
Quando conhecemos a Maressa, no ano de 2023, descobrimos que ela é uma garotinha que, além de preparar deliciosos biscoitos (habilidade que aprendeu com a tia), espalha amor e alegria. Depois, no ano seguinte, entendemos o que a faz ser tão especial. É que Maressa convive na casa de seus avós, onde cresce ouvindo as curiosas histórias contadas pelo vô Geraldo e, com isso, reconhece, com muito carinho, o valor de sua ancestralidade.
E, por falar em avós, agora presenciamos Maressa e seu primo Vicente sendo felizes na casa da Vó Nita. Por lá, tem bolo de fubá quentinho, macarronada, sucos (que podem ser de laranja com cenoura ou de limão com hortelã), quintal para brincar com animais e até uma caixinha com retalhos, linhas coloridas, agulhas, tintas, pincéis e tesoura. A nova aventura dessa menina está registrada em “A avó – retalhos e afeto” (Morada, 30 páginas), obra lançada na tarde de ontem, no Centro Cultural Dnar Rocha.
“Maressa e Vicente representam todas as crianças que encontram, no convívio familiar, uma companhia saudável, divertida e essencial para o crescimento. A vó Nita é uma mulher amorosa, cuidadosa e profundamente presente. Ela gosta de estar perto das crianças, conversar, ensinar as manualidades que sabe fazer. Isso encanta, envolve e entretém os pequenos. Na cozinha, prepara comidas deliciosas”, adianta a autora, lançando mão de um provérbio africano para nos explicar como é o universo em que essa dupla está sendo criada. “’É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança’. E, naquela casa, naquela família, os avós, os tios e as tias-avós foram proteção, carinho e presença para as crianças. A vó Nita simboliza tantas avós que fazem parte da ‘aldeia’ de cuidado que cerca os pequenos. É rede de apoio e, muitas vezes, é todo o apoio que uma mãe tem e que uma criança precisa”, afirma.
A inspiração para Ana Virgínia abordar memórias, gestos cotidianos e laços familiares com os pequenos vem de suas próprias vivências. Assim como Maressa, a escritora (também psicopedagoga e especialista em estudos literários e em relações étnicos raciais) cresceu em meio à simplicidade, rodeada pela família, por manualidades ensinadas pela avó e por muito afeto. “O que me motivou a escrever sobre minhas memórias foi acreditar na beleza de nossas histórias e na força que elas têm para inspirar outras crianças e adultos a também registrarem as suas. A literatura nasce das sensibilidades e vivências do cotidiano.”
Marisa Loures: O que as crianças revelam, perguntam ou partilham quando se deparam com essas narrativas que dialogam com ancestralidade negra, oralidade e memórias familiares?
Ana Virgínia da Silva: As crianças, especialmente das escolas públicas, se identificam com as ilustrações e com as histórias. Quando percebem que a narrativa se parece com a vida delas, começam a partilhar suas próprias experiências. No livro “O Avô – histórias e memórias”, as crianças são convidadas a escrever cartas para Maressa e para o avô. E, nesse movimento, escrevem sobre si, investigam sua ancestralidade em casa, conversam com os mais velhos. Lembro-me de uma criança que, ao montar sua “árvore da família”, viu que tinha os olhos da cor do bisavô, algo que nunca lhe haviam dito. Ela descobriu isso porque a família procurou fotos depois da leitura do livro. As crianças negras, especialmente as meninas, se encantam com a Maressa. Elas se reconhecem na personagem. Muitas vezes, quando entro na sala com o livro, o banner ou a boneca, as crianças apontam para as colegas que se parecem com a Maressa. E essas meninas sorriem e isso emociona.
E como você enxerga o papel destes saberes, o fazer artesanal, o uso dos retalhos e os gestos passados de geração em geração, na formação das crianças leitoras?
Esses saberes são heranças afetivas. Se manifestam nas manualidades, nas receitas da família e nos gestos que eternizam a presença ancestral. Conhecer a própria história, fazer o movimento Sankofa, é ampliar a leitura do mundo. Valorizar as narrativas dos mais velhos é também valorizar nossa identidade. Em tempos de excesso de telas, aproximar as crianças das atividades manuais, especialmente aquelas presentes na história da família, abre caminhos para leituras e releituras sobre si e sobre o outro.
Esta é a terceira obra protagonizada por Maressa. Podemos considerar os três títulos como uma trilogia? Ou você imagina essa série crescendo ainda mais?
Fico muito feliz com o percurso da Maressa nesses três livros. As crianças perguntam sobre ela, querem saber se sabe fazer mais receitas, como vive, o que gosta de fazer, perguntam até se ela vai crescer. Por isso, acredito que Maressa ainda pode aparecer em outras histórias. Ao mesmo tempo, tenho criado outras narrativas com novos personagens. Mas Maressa, que já conquistou o coração de muitos pequenos e grandes leitores, continua me acompanhando.
Entre 2023 e 2025, você lançou um livro por ano. Como tem sido esse ritmo de produção? Ele nasce de um fluxo criativo natural ou, de alguma forma, você sente que há uma expectativa, sua ou do público, que a impulsiona a publicar anualmente?
Inspirada no conceito de “escrevivência”, de Conceição Evaristo, tenho praticado a escrita das minhas memórias, vivências e observações. Também tenho participado do Laboratório de Escrita Recorrente, com a professora Taís Bravo. Esse movimento colabora para o desenvolvimento da minha escrita. Escrever, para mim, é desafiador diante da correria do cotidiano, mas também é espontâneo: as histórias estão em mim ou vão acontecendo ao meu redor. Quanto à publicação, sabemos que não é simples nem barato publicar um livro. Já organizei financiamentos coletivos para uma publicação e participo de editais de incentivo à cultura, que permitem que escritores independentes materializem seus projetos. Escrevo quando sou inspirada. Publico quando tenho oportunidade.

Você viveu grande parte da infância na casa dos avós maternos, um espaço cheio de histórias e afetos. De que forma essa convivência moldou sua sensibilidade como escritora e sua decisão de escrever para crianças?
A casa dos meus avós era, para mim, o lugar onde morava a felicidade. Ao escrever essas memórias, faço também um resgate de realidades que ainda existem na casa de muitos avós. Escrever para crianças e para leitores adultos é uma forma de partilhar essa experiência e levar afeto, leveza e sorrisos. Lya Luft diz que “a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira”. Acredito e desejo que toda criança possa crescer cercada de afeto, cuidado, proteção, cheirinho de bolo na cozinha, histórias contadas pelos avós, aprendizados compartilhados. É esse chão que me formou e que desejo preservar em palavras.
Em seus projetos em escolas públicas, você circula pelos espaços que formam leitores desde muito cedo. Quais retornos mais a sensibilizam? Que sinais você enxerga de que esses encontros realmente transformam as crianças?
O que mais me sensibiliza é perceber que as crianças e os adultos entram verdadeiramente nas histórias. Os “biscoitos da alegria” fazem sucesso não só pelo sabor, mas pela mensagem: Maressa ensina a olhar para o outro, a praticar pequenos gestos de cuidado, a compartilhar dons. Recebo muitas fotos e mensagens de professores e familiares que incorporam as histórias em suas atividades. Relatam conversas, reflexões, produções das crianças, e isso me deixa feliz. Nos encontros presenciais, elas falam sobre querer escrever, ilustrar, criar histórias. Eu estou ali para encorajá-las e reafirmar que isso é possível.
A mesa da avó, com bolo, suco e gelatina, é um cenário recorrente e muito brasileiro. Na sua narrativa, esse cotidiano simples funciona como uma forma de valorizar as pequenas experiências que moldam quem somos?
Sim. No novo livro, revisito cenas da minha infância na casa dos avós. Em outros livros, há a cozinha dos biscoitos, as listas de coisas preferidas, o colo do avô para ouvir histórias e rir juntos. Valorizar essas pequenas experiências, e a presença atenta dos adultos, ajuda a formar quem somos. São esses detalhes que constroem nossa memória afetiva.
E, por falar nisso, o olhar para o simples seria uma forma de resistência em tempos tão acelerados?
Sim. Olhar para o simples é encontrar beleza no cotidiano e nas relações de afeto, em casa, na escola, no trabalho, no lazer, no ônibus, na sala de aula. Valorizar as pequenas coisas contrasta com a lógica da ostentação em nossa sociedade. Fazer biscoitos, escrever uma história, bordar um retalho, tudo isso, e tudo aquilo que nos traz leveza, pode e deve fazer parte da nossa rotina de autocuidado e autoconhecimento. É, sim, uma forma de resistência.





