Ana Torquato: ‘Quero explorar tudo o que foi vetado à minha ancestralidade’  

Por Marisa Loures

Ana Torquato
A juiz-forana Ana Torquato celebra dez anos de publicação de seu primeiro livro, com o lançamento de “O existir e a existência”, obra que marca uma trajetória poética em constante movimento. Entre filosofia, silêncio e ancestralidade, Ana busca transformar vivências em versos que convidam o leitor a pausar, sentir e refletir sobre o próprio existir (Foto: divulgação)

A poeta Ana Torquato chega, em 2025, a uma década de poesia publicada, caminhada que se iniciou com o livro “O ter e o ser”. Desde então, ela segue “entrelaçando, vida, escrita e criação.” Foi a obra de estreia que a levou de volta à sala de aula. Já era formada em Administração e decidiu cursar Filosofia. Três anos após a conclusão da segunda graduação, escreveu “O existir e a existência” (Motres, 96 páginas), que está nascendo agora para celebrar seus dez anos de percurso literário. O novo projeto revela uma autora “em movimento, em constante transformação”, segundo a própria escritora.

“Assim como uma criança, que, aos dez anos, conclui os primeiros passos da alfabetização e se abre para novos desafios nos anos finais do Ensino Fundamental, minha escrita também atravessa esse limiar: amadureceu, ganhou fôlego e se aprofundou nas questões que me movem. Deleuze apresenta, na introdução de ‘O que é filosofia’, que certas perguntas só se tornam possíveis tardiamente, quando a maturidade nos visita, mostrando que é a experiência e o tempo que nos permitem questionar com mais profundidade. É nesse lugar de aprendiz permanente que me reconheço”, afirma ela, já de olhos atentos para o amanhã. “Quero explorar tudo o que puder através da poesia. Quero explorar ainda mais a poeta e a poesia. Quero explorar tudo o que foi vetado à minha ancestralidade.”

Em Juiz de Fora, o lançamento do novo livro ocorrerá no dia 06 de setembro, às 17h, no Pedra Bonita Café. Já no dia 13 de setembro, está programado um sarau literário no Museu Espaço dos Anjos, em Leopoldina, a partir das 10h, com organização da Academia Leopoldinense de Letras e Artes.  Juiz-forana, Ana Torquato é poeta atuante na cena literária aqui da cidade. É membro da Academia de Letras Manchester Mineira, da Academia Juiz-forana de Letras e do grupo Café com Poesia (e Arte). Entre “O ter e o ser” e “O existir e a existência”, publicou outros dois títulos: “Se unem, mas nem sempre se sentem” e “Essência: menina – mulher – preta”. Além disso, está à frente do projeto “Vozes negras na literatura de Juiz de Fora”. Com essa iniciativa, a meta é ampliar a visibilidade da produção preta na literatura.

Marisa Loures – O livro se inicia com o poema “O existir”, que reflete sobre os aprendizados que a vida impõe, pelo amor, pelo cuidado ou pela dor, e sobre a importância de ouvir a própria voz interior como caminho de cura. Por que escolheu esse poema para abrir a obra e de que maneira ele representa a essência do que o leitor encontrará em “O existir e a existência”?

Ana Torquato – O poema “O existir” abre o livro como uma forma de apresentar ao leitor o seu próprio existir, aquele que se observa e se percebe para além do reflexo no espelho. É um convite ao despertar do eu, e os primeiros poemas, penso eu, carregam esse movimento de autopercepção. Existir está associado ao contorno de obstáculos, como a água que flui entre as pedras, contornando-as. É aceitar a mão que se estende, deixar ir o que não serve, sentir a dor e, sobretudo, abraçar o amor. É também um convite a compreender que vivemos entre fases, e elas passam independentemente do sentimento que nos provoquem. O poema funciona como um impulso para que o leitor prossiga na leitura, ora profunda e densa, ora branda, gentil e amorosa, mas sempre reflexiva. Assim como o poema, ele oferece reconhecimento, transformação e a possibilidade de perceber-se, refletindo a importância do seu existir para a existência ou da existência para o seu existir. Complexo? Talvez, mas é assim também que nos realocamos. Ao percorrer essas páginas, espero que cada leitor encontre seu próprio caminho entre as pedras e as flores, descubra seus impulsos e perceba o que é essencial para existir.

Você menciona que muitos poemas nasceram do silêncio das caminhadas, das meditações e dos estudos filosóficos. Como esses diferentes momentos de introspecção se transformam em versos?

A introspecção nos move enquanto nos movemos, ou talvez sejamos movidos por ela. O silêncio diz muito sobre os sons ao redor. Outro dia percebi as buzinas de um carro na madrugada. O que acontecia ali? O tique-taque de um relógio pode ser incômodo quando falta o sono da noite, mas pode ser acolhedor quando se anseia pelo passeio ao longo do dia. Ambos falam de espera, e esperar é verbo que, em mim, vira verso. Nas caminhadas, podemos observar o ambiente, as pessoas, as vidas ao redor e até o próprio eu que caminha. Caminhar é seguir, mesmo que a esmo. As meditações nos convidam a sentir, perceber, reconectar, esclarecer e até encontrar soluções. Conectados ao universo, é possível ouvir respostas que vêm do silêncio. Aprendo quando crio versos: leio o eu, o outro e o mundo, e, ao escrevê-los, devolvo esse aprendizado. Os estudos filosóficos me oferecem a oportunidade de fortalecer a musculatura, sublimando a escrita. Cada um tem sua maneira de externar o mundo interno. No meu caso, é através desses movimentos que se convertem em poesia. É como se o silêncio, a contemplação e o estudo, fossem fios, e o poema, o tecido que nasce deles.

– “O existir e a existência” é apresentado como um convite à pausa, ao tempo do sentir. Em um mundo marcado pela pressa, de que maneira a poesia pode ajudar o leitor a desacelerar?

Ao parar para se dedicar à leitura, o leitor automaticamente se permite desacelerar. Estudos recentes revelam que o hábito da leitura tem diminuído, refletindo um tempo em que a pressa parece conduzir a vida. Ler exige cuidado, presença, atenção, tudo aquilo que a urgência constante do dia a dia nos impede de viver plenamente. Nesse ritmo acelerado, o corpo, o existir e, consequentemente, a própria existência são afetados. Passamos pela pandemia, um período que nos forçou a pausar, a conviver e a olhar para a própria vida. Ao longo do tempo, algumas lições desse período podem ter se perdido ou ainda estão em processo de compreensão. “O existir e a existência” nasceu também desse meu próprio exercício de pausa e sentir. A poeta Carmen Cinira lembra, no poema “Quem escreve”, que a palavra falada se perde ao vento, mas a palavra escrita guarda força infinita. Escrever é, portanto, responsabilidade: a palavra se conecta ao leitor. Recordo quando um amigo me disse, ao ler um livro meu, “nossa, você se emocionou muito escrevendo esse livro, né?! Eu senti”. E de fato, alguns textos nasceram enquanto as lágrimas escorriam. Assim, quando alguém ler “O existir e a existência”, espero que também sinta a importância de desacelerar. Parar para ler é um ato nobre de pausa, um investimento em si mesmo. Permita-se ler, e, nesse caso, convido você a conhecer o meu livro.

– E uma sugestão sua é que o livro seja lido “no tempo de cada um, no ritmo de cada um”. O que muda na experiência literária quando o leitor acolhe a obra dessa forma?

A conexão com a obra se torna mais intensa, como se fosse absorvida em doses homeopáticas. Alguns livros podem ser lidos de uma só vez; outros exigem mais tempo e atenção. Quando dedicamos tempo à leitura, a experiência se completa. Se, ao contrário, apenas passamos os olhos pelas páginas, acabamos esbarrando na pressa do dia a dia, como mencionado na pergunta anterior. Algumas pessoas conseguem “devorar” um livro e captar sua essência imediatamente. Outras necessitam de tempo e de um ritual próprio: leem uma, duas ou três páginas, anotam ideias e retomam a leitura no dia seguinte. Podem até reler trechos em voz alta. A absorção, a compreensão e a profundidade aumentam quando o leitor segue seu próprio ritmo, lendo por interesse genuíno, e não por obrigação de terminar a obra. Cada página se revela no tempo certo, e o próprio ritmo da leitura torna-se parte integrante da experiência literária.

Sua trajetória apresenta uma riqueza de vivências que vão da Administração à Filosofia, do desenho ao crochê, até se fixar nas linhas do papel. Como essas diferentes formas de expressão e aprendizado se conectam à sua escrita poética e influenciam o modo como você enxerga o existir e a existência?

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Capa de “O existir e a existência” – Foto: divulgação

Ah, Marisa, essa pergunta me levou para a infância e a memória da Paulinha sentada colorindo sua arte. Bom, eu costumo dizer que a Administração me ensinou a perceber o ter, e a Filosofia me refinou para o ser. Entre planilhas e perguntas, entre números e ideias, aprendi que somos feitos do equilíbrio entre ambos, e que um não anula o outro. O desenho na infância me trouxe sensibilidade e cuidado. Cada traço, cada cor, exigia atenção e esmero; o crochê me ensinou paciência, a contagem exata de cada ponto, a importância de cada laçada. Essas artes, que nasceram no silêncio e pediam concentração, prepararam minha mente, meus olhos e minhas mãos para o texto poético, sem que eu percebesse. Aprendi a olhar o mundo com constância e foco. Nas linhas do algodão e do papel, no ritmo dos pontos, nos altos e baixos, nas espiguinhas e pipocas, encontrei a mesma dedicação que mais tarde usei para compor versos. Cada aprendizado foi um passo para existir de forma mais consciente em meio à existência. E assim, entre o ter, o ser e a criação, a poesia se tornou o espaço onde tudo se encontra: meu olhar, minha história e minha ancestralidade podem se expressar com cuidado, sensibilidade e verdade. Aperfeiçoando o conhecimento, desenhando palavras e construindo versos, transformo experiências em poesia, e cada vivência se torna parte do meu olhar sobre o existir e a existência

– Você agradece, de maneira especial, a cada pessoa que lê o que você escreve. Quem você imagina como seu leitor quando escreve?

É difícil responder a essa pergunta, porque isso limitaria quem é o meu leitor. Mas eu penso nele. Meu leitor é curioso, aquele que se deixa levar pela capa. É também quem já conhece o que escrevo e quer saber o que vem por aí. Às vezes querem descobrir o que essa “menina” está dizendo agora. É o empreendedor, a dona de casa, o aluno, o professor. Meu leitor é inquieto, definido e indefinido. É quem já está e quem ainda vai chegar. É o sábio que aprendeu sobre a vida na roça e prevê o tempo observando a correria das formigas na terra, e também aquele que frequenta salas de aula com uma vasta bagagem cultural. Meu leitor é ávido pelo livro.  Meu leitor é quem faz de mim autora. E como cada um interpreta conforme suas próprias experiências, meu leitor é aquele que transforma o que escrevo em suas próprias percepções. Às vezes, eu me pergunto: será que perceberão nesta poesia o que realmente quis dizer? Leitores e autores nem sempre partem do mesmo ponto. Meu leitor é você! Em você eu penso quando escrevo.

– No prefácio de “O existir e a existência”, o professor Pedro Calixto destaca como a sua poesia se aproxima da pintura, criando imagens vívidas, mas também celebra a força da mulher negra e a luta por justiça social. Como você percebe essa fusão entre estética e resistência na sua obra: a arte como pintura da alma e, ao mesmo tempo, como voz de transformação?

Uma mulher negra, ao criar algo e lançar isso no mundo, já está resistindo a uma estrutura que não foi feita para o corpo negro ser. Quando eu crio, torno-me a voz que inspira tantos como eu. Tantas vezes já ouvi: “eu posso”, “eu quero”, “eu sonho”. Quase em silêncio, a voz baixinha de uma criança sussurrou em meus ouvidos: “quero ser igual a você, tão bonita”. Minha poesia me transforma e, ao ser compartilhada, transformo o outro, é um eco… Meu corpo se apresenta antes de mim e minha voz ali permanece. Pedro foi gentil ao fazer essa relação: com suas pinceladas, fez das minhas palavras tinta e da minha página, tela. A fusão entre estética e resistência está em quem pinta, continuar criando. Ora para enaltecer e fazer por merecer o dom que enobrece a própria alma, ora para inspirar, provocar e mudar o que foi moldado. Em pequenas telas, muitas as cores, eis um arco-íris que se vê: a força da palavra, a luta da vida, a beleza de (r)existir.

– Quais caminhos você deseja explorar depois deste marco de dez anos de trajetória?

Quero continuar caminhando este caminho. Eu já trilhei muito, alcancei coisas que nem pensava serem possíveis ou que nem almejei. Por isso, acredito que, às vezes, a gente deseja e não tem, mas, em outros momentos, recebe aquilo que não desejou: apenas deu um passo e o resto foi feito. Há dez anos, eu reuni pessoas próximas para um lançamento, fui lá e fiz sem entender quase nada desse mundo, apenas atendi a um chamado. Querer é uma maneira de manifestar quando estamos alinhados com a nossa essência, e acredito nisso profundamente. Quero ir aonde não fui, fazer o que não fiz, conhecer, fazer minha voz vibrar em tantos corações quanto possível. Que eu possa explorar o inexplorado, atender aos novos chamados e abraçar as próximas oportunidades. Estou pronta? Depende. Com medo? Talvez. Mas sempre cheia de coragem, sonhos e determinação. Que venham mais caminhos de conquistas para que eu amplie a estrada. Quero explorar tudo o que puder através da poesia. Quero explorar ainda mais a poeta e a poesia. Quero explorar tudo o que foi vetado à minha ancestralidade. Quero continuar inspirando e emocionando. Que o meu querer seja o querer do Todo. É o dom que abre caminhos.

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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