxe um nevoeiro denso e ventos fortes, impossibilitando o resgate pelo helicóptero do navio. Os oito pesquisadores tiveram que passar três dias confinados em uma barraca, enfrentando condições extremas, justamente no período natalino.
Jack e Rose sobreviveriam?
O especialista ainda compartilha uma curiosidade sobre o naufrágio do Titanic: na vida real, Jack e Rose não teriam sobrevivido por tanto tempo na água congelante. Segundo ele, as temperaturas extremas do oceano naquela região permitiriam que um ser humano resistisse por apenas três a cinco minutos antes da hipotermia se instalar.
*estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli