Serra do Pires: proposta de unidade de conservação gera debates entre população e ambientalistas

Projeto de lei foi suspenso após moradores manifestarem preocupação com restrições de uso da terra; ambientalistas defendem proteção diante de ameaça de mineradoras


Por Nayara Zanetti

03/10/2025 às 10h00- Atualizada 06/10/2025 às 08h27

Serra dos Pires
Criação de unidade de conservação enfrenta impasses após manifestação contrária por parte da comunidade de Pires. (Foto: Ian Irsigler)

Um dos poucos campos rupestres remanescentes de Juiz de Fora, a Serra do Pires tem sido alvo de discussões nas últimas semanas. Localizada a 30 quilômetros do Centro da cidade, a área, que engloba um paredão com areia branca e plantas rasteiras, guarda uma rica biodiversidade com espécies variadas, inclusive sendo duas consideradas novas. No entanto, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) constatou, em 2023, após denúncia da ONG Programa de Educação Ambiental (PREA), que parte da serra foi explorada por atividades mineradoras. Tendo isso em vista, ambientalistas se mobilizaram para propor a criação de uma unidade de conservação (UC). Em setembro deste ano, o tema voltou a ganhar destaque quando moradores do entorno solicitaram uma reunião na Câmara Municipal de Juiz de Fora (CMJF) e expuseram o medo de a medida causar restrição no uso da terra. Em seguida, o projeto de lei 174/2024, de autoria da ex-vereadora Tallia Sobral (PSOL) e continuidade da parlamentar Cida Oliveira (PT), foi suspenso. A Tribuna ouviu os envolvidos e um especialista em UC para entender os desdobramentos em relação ao futuro da Serra do Pires. 

A Serra do Pires, também conhecida como Serra da Montanha, fica situada no Distrito de Monte Verde de Minas, no vilarejo do Pires. No local, existe um tipo raro de vegetação que cresce sobre rochas de quartzo, chamada de campo rupestre, e, além da rica fauna, a área possui vários riachos que favorecem o escoamento e a infiltração da água no solo, contribuindo para o abastecimento de nascentes e rios na região e para o suprimento hídrico de moradores ao redor e de suas atividades produtivas. 

A proposta de criação da unidade de conservação surgiu a partir do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA) de Juiz de Fora, homologado em março deste ano. Durante os estudos técnicos para a elaboração do PMMA, no ano de 2023, pesquisadores foram até o local e encontraram duas espécies de plantas até então desconhecidas pela ciência: a sempre-viva chamada de Paepalanthus salimenae – considerada criticamente ameaçada de extinção – e outra nova espécie de canela-de-ema, da família Velloziaceae. Em razão destas descobertas e da relevância ecológica, a área foi indicada no PMMA como de prioridade máxima para criação de UC no município. 

Após o diagnóstico técnico, foi sugerido que a unidade de conservação fosse criada na categoria Monumento Natural (Mona), que visa a proteger sítios naturais raros e singulares, como as formações quartzíticas e a flora endêmica e ameaçada ali identificada. A elaboração da proposta de unidade de conservação envolve pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de outras instituições, a ONG PREA, integrantes da sociedade civil e do Poder Público municipal. 

Moradores da Serra do Pires contrários à unidade de conservação  

Serra dos Pires
Foto: Leonardo Moreira

Recentemente, a discussão da UC na Serra do Pires ganhou mais uma camada. No dia 8 de setembro, os moradores do entorno da serra se manifestaram, em reunião na Câmara Municipal, contrários ao projeto de lei que propõe a criação da área de proteção. Mais de 80 pessoas da comunidade compareceram no plenário e entregaram um abaixo-assinado com cerca de 180 assinaturas, rejeitando a proposta. O receio da população é que ocorra perda de autonomia sobre as propriedades, como restrição ao uso da terra, ameaça ao sustento familiar e risco de desapropriações. 

A comunidade local alega que preservou a área na qual possui a propriedade e, por isso, não haveria necessidade de uma unidade de conservação. De acordo com os moradores, a atividade de mineração no local não tem relação com a agricultura e a criação de gado desenvolvidas pela população. “A comunidade está presente no local há mais de 100 anos e realiza o manejo sustentável da terra, essencial para seu sustento e preservação ambiental, fato comprovado pela presença das espécies de plantas relatadas no projeto”, afirma o posicionamento enviado à Tribuna. Além disso, a população diz temer impactos culturais e sociais, como a “perda da identidade comunitária e a chegada de ‘pessoas estranhas’ à localidade, que não conta com estrutura de segurança pública”. 

Serra do Pires
Foto: Ian Irsigler

Monumento Natural

Em relação às questões apontadas pela população, o professor da disciplina de Manejo de Unidades de Conservação da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Gumercindo Souza, explica que a categoria escolhida para a unidade de conservação (Monumento Natural) se classifica como proteção integral, ou seja, diferente do parque, da reserva biológica e da estação ecológica, não envolve desapropriação. De acordo com Gumercindo, a desapropriação pode acontecer neste tipo de categoria, conforme a legislação, somente se houver dificuldade de o proprietário preservar o local, mas dificilmente isso tende a ocorrer no Monumento Natural.  

“O Monumento Natural sempre procura conciliar a produção e a vida das comunidades locais com a manutenção daquele atributo importante, que é a paisagem, que é um ambiente que protege a biodiversidade. Se fosse um outro tipo de unidade de preservação ou proteção integral, aí, sim, os impactos seriam muito grandes, porque a posse e o domínio são públicos. Assim haveria a desapropriação dessas comunidades, desses moradores presentes na Serra dos Pires”, afirma o pesquisador. 

Há 30 anos, o professor desenvolve pesquisas sobre o tema e tem acompanhado a situação de Pires. Segundo ele, se hoje a comunidade já protege a Serra, ela se tornará o principal parceiro do Poder Público no cuidado com a área. “A criação do Monumento Natural impedirá que agentes externos, como uma mineradora, possam colocar em risco a proteção da Serra. Nesse contexto, a comunidade apenas ganhará com essa criação.  Além disso, o município receberá recursos de ICMS ecológico e poderá acessar diversos editais de apoio financeiro para proteção da Serra e melhoria das condições de vida da comunidade ali inserida.” 

Os moradores ainda pontuam que o projeto de lei foi apresentado ao Legislativo sem consulta prévia à população. No entanto, a vereadora Cida Oliveira (PT) esclareceu à reportagem que o projeto não chegou a ser encaminhado ao plenário, pois os estudos técnicos necessários e os demais requisitos legais ainda não estavam concluídos. Conforme consta no site da Câmara, a data de finalização da tramitação do projeto corresponde a 31 de março deste ano. Desde então, o PL 174/2024 permanece parado, aguardando conclusão e anexação desses documentos aos autos. A vereadora destacou que, como consta nos autos, os estudos não foram finalizados, tampouco a consulta pública foi realizada. Assim, conforme manifestação apresentada em 25 de março, o projeto não iria a voto em plenário sem que toda a documentação técnica e legal prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) fosse anexada ao processo legislativo. 

Projeto de lei é temporariamente suspenso 

Serra dos Pires unidade de conservação
Foto: Kelly Antunes

Após a reunião que contou com a participação de ambientalistas e vereadores, além da comunidade de Pires, o PL 174/2024 foi temporariamente retirado de tramitação. De acordo com a vereadora, a decisão foi tomada para que haja mais tempo de amadurecer o projeto, de promover mais diálogo com a comunidade e de realizar estudos técnicos minuciosos. “A retirada temporária garante a tranquilidade de que a matéria ficará completamente suspensa na Câmara, sem previsão de retomada, uma vez que se trata de uma pauta que exige amplo debate com todos os setores envolvidos”, explica Cida. 

A parlamentar ressalta a necessidade de preservar as espécies raras recentemente descobertas na região. Cida alerta que essas espécies correm risco caso a mineradora retome suas atividades na área e comprometa o campo rupestre. Ao mesmo tempo, a vereadora enfatiza que a comunidade local do distrito de Pires é parte fundamental de qualquer decisão a ser tomada, e que seguirá debatendo a preservação ambiental, “garantindo que os interesses do grande capital minerador não sejam os norteadores dessa discussão.” Já os moradores afirmam que não desejam a retomada do PL, argumentando que ele nasceu “marcado por invasão de propriedades privadas, ausência de consulta popular e pela ameaça de desapropriações”. 

Para o professor Gumercindo, o que deve ser feito quando existem essas divergências é aprofundar no processo participativo, para que ambas as partes (público e privado) e terceiro setor possam buscar um consenso que privilegie o interesse coletivo. “O interesse coletivo não deve ser apenas local. Mas, o interesse que protege o bem coletivo. A comunidade tem o direito a informações adequadas e inteligíveis para que possa se manifestar no processo. Mas, reforçando que a consulta pública é consultiva e não deliberativa. É um processo e não apenas uma audiência ou reunião de esclarecimentos”, conclui. 

Ambientalistas temem retorno de mineradoras 

A Tribuna também ouviu os ambientalistas envolvidos no processo e conversou com o advogado do PREA, Leonardo Moreira, da ONG que fez a denúncia da atuação da mineradora e esteve à frente da proposta da unidade de conservação. De acordo com eles, a medida tem como objetivo preservar a biodiversidade local e conter as ameaças da mineração. Os ambientalistas refutam as alegações da comunidade de que houve invasão ou ameaças e que o projeto foi proposto sem diálogo prévio. “A proposição de unidade de conservação sugerida em momento algum visou atrapalhar ou limitar os modos operantes de vida locais e sim proteger a Serra do avanço da mineração.” 

Desde 2017, a empresa TR4 Mineral Log Ltda realizava a extração de areia e quartzito industrial para fabricação de vidros sob autorização do IEF. Porém, diversas irregularidades e um cenário diferente do que havia sido apresentado no processo de licenciamento foram verificados pelo instituto em 2023. No total, foram aplicadas sete multas, que somaram cerca de R$170 mil. Procurada pela Tribuna para outra matéria sobre a Serra do Pires, em março deste ano, a TR4 Mineral Log Ltda informou, em nota, que suas atividades experimentais de lavra de areia cessaram em 2020 e que a autuação de 2023 ocorreu quando a empresa já estava paralisada, alegando ainda que os impactos ambientais são inerentes à mineração. A reportagem entrou em contato novamente com a TR4 Mineral Log Ltda, solicitando um posicionamento a respeito do cenário atual, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. 

Serra do Pires unidade de conservação
Foto: Kelly Antunes

Para os ambientalistas, o impacto da área explorada foi definido inicialmente em 216 hectares. Segundo eles, também foi possível perceber consequências ambientais e sociais com retorno econômico limitado às comunidades. “Os moradores defendem a conservação da Serra até o presente momento, no entanto não conseguiram resguardar a existência da mineração no território. A previsão era de que em apenas 20 anos de operação parte da Serra deixasse de existir.”  

Leonardo destaca que, embora as atividades da mineradora estejam paralisadas, a estrutura permanece e a ameaça de reativação ou de novos projetos de mineração é constante. Para ele, a criação da UC é a única garantia de proteção a longo prazo. O advogado diz ainda que houve um diálogo inicial com a comunidade, tendo a primeira oficina pública de escuta em 30 de agosto, no galpão da Igreja Nossa Senhora do Pires. Segundo o representante do PREA, a unidade não interferiria nas atividades rurais de agricultura e criação de gado. “Não pega na área de pasto, a área que é utilizada para gado, para as atividades rurais de uma forma geral. Pega mais as encostas e a crista da Serra”, esclarece. A ideia inicial, segundo ele, seria criar a unidade de conservação sem necessidade de desapropriações. 

Diante do cenário, os ambientalistas planejam “recapitular esse contato” e promover um trabalho de base para conscientizar a população sobre os benefícios que a UC pode trazer, não só para a conservação, mas também para o desenvolvimento de políticas associadas de produção sustentável, educação ambiental, pesquisa e assistência. Uma alternativa considerada, caso o diálogo não avance, é a criação de uma UC “bem restrita, bem pequena”, focada apenas na área da mineração e das espécies prioritárias, que não incluiria as propriedades rurais. Segundo Leonardo, a unidade de conservação ofereceria um viés de gestão integrado e uma proteção legal mais robusta, que se sobrepõe às proteções já existentes no Código Florestal e na Lei da Mata Atlântica, garantindo um futuro mais seguro para o campo rupestre. 

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