Flávia Péret: ‘A escrita nos ajuda a salvar e a preservar do esquecimento aquilo que desapareceu ou está desaparecendo’

Por Marisa Loures

Flavia Peret Foto AMANDA RIBEIRO
Inspirada na convivência com a avó diagnosticada com Alzheimer, a jornalista e escritora mineira Flávia Péret lança Coisas presentes demais, obra que entrelaça memória, afeto e ficção – Foto: Amanda Ribeiro

Qual é o papel da escrita literária diante da perda não só de pessoas, mas de tempos, gestos, modos de vida? A pergunta que lancei à jornalista mineira Flávia Péret surgiu quando eu lia as páginas iniciais de “Coisas presentes demais” (Relicário Edições, 188 páginas), livro lançado na última sexta-feira, na Livraria Quixote, em Belo Horizonte. Fiquei tocada pela proposta da narrativa, baseada na experiência vivida pela própria autora: uma neta “entra em estado de memória” e, por meio da escrita, aproxima-se da avó, diagnosticada com Alzheimer. Ela relata, em fragmentos breves e com muita leveza, o processo de apagamento ocasionado pela doença.

A história começa com uma visita à casa de repouso onde a avó está internada. A partir daí, a narradora divide com o leitor detalhes do lugar, informações sobre a doença, lembranças de infância e até suas descobertas sobre a avó. “Toda mulher é um pouco fora da lei”, escreve ela, referindo-se àquela senhora “vaidosa e maledicente”, nascida nos idos de 1930, que, ao retirar o casaco de crepe, num ginásio lotado com trezentos estudantes, revelou estar sem sutiã debaixo de uma blusa preta transparente, causando espanto com sua transgressão.

“O mais importante para mim foi descobrir um lado da minha avó que eu não conhecia, ou melhor, que eu não conseguia perceber antes. De certo modo, ela foi uma mulher que transgrediu o código”, confessa a autora. “Muitas escritoras que eu amo nasceram nesse período. O que podemos aprender com essas mulheres? O que elas nos ensinaram? Sigo interessada em investigar as pontes e laços entre gerações”, afirma. “Coisas presentes demais” chega às prateleiras classificado como ficção, literatura brasileira e memória, inserindo-se em um campo híbrido.

Também professora de criação literária e pesquisadora, Flávia venceu, em 2010, o prêmio Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pela Folha de S.Paulo. Já em 2018, foi agraciada com o prêmio Jean-Jacques Rousseau, da Akademie Schloss Solitude (Alemanha), pelo projeto Uma Mulher (livro e site de escrita expandida).  Entre seus livros, estão os títulos “Imprensa gay no Brasil” e “Mulher-bomba”.

Marisa Loures – O livro “Coisas presentes demais” nasce a partir de uma experiência íntima: acompanhar o processo de apagamento da memória da sua avó. E ele chega aos leitores classificado nas categorias ficção, literatura brasileira, memória. Portanto, insere-se em um campo híbrido. Que lugar essa obra ocupa no seu percurso como escritora?

Flávia Perét – Gosto de escrever na fronteira entre os gêneros: romance, mas também ensaio, ficção, também teoria, fragmento e narrativa. Meu último livro, lançado em 2021, “Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças”, também tem esta estrutura: um livro em fragmentos, ou seja, narrativas breves que, de certo modo, se sustentam por si só e que lançam mão de diferentes gêneros para contar uma história.

– A narradora de “Coisas presentes demais” confessa que não parece estar narrando a perda da memória da avó, mas suas próprias memórias, “frente ao progressivo desaparecimento das dela.” Qual é o papel da escrita literária diante da perda não só de pessoas, mas de tempos, gestos, modos de vida?

Acho que a literatura tem um papel fundamental. A literatura (a narrativa) é o modo como conseguimos, pela linguagem e seus usos e procedimentos específicos, produzir sentido para aquilo que vivemos. A literatura nos permite entender a complexidade humana, conhecê-la, aceitá-la, mas não de um modo didático ou maniqueísta e sim complexo, que lida com camadas conscientes e inconscientes, com ambivalências e contradições, com aquilo que está na sombra.  Gosto muito de uma fala da escritora romena Herta Miller, na qual ela fala que só a escrita é capaz de produzir um pensamento novo e inédito sobre os acontecimentos, porque as palavras são capazes de descobrir coisas que apenas o viver não consegue descobrir. E acho sim, tenho esta fé muito forte na escrita, que ela nos ajuda a salvar e a preservar do esquecimento aquilo que desapareceu ou está desaparecendo.

– Você tinha medo de que as vivências ao lado da avó se perdessem e, por isso, resolveu transformá-las em material literário?

Não foi tão consciente assim e a escrita não nasceu deste lugar, embora agora eu o reconheça. No início, eu queria apenas entender, compreender, e achava (porque acredito nisso) que a escrita me ajudaria, como ajudou, mas, à medida que fui escrevendo, fui querendo transformar essa experiência pessoal em algo maior, que pudesse me ultrapassar. Não apenas entender, mas construir uma história sobre estas duas mulheres, uma neta e uma avó, e sobre este gesto de a neta olhar a avó. Eu acho que esse jogo de olhares é que fez com que eu pudesse me afastar dela e também ficcionalizar.

– E ao fazer essa rememoração, a narradora se depara com o inesperado. Esse inesperado foi mais da ordem da emoção, da linguagem ou da própria figura da avó?

Nossa, essa pergunta é interessante. Acho que das três coisas: da emoção, da linguagem e da própria avó. Tudo na escrita deste livro me surpreendeu, a forma como montei a história – a partir dos vários fragmentos -, o que descobri sobre ela ao escrever e como fui tomada pela emoção, diante deste processo e desta descoberta.

capa Coisas presentes demais
Capa de “Coisas presentes demais” – Foto: divulgação

– Foi difícil “entrar em estado de memória” e dividir com o leitor experiências tão íntimas?

Sim e não. Entrar “em estado de memória” foi fácil, mas narrar experiências íntimas é sempre delicado, sempre tem um cuidado, o que tentei fazer foi me afastar dela, vê-la como “a avó”, como uma personagem imersa – como todos nós – na sua própria ficção. Esse recurso do distanciamento foi o que me permitiu imaginá-la para além dos meus preconceitos.

– O Alzheimer, muitas vezes, é tratado apenas pela via da dor ou da perda. No seu livro, porém, há também ternura, poesia, tentativas de escuta. Como foi encontrar esse tom na escrita?

O diagnóstico de Alzheimer é muito doloroso para os familiares, mas, para além desta dor e deste sofrimento, continuam existindo muitos outros lados. Esses lados coexistem. Como disse no livro, não se trata de esconder ou omitir a dor, mas de pensar que a dor é atravessada por tantos outros sentimentos, inclusive, em alguns momentos, o humor. Eu quis trazer um pouco de leveza e humor para algo que é tão difícil porque, de fato, acredito no humor como ferramenta de sobrevivência na vida.

– Em “Pecado”, a narradora afirma: “sinto que é mais fácil amar a avó aqui.” Que tipo de amor é esse que emerge do encontro com o esquecimento?

Amor que nasce do encontro com o esquecimento, mas não apenas, nasce principalmente com o sentimento de perda. Diante da proximidade da morte, minha avó agora tem 94 anos, como não pensar em nossa história em comum, como não rever esta história, como não olhar para o passado? Fui completamente tomada por tudo isso. E que sorte que encarei a escrita como este exercício, porque agora a sensação que tenho é que não corro mais o risco de perdê-la. Também gostaria de dizer que o mais importante para mim foi descobrir um lado da minha avó que eu não conhecia, ou melhor, que eu não conseguia perceber antes. De certo modo, minha avó foi uma mulher que transgrediu o código moral do que significava ser mulher, nos anos 50 e 60 numa cidade do interior. Ela bancava o próprio desejo no sentido de decidir não ter mais filhos, voltar a trabalhar e principalmente, vestir-se e comportar-se do jeito que desejava. Eu conto isso no livro, ela enfrentava meu avô e enfrentava também os comentários maldosos das pessoas. Ela nunca aceitou que alguém determinasse como deveria se portar, o que deveria ou não vestir, o que cabia ou não cabia a uma mulher mais velha, por exemplo. Mesmo depois dos 60 anos, continuava usando minissaia, biquíni, transparências, brilhos. Jamais escondeu o corpo. E quando entendi isso achei completamente admirável.

– O que essa escuta com a escrita te revelou sobre o passado e sobre você mesma?

Todas essas dimensões que trouxe anteriormente e que revelaram a mim mesma a minha própria incapacidade de, em alguns pontos da minha vida, ser transgressora como ela.

 – O que você espera que o leitor leve consigo ao atravessar essas páginas que falam de esquecimento, mas, sobretudo, de amor?

Isso é sempre tão misterioso, como cada pessoa extrai da leitura de um livro o que lhe corresponde, o que consegue, neste exato momento da vida, compreender. Espero que o livro tenha algo a dizer para cada leitor, que eles possam encontrar também uma história própria, porque esse é um dos modos de a literatura fazer sentido.

 

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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