
Daniel Munduruku afirmou, certa vez, que se alegra por, entre outras coisas, “ter ajudado as universidades a olharem para os indígenas também como autores e produtores de literatura.” Ao ler essa declaração, estava me preparando para a produção desta coluna e, imediatamente, lembrei-me de que o nome dele está entre os autores sugeridos para estudo de alunos e alunas que farão o Pism III, vestibular seriado da UFJF. E, por falar em literatura indígena, ela foi a protagonista do encontro do Clube de Leitura do CCBB Rio de Janeiro, realizado na última quarta-feira, com a participação de Munduruku e da poeta, também ativista indígena, Márcia Kambeba. A presença em programas acadêmicos e culturais reforça a importância da escrita indígena para o cenário brasileiro.
“A literatura é o mais poderoso instrumento para fazer a política cumprir seu papel revolucionário. Na medida em que o conhecimento vai ganhado corpo, ele também vai se transformando em operador das mudanças, influenciador de políticas públicas, organizador de novas pedagogias e inspirador de promissoras lideranças”, dispara o escritor, filósofo e ativista indígena brasileiro, ressaltando que muito do que vemos acontecendo no nosso país em termos de mudança de orientação nasceu da literatura. “Boa parte das lideranças que hoje se destacam é fruto da literatura. Grande proporção dos artistas, músicos, poetas, políticos, cineastas, atores e atrizes e estudantes universitários é resultado dos avanços que a literatura tem produzido nas academias e nas universidades. Sem desmerecer as outras formas de luta, afirmo com certeza que a literatura é responsável pelas maiores transformações no modo de pensar a identidade brasileira.”
Nesta entrevista, pedi para Munduruku falar um pouco sobre o livro “Das coisas que aprendi: ensaios poéticos para o bem-viver” (Edua, 112 páginas). Apesar de lançada há uma década, a obra mostra sua força ainda hoje, tendo sido escolhida para o bate-papo com o público do Clube de Leitura do CCBB. Inspirada pelo Pism, eu também aproveitei a ocasião para perguntar sobre a atuação da escrita dele como um gesto anticolonial, sobretudo ao dialogar com a língua portuguesa, herança do colonizador. Além disso, não podia deixar de fora da conversa o livro “Meu avô Apolinário” (Edelbra, 48 páginas), que nos conduz às lembranças de infância do autor.
Marisa Loures – Para o Encontro do Clube de Leitura do CCBB, o público escolheu conversar sobre “Das coisas que aprendi”, lançado há dez anos. O que você acha que faz com que esse livro continue tão especial a ponto de ser o escolhido pelo público?
Daniel Munduruku – Quero crer que o conteúdo que o livro apresenta atravessa o tempo de forma não linear. É como se o que ali está dito se mantenha atual independentemente do tempo que se vive. Há ali um apelo para que os leitores rompam com o modelo colonizador que lhes foi apresentado desde sempre.
– Você define “Das coisas que aprendi” como “poético, sem ser piegas; filosófico, sem ser acadêmico; de denúncia, sem ser violento”. Esse equilíbrio foi encontrado como um resultado natural da sua forma de ver o mundo?
– Acredito que minha visão de mundo é resultado da junção das diferentes epistemologias as quais me permiti aprender ao longo de minha formação. Nunca fiquei preso a um único paradigma e isso me permitiu encontrar um caminho de compreensão dos diferentes mundos. Minha intenção nunca foi construir pontes, mas juntar mundos. Pontes nós as destruímos com muita facilidade dependendo de quem está no poder. Minha literatura quer juntar as diferentes epistemologias para daí, quem sabe, fazer brotar uma proposta nova, ousada e inovadora. Isso tudo pode ser feito com ternura, com afeto e com bondade. Disso não abro mão.
– Você contou em uma entrevista que escreveu “Das coisas que aprendi” como resposta a algumas perguntas que as pessoas lhe faziam, como, por exemplo, de onde vem sua tranquilidade e o que o faz falar lentamente, sem pressa. Disse também que essa obra é, em certa medida, um livro de autoajuda repleto de indagações. Quais foram as principais inquietações que o motivaram a escrever essa obra e como a sabedoria ancestral indígena dialoga com essas questões tão contemporâneas?
– Acho que este livro é uma síntese quase perfeita das coisas que aprendi. Ele resume bem as variantes dos mundos indígenas e ocidental e revela bem o que há de melhor e pior neles. Sem querer desnudar as incongruências de um ou de outro, o livro se propõe a dialogar com esses conhecimentos e tentar encontrar um caminho do meio para que a gente equilibre a experiencia de estar vivos. O resultado disso tem sido, para mim, um mergulho nos mistérios da vida. E mergulhar é perder o fôlego sem medo de descobrir que não há respostas verdadeiras ou falsas no território do aprender.
– No programa do Pism, vestibular seriado da Universidade Federal de Juiz de Fora, há um recorte que inclui temas como colonialismo e anticolonialismo e narrativa de autoria indígena, e o seu nome está entre os autores sugeridos para estudo. Gostaria de aproveitar essa perspectiva para fazer uma pergunta. Em sua visão, de que forma a sua escrita atua como um gesto anticolonial, especialmente quando dialoga com a língua portuguesa, herança do colonizador?
– Não me sinto culpado (risos). Nunca escrevi para ser uma referência teórica, mas entendo que minha literatura vai na contramão do sistema colonial porque dialoga com outro paradigma brotado nas entrelinhas da história. Quem tiver coragem de mergulhar nestes escritos – e que não seja apenas uma vontade acadêmica – vai poder experimentar um essencialismo revelador: a natureza é plena em si mesma. Se somos natureza, somos plenos. Se nos considerarmos superior a ela, seremos incompletos, ainda que tenhamos riqueza infinita. Infelizmente, não posso dizer essas coisas na língua de minha gente Munduruku porque não seria entendido por quem precisa ouvir o que digo de forma escrita. Ainda assim, usar a língua do colonizador pode e deve servir para decolonizar sentidos, dogmas e paradigmas. Utilizar a língua do colonizador não é demérito, mas prova de competência. Como se dizia nos anos 1980, “posso ser quem você é, sem deixar de ser quem eu sou”, frase cunhada pelo líder Marcos Terena.
– Márcia Kambeba disse que a literatura indígena é também uma forma de repensar o Brasil. De que maneira a história e a cosmovisão dos povos originários podem inspirar novas formas de compreender o nosso país e construir um futuro mais plural e inclusivo?
– Autoras com Márcia têm se tornado essenciais para provocar uma mudança paradigmática. Ela, que é escritora múltipla, tem utilizado a sua oratória aprendida no coração da floresta para reeducar a mente dos brasileiros. O mais incrível é que nem ela – nem muitas outras – o fazem com violência ou desejo de vingança. É aqui que entra a literatura como um instrumento de resistência exatamente porque é uma linguagem capaz de dialogar, propor, encantar, reivindicar, protestar e conquistar, sem precisar usar gritos desesperados ou produzir vitimismos. E aqui também vejo como a literatura é a melhor forma de mudar a realidade porque ela permanece por gerações inteiras fazendo o trabalho de decolonizar mentes e corações. A literatura é atemporal, inclusiva e transformadora. Simples assim.
– O público brasileiro está realmente valorizando a produção de autores indígenas? Ou ainda há uma barreira a ser superada?
– Boa parte da produção literária que realmente faz sucesso e muda a visão das pessoas é voltada para o público infantil e juvenil. Essa é uma literatura que não tem visibilidade no mercado propriamente dito embora seja a produção que ajuda a manter o mercado. Isso se dá porque os leitores dessa literatura estão na escola, não compram livros e não têm muita autonomia intelectual. Criança nunca é chamada de intelectual quando discorre sobre um livro dito “infantil”. Uma bobagem sem fim esse tipo de pensamento. Talvez por isso haja pouca produção propriamente literária entre os indígenas. Livros autobiográficos, como a “queda do céu”, do Kopenawa, ou, “Ideias para adiar o fim do mundo”, do Krenak conseguiram furar a bolha editorial porque tiveram bons padrinhos. Por si só não entrariam no mercado porque, para isso, teriam que enfrentar um verdadeiro pelotão de avaliadores que não dariam a mínima chance de eles acontecerem. Aqui não estou falando de qualidade, mas de mercado editorial. Eles foram publicados por uma editora que tem uma posição ideológica e que publica livros de autores que podem não “dar certo”, mas que aceita o risco. Neste caso, deram certo. Méritos deles. É bom que se diga que há pelo menos seis selos editoriais criados e mantidos por indígenas. Quem os conhece? O que publicam? Como se mantém? Tudo isso são questões que ainda estão muito presentes em nosso cenário e que precisam, de certa forma, serem respondidas.
– Acabei de ler “Meu avô Apolinário” e me encantei pela poesia que o livro carrega. Que mensagem você acredita que essa jornada entre avô e neto pode deixar para quem está buscando suas próprias raízes e identidade?
– Escrevi esse livro para não me permitir esquecer a experiencia vivida com meu avô. Escrevi por puro egoísmo. Escrevi para não deixar passar a ideia de que a vida é simplicidade porque ela se inscreve num ciclo existencial que tem começo, meio e fim. A criança é o começo e o velho é o fim. Ou o velho é o começo e a criança é o fim. Tanto faz. Esse é o princípio que rege a natureza, princípio da circularidade. Quando a gente entende isso, tudo fica mais suave porque conseguimos compreender o essencial. O encontro entre o avô e o neto é, em síntese, o abraço que o universo nos proporciona. Cumpre-nos abraçá-lo.
– E de que forma a presença do seu avô ecoa em sua escrita e em sua vida, mesmo depois de sua partida?
– Costumo achar que meu avô foi o grande inspirador de minha trajetória literária. Ele está em tudo o que escrevo, ainda que saiba que nem tudo ele me ensinou. Algumas vezes já me senti escrevendo coisas que certamente ele diria, mas nunca teve tempo de me dizer, então acabo dizendo por ele. Às vezes, penso que o velho Apolinário é meu alter ego porque me vejo nele e o mantenho vivo em mim. Com certeza, ele é meu grande muso inspirador.





