Carlos Cardoso: “O estado melancólico está instalado no mundo e é necessário falar sobre esse sentimento”

Por Marisa Loures

carlos cardoso
Carlos Cardoso é vencedor do prêmio APCA, na categoria Poesia, com o livro “Melancolia”, obra saudada por nomes, como Silviano Santiago e Antonio Cicero – Foto Divulgação

“Hoje, o mundo vivencia uma melancolia generalizada. O estado melancólico está instalado no mundo e é necessário falar sobre esse sentimento, entrar para saber como sair dele.” Esse trecho, eu o destaquei de uma das falas de Carlos Cardoso, transcritas na entrevista abaixo. Na última sexta, quando li seu livro, “Melancolia (Record, 112 páginas), vencedor do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de 2019, na categoria Poesia, fiquei extremamente tocada com os poemas que ele carrega, sobretudo, pela temática.

O planeta, realmente, está padecendo de um estado de grande tristeza, de desencanto geral. A saúde não vai bem. Pessoas morrem, aguardando uma vaga em uma fila de hospital, antes de receber o diagnóstico definitivo. Famílias não podem enterrar seus mortos com dignidade. A desigualdade social só aumenta. E a política nos faz descrentes de qualquer possibilidade de mudança. É por isso que a nova obra do poeta carioca é necessária. Ela nos faz ter coragem de falar, de ler e de escrever sobre esse sentimento chamado melancolia, como o próprio poeta assume em poema que dá nome ao livro. “Iniciarei sem medo,/ com a cabeça erguida/ falarei em primeira pessoa,/ direi: eu! Eu digo!”.

Durante a leitura da obra, acompanho o poeta em “O rolar da pedra” e enxergo um Rio de Janeiro com poucas esperanças de mudança, já que a pedra estará sempre no meio do caminho. “Assim tudo fica como é,/ como era e como está,/ pedra na guerra, pedra rolando,/ pedra pra lá, pedra pra cá./”. Em “Espanto”, vejo-o aterrorizado com o que faz, quando percebe que se expõe como um quadro na parede, sentindo “Vontade de voltar a ser criança/ e brincar de pique-esconde e lambuzar-me/de mariola e rapadura derretida,”. Ainda observo-o homenagear Vinicius de Moraes, em “Poeminha”, e delicio-me com sua conversa com Silviano Santiago, um diálogo em que falaram de poesia, música, negócios, artes plásticas, política e de um Brasil “com poucas/ esperanças no peito/ esse que habitamos/ entre famintos e homens ricos de moedas/ e perdidos em suas/ ambições de reis e presidentes,”. Uma conversa que parece ter sido travada neste dia de hoje, não é mesmo?

O posfácio é do imortal Antonio Carlos Secchin, e a capa traz um trabalho do pintor e escultor Carlos Vergara, que, inspirado na temática do livro, produziu uma instalação exclusivamente para a obra. Carlos Cardoso também é autor de outros três livros, entre eles, “Na pureza do sacrilégio”. “Não é certamente por acaso que ao longo de seus quatro livros, o poeta vem seguindo o locus exato onde surge a palavra. Um livro belo, que mostra o poeta, em voo solo, em busca do ponto preciso no qual a melancolia se descobre palavra”, sentencia, na orelha de “Melancolia”, Heloisa Buarque de Hollanda.

Marisa Loures –Heloisa Buarque de Hollanda abre a orelha do seu livro dizendo: “Intuo que a poesia de Carlos Cardoso é, antes de mais nada, uma técnica de sobrevivência”. Ela acertou em sua intuição? Por que você escreve e quando se deu conta de que era um poeta?

Carlos Cardoso –Sim, é uma técnica de sobrevivência, porque a poesia é o lugar onde me resgato. Escrevo por necessidade de extravasar pensamentos e sentimentos. Claro que não se restringe a isso, existem outros motivos imprevisíveis que influenciam minha produção poética. No início da adolescência, quando comecei a escrever aos 13 ou 14 anos, elaborava poemas como uma forma de extravasar sentimentos de difícil entendimento naquela fase. A escrita tornou-se então necessária e, a partir dali, a minha relação com a poesia se estreitou. Apesar disso, talvez eu só tenha me dado conta de que sou realmente um poeta nos últimos anos. Eu sempre me questionei sobre a diferença entre escrever e ser verdadeiramente um poeta. Muitas pessoas escrevem, mas o que produzem não as torna, necessariamente, poetas. A boa poesia tem que despertar algo em você para que seja transformado em versos intensos, profundos e verdadeiros.

“A produção poética brasileira carece da abordagem de assuntos delicados como este, que dialogam com os sentimentos de forma intrínseca, sem obscurantismos. Se falar sobre melancolia é complicado, escrever sobre ela é potencializar a dificuldade.”

– Em um trecho do poema que dá título ao livro, você diz: “Iniciarei sem medo,/ com a cabeça erguida/ falarei em primeira pessoa,/ direi: eu! Eu digo”. Esses versos me trazem a impressão de que é preciso ter coragem para assumir esse sentimento chamado melancolia. O próprio poeta precisou ter coragem para falar o que sente?

Carlos Cardoso – Geralmente, é muito difícil falar sobre sentimento seja qual for. Falar sobre melancolia é mais delicado, porque há um grande preconceito em torno dela, em parte porque nossa cultura nos impõe a felicidade como um dever a ser cumprido diariamente. A produção poética brasileira carece da abordagem de assuntos delicados como este, que dialogam com os sentimentos de forma intrínseca, sem obscurantismos. Se falar sobre melancolia é complicado, escrever sobre ela é potencializar a dificuldade. João Cabral de Melo Neto disse certa vez ao escritor José Castello, que o visitava para gravar as entrevistas que integram seu livro “João Cabral: o homem sem alma/Diário de tudo”, carregar um “buraco no peito”. Os médicos prescreviam antidepressivos, mas João Cabral não tomava a medicação, porque defendia que não sofria de depressão, mas de melancolia. “Não é depressão o que sinto, é melancolia. A mesma de que sofriam os poetas do século 19”, disse a Castello. Acredito que é preciso muita coragem para tratar esse sentimento como eu o abordei neste livro.

–Em “Espanto”, temos os seguintes versos: “Releio os meus versos/ e me aterrorizo com o que faço”. Por quê?

–Com relação à frase, estou falando sobre exposição, tal qual um quadro na parede, suscetível ao olhar do público. Claro que em uma poesia bem estruturada e escrita quase tudo é pensado e criamos formas de nos proteger. Deixamos que o leitor interprete o verso da forma que preferir. Não há como negar que há uma exposição muito grande quando você escreve sobre sentimentos, especialmente quando você traz o sentir para a primeira pessoa. Quando eu digo “este livro sou eu” no poema “Melancolia”, assumo a responsabilidade do livro e dos sentimentos que estão nele.

– Qual foi o contexto de gestação desses poemas?

–Entre o final de 2018 e início de 2019, fiz uma viagem por três países na Europa e foi um período muito produtivo para minha poesia. Escrevi muitos poemas à noite durante a viagem. O livro nasceu ali e ainda não era intitulado “Melancolia”. Na verdade, não me recordo se havia escolhido antes outro título para a obra. Lembro que, quando retornei para o Brasil, em um dado momento, a palavra “melancolia” fez sentido e resolvi assumi-la. Depois, reescrevi a maior parte dos poemas e trouxe o livro da terceira para a primeira pessoa. Foi um movimento importante e decisivo para o livro.

“Por meio da poesia, acredito que o poeta pode e deve enviar mensagens questionando essa realidade e mostrar o quão perversa e triste é a política adotada em nosso país. Podemos ainda dar um passo maior quando falamos em melancolia. Hoje, o mundo vivencia uma melancolia generalizada. O estado melancólico está instalado no mundo e é necessário falar sobre esse sentimento, entrar para saber como sair dele, compreendê-lo no coletivo e talvez isso nos permita a usar mais a primeira pessoa do plural, o ‘nós’, e não somente a primeira do singular, o ‘eu’.”

–Em “O rolar da pedra”, acompanho com você o deslocamento desse mineral e vejo um Rio de Janeiro com poucas esperanças de mudança. A pedra sempre estará no meio do caminho:  “Assim tudo fica como é,/ como era e como está,/ pedra na guerra, pedra rolando,/ pedra pra lá, pedra pra cá./ Pedra”. É feliz com a cidade que tem? Acredita que seja possível mudar esse cenário? E é dever do poeta ajudar a fazer isso?

 Sou, em parte, feliz com a cidade que penso ter, mas sinto que ela poderia ser melhor do que é em vários aspectos, principalmente no social. É difícil viver em um estado, no qual as disparidades sociais são gritantes, com centenas de comunidades, onde as pessoas sobrevivem na linha da miséria. Aliado a isso, o nível de violência é elevado. Se você erra o caminho para sua casa, por exemplo, pode colocar sua vida em perigo. Ao mesmo tempo em que a sociedade é tão desigual, geograficamente o Rio de Janeiro não separa as diferentes classes sociais. Aqui, todos se esbarram fisicamente em algum momento. Não acredito na mudança desse cenário violento e díspar do RJ a curto prazo. Essa mudança só seria possível com decisões políticas muito firmes e com uma política a ser trabalhada a longo prazo. Não só no RJ, mas no Brasil, as coisas acontecem sem nenhum tipo de planejamento, quer seja ele urbano, geográfico, social, educacional ou na área de saúde. Neste momento de pandemia, vemos os hospitais estaduais e municipais sem a menor capacidade de atender um percentual mínimo da população. Diante desse cenário, é difícil acreditar em mudanças. Por meio da poesia, acredito que o poeta pode e deve enviar mensagens questionando essa realidade e mostrar o quão perversa e triste é a política adotada em nosso país. Podemos ainda dar um passo maior quando falamos em melancolia. Hoje, o mundo vivencia uma melancolia generalizada. O estado melancólico está instalado no mundo e é necessário falar sobre esse sentimento, entrar para saber como sair dele, compreendê-lo no coletivo e talvez isso nos permita a usar mais a primeira pessoa do plural, o “nós”, e não somente a primeira do singular, o “eu”.

–Silviano Santiago declarou que, no livro anterior, “Na pureza do sacrilégio”, ele havia detectado, em você, “uma preocupação muito grande com a retórica. De repente, nesse livro ‘Melancolia’, aquela estrutura retórica ganhou corpo e sangue” e que você chegou ao seu ponto de maturidade. Como você avalia esse novo livro?

–É um livro que traz maturidade. Consegui apresentar poemas que tocam as pessoas. Fico surpreso e feliz quando os leitores entram em contato comigo para falar sobre meus poemas. No entanto, a boa poesia ainda tende a ser elitizada. Temos uma inversão de valores grande neste momento da contemporaneidade em que se produz muito de tudo, sem privilegiar a qualidade do conteúdo que está sendo feito. Em algum momento, teremos que nos questionar o que é e o que não é arte, o que é poesia e o que é um desejo de expressar apenas um pensamento ou sentimento aleatório. Quando você passa a se preocupar com a estrutura de um poema, você corre o risco de hermetizá-lo demais, e isso o torna inacessível para os leitores. O “Melancolia” traz uma linha muito bem-definida. Os poemas foram ordenados para que seguissem essa linha e, ao mesmo tempo, para permitir que a linguagem empregada neles tocasse com mais facilidade o leitor, sem sacrificar a densidade e a qualidade do texto. O livro alcançou esse objetivo, e fico feliz por isso.

 –No livro, tem poema dedicado a Silviano Santiago, Vinicius de Moraes e Caio Fernando Abreu. Referências para a sua literatura?

–Minhas referências na poesia são poetas brasileiros, portugueses, ingleses e franceses, como Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, Dylan Thomas, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, entre outros. Eu leio e gosto do Vinicius como poeta, mas não vejo nenhuma influência dele na minha poesia. Apenas dediquei este poema para ele, porque vi naqueles versos o jeito de escrever do Vinicius. Já no caso do Silviano, foi um diálogo que tive com ele na primeira vez que o vi. Admiro-o muito, mas não é uma referência para a minha produção poética. E quanto ao Caio, o poema foi encomendado para uma antologia em que tinha um determinado tópico que me foi enviado. Escrevi o poema baseado nele.

 –E já que falamos de Silviano Santiago, no poema dedicado a ele você relata que, quando se conheceram, falaram de um Brasil “com poucas/ esperanças no peito”. Levando em conta o contexto de pandemia e de crise política que estamos vivendo, muito se fala sobre o que será do nosso Brasil amanhã. Para você, como será o depois?

–No poema “Camaleão”, publicado em “Na pureza do sacrilégio”, livro anterior ao “Melancolia”, escrevi que “Ninguém, nem mesmo a solidão, tem/ mãos assim tão pequenas”. Sua pergunta me fez lembrar desse poema, porque enxergo esse “depois” que viveremos como algo incerto, em um primeiro momento. Porém, ao mesmo tempo, o “amanhã” também se apresenta para mim como um membro autônomo por natureza e solitário, como nossas mãos, mas que nos permitirá fazer escolhas esparsas e pensando no coletivo.

–E como foi para você ganhar o prêmio APCA?

–Ter um livro reconhecido pela crítica é algo muito bom. No fundo, todos nós queremos algum reconhecimento do nosso trabalho e claro que o prêmio que recebi da APCA foi muito especial para mim. Espero que outros prêmios venham no decorrer da minha vida.

Sala de Leitura – Segunda-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,3).

capa do livro melancolia 2“Melancolia”

Autor: Carlos Cardoso

Editora: Record (112 páginas)

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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