A travessia poética de Laura Tomé

No Sala de Leitura desta semana, Marisa Loures conversa com Laura Tomé

Por Marisa Loures

Laura Tome Credito Debora Fioravante
Estudante da Universidade Federal de Juiz de Fora e poeta, Laura Tomé lança “Rito de passagem” na Bienal do Livro do Rio de Janeiro – Foto: Débora Fioravante

“O atravessamento é a nossa natureza”, assevera a poeta. Isso porque “caminhamos de uma ponta à outra de uma existência”, explica ela quando eu quis saber quais mudanças ou deslocamentos – pessoais, criativos ou existenciais – seu livro de estreia representa. “Ao longo da história, temos deixado rastros de nossa passagem, marcas de nosso percurso, dos quais as artes visuais dos mais variados tipos, as obras científicas, os livros de ficção e poesia ou mesmo notas e declarações de amor são apenas alguns exemplos. Eu os chamo de ritos, nossos ritos de passagem sobre a Terra. Eles registram momentos ou pensamentos transitórios, e, no entanto, permanecem após nossa partida”, afirma ela, que, carinhosamente, respondeu às perguntas para esta coluna “com o cuidado de quem escreve um livro.”

Laura Tomé nasceu em São José dos Campos no dia 23 de março de 2004. Mudou-se para Juiz de Fora aos 18 anos. Veio fazer Comunicação Social na UFJF. Escolha que se justifica pela relação desenvolvida com as palavras desde a meninice. Vem de lá seu encantamento pela poesia. Agora, aos 21 anos, Laura lança o primeiro livro de poemas.

“Rito de passagem” (Urutau, 120 páginas) foi apresentado ao público no dia 25 de abril, na Autoria Casa de Cultura, e, agora, integra a programação da Bienal do Livro do Rio de Janeiro no dia 15 de junho, às 10h30. “Nomear o livro como ‘Rito de passagem’ é chamar a beleza para o paradoxal, para o contraditório. Para a existência como a conhecemos e, principalmente, como não a conhecemos ainda. Para a procura, para a descoberta e para a perda que as impulsiona.”

Marisa Loures – Como foi para você viver esse processo de se lançar publicamente por meio da escrita? Que medos, desejos ou descobertas esse caminho revelou?

Laura Tomé – Para mim, escrever é um movimento natural do viver, um modo de digerir aquilo que foi vivido. E nós, seres biológicos, sabemos que a digestão é matéria orgânica sendo absorvida para produzir… energia. Cada indivíduo produzirá sua energia de acordo com sua afinidade, com sua vocação. Eu sei que a minha afinidade é com a palavra escrita. Este autoconhecimento me proporcionou a consciência de que o produto da minha organicidade é algo inorgânico, eternamente conservável e reciclável: a escrita. Esta, se fosse por mim levada a sério, poderia servir de energia também a outras pessoas. Publicar seria fazer esta energia circular nesse ecossistema de infinita troca que é a nossa existência. Saber que estou no início dessa jornada me impulsiona um frio na barriga associado a uma empolgação maravilhosa.

– E de onde vem sua relação com a poesia? Você se lembra do momento em que percebeu que escrever seria um caminho seu?

Nossas afinidades se deixam vislumbrar, ainda que sutilmente, já na nossa infância. Lembro-me de que prazer eu sentia ao mexer nos livrinhos infantis das prateleiras dos comércios (registrado em vídeo pelo meu pai, bobo e contente como qualquer pai de primeira viagem diante da filhinha), e ao escrever pequenos cadernos de histórias e poesias. Ainda os tenho guardados, e, salvo as modificações naturais da maturidade, tenho os mesmos comportamentos com meus cadernos ainda hoje. Já no ensino médio, tive a sorte de ter uma excelente professora de literatura. O nome dela é Ana Cecília. Aí foi inevitável: era a semente caindo em solo fértil. Comecei aí a explorar efetivamente a literatura, andava com os volumes de poesia debaixo do braço pela escola. Nada mudou. Ao cabo de alguns anos, quando percebi a quantidade de material escrito que eu guardava, comecei a pensar que talvez fosse a hora de organizar uma obra. Foi então que minha conduta em relação à poesia tornou-se mais compromissada. Olhava para os poemas não apenas do lado de dentro, mas pensava também no leitor, organizava suas ordens como quem monta um filme, pensando no efeito da leitura de um anterior sobre o próximo, e vice-versa, até constituir uma obra completa. Assim foi com Rito de Passagem, e assim está sendo com o novo livro que estou a construir.

– O seu livro é apresentado por Fernando Fiorese como um “ensaio teatral” em que o eu lírico entra em cena e se experimenta em diferentes máscaras. Quais foram as máscaras mais desafiadoras que a poeta precisou vestir — ou despir — nesse rito de passagem poético?

Mais do que vestir uma nova máscara, o eu lírico despe uma certeza para desvelar uma nova camada de humanidade a cada poema. Não é construção, mas descobrimento, ainda que o descobrimento seja também uma construção. E mesmo esse número de faces desveladas não é objetivo a ponto de serem elencados seus níveis de desafio: como explicarei mais à frente, a natureza humana se assemelha mais a uma esfera do que a um polígono, as faces todas se entremeando, não por fronteiras dissolutas, mas pelo ângulo no qual a luz do momento incide. Sobre o “ensaio teatral”: se toda a vida é real e caminha para uma direção, todo “agora” é o ensaio do minuto seguinte, sem deixar de ser o fruto do ensaio do minuto anterior. Todo número um é ensaio para o número dois, que não deixa de ser ensaio para o número três. Este movimento infinito representa bem o desvelar de faces que acabei de citar.

Rito de passagem
Capa do livro “Rito de passagem” – Foto: divulgação

– Fiorese menciona a flânerie como movimento de busca, de travessia, e cita palavras como “labirinto”, “encruzilhada” e “desejo”. Como esses caminhos e desvios aparecem na sua poesia, tanto como tema quanto como forma?

Retomarei um pouco o que disse na primeira resposta. A travessia é tema porque reflete o fado humano. A todo momento, algo que não era passa a ser e algo que era já não é mais – mas o que efetivamente muda? – aí estão as imagens do labirinto e da encruzilhada. Num labirinto, perdemo-nos, mas por mais que nos percamos por entre suas esquinas, nunca realmente saímos de sua circunscrição. O paradoxo! E há algo mais paradoxal que o desejo, que no instante em que se toca, deixa de sê-lo? E o que realmente desejamos dentro de um labirinto? Na página 50, “O menino flâneur, / pelas ruas da vida, / descobriu a encruzilhada / da sede desconhecida: / desejava intransitivo, / e transitivo saciava. / Mas o menino flâneur, / em seu flâneur menino, / queria mesmo / só a vida.” Em nossa rotina, saciamos com coisas palpáveis desejos que não têm nome! Na página 47, “Escamoteamos os nossos medos / para que sobre a fina película desses segredos / não percebamos quando a fome não é fome, / quando o sono não é sono, / quando o prazer dói uma dor coligida: / a dor de quem busca mais do mesmo / por não ter coragem de buscar a vida”. Enquanto na encruzilhada, sempre uma escolha apenas: direita, esquerda, trás ou frente. Será? Na página 65, “Dou um passo atrás / de frente / à fronte quântica. / Enfrento o fim da máscara / da dupla opção.” Rito de Passagem questiona o recheio das palavras, que constroem nossa relação com o todo. Nada é certo, tudo é dança, afrouxam-se as membranas, o plasma escolhe a forma do momento. No que toca a forma, só a poesia escreve a dança. A cura sonora e rítmica embala o acesso ao avesso da razão como a conhecemos.

– Há um poema em que você escreve sobre “quatro versos indigentes” que são lançados ao chão, mas que talvez sejam resgatados no futuro. Essa cena parece revelar um aspecto muito íntimo do seu processo criativo: esse gesto de escrever, rejeitar e depois voltar à palavra. Como você lida com esse tempo da escrita, com os textos que insistem em retornar?

Anteriormente mencionei a escrita como parte do processo de digestão do acontecido. Naturalmente, há digestões mais rápidas e há digestões mais densas. Às vezes, o poema se inicia com “quatro versos indigestos” que “vomito no branco da folha”. Estes “quatro versos indigentes” são vomitados “no canto da escolha” até que eu esteja pronta para escolhê-los para dançar. Vale dizer que nenhum processo criativo é homogêneo, aspecto do qual a resposta de Armando Freitas Filho ao poema de João Cabral de Melo Neto é exemplo: João tem um poema chamado “Catar Feijão”, no qual equipara a escrita poética ao cuidado daquele que seleciona os feijões bons para cozinhar, ainda que uma pedra passada despercebida possa vir a ser o “grão mais vivo” entre os feijões macios. Armando responde a comparação com um poema chamado “Caçar em vão”, elucidando a existência de poemas escritos “a cavalo”, passando por cima de toda a calma, “no susto, disparado sobre pedras”.  Para mim, estes comportamentos antagônicos se alternam, e mais: se complementam.

– Na sua minibiografia, lemos que “os estudos de filosofia e linguagem entalhados no olhar boêmio e entusiastas dão as centelhas à sua poesia, um modo de habitar o corpo no mundo.” Como essas áreas do pensamento te atravessam na escrita?

Apesar de muito jovem e ainda cursando a graduação, pude identificar em meu perfil uma afinidade com as áreas de estudo e produção de pensamento. Como eu disse anteriormente, cada ser apresenta um tipo de afinidade para a digestão da vida, e, como minha afinidade principal tem se mostrado ser com a palavra escrita, foi natural enveredar para a área acadêmica dos estudos da filosofia e da linguagem: do aforismo do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein de que “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” nascem inquietações sobre as construções do ser e do seu mundo por meio da linguagem, que estão desaguando no desenvolvimento do meu TCC, e cuja temática pretendo continuar desenvolvendo em um mestrado. Entretanto, apesar de gostar deste caminho científico, ele não é minha única face.  Posso operar as inquietações sobre o mundo sob ótica pesquisadora, valendo-me da lógica e daquela que foi estabelecida como razão, mas também posso operá-las de acordo com sentires mais sublimes, do espírito, de uma mente que ultrapassa a matemática, sem deixar de se valer dela. Esta seria uma ótica poética. Mas nós sabemos que nossa divisão em faces é ilusória, representativa, e que estamos mais próximos da esfera do que do polígono. Desse modo, meu olhar pesquisador não pode deixar de ser poético, e meu olhar poético não cessa de pesquisar. Esta matéria viscosa, interdisciplinar, oscilantemente segura como a chama de uma vela, está na base do meu ser, e, portanto, na base da minha escrita.

– “Rito de passagem” é seu livro de estreia e será lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, um espaço de grande visibilidade e celebração da literatura. O que essa estreia, em um evento de tamanha projeção, representa para você nesse processo de se apresentar como uma nova voz na poesia?

Uma intensa sensação de caminho sendo traçado e de dever sendo cumprido não poderia deixar de me envolver, é claro, acompanhada de um grande senso de responsabilidade. A Bienal será um espaço profícuo para conhecer outros entusiastas da palavra e movimentar a energia que nos move, aprendendo com os poetas mais experientes e conhecendo mais a fundo as engrenagens do mercado editorial.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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