“Quando tudo se torna desassossego e ruído, é na escrita que consigo encontrar refúgio”, confidencia Raíssa Varandas

Por Marisa Loures

Raíssa Varandas 3
Em “Afluência”, seu livro de estreia, Raíssa Varandas relata, em contos, poemas e aforismos, as várias formas de violência enfrentadas pelas mulheres – Foto Arquivo Pessoal

A fotografia em preto e branco tem, no centro, uma mulher com a língua jorrando sangue. Trata-se do autorretrato da artista brasileira Lygia Pape, intitulado “Língua apunhalada”. Sua produção é de 1968, ano da decretação do Ato Institucional nº 5, o qual inaugura o período mais sombrio da Ditadura Militar brasileira. A juiz-forana Raíssa Varandas sempre se impressionou com essa imagem, que escancara toda a brutalidade da época e que joga na nossa cara que a violência, principalmente contra a mulher, não ficara no passado. A partir dela, Raíssa escreveu “Nossa língua apunhalada”, um dos contos de “Afluência” (Varanda), seu primeiro livro publicado, lançado neste último domingo, colocando em evidência a questão da mulher na sociedade.

“Gostaria de me chamar Lygia Pape, e não mulher. Camuflar fios de metal em fachos de luz, apenas para ver o corpo do tirano se despedaçar entre os filamentos de cobre que cruzam o porão, as linhas metálicas adentrando a carne a cada tentativa de aproximação. Responder à brutalidade da farda com a fúria das presas. Responder à imposição do silêncio com a força mesma que o silêncio tem”, brada, no texto, uma voz feminina. Aliás, é a voz feminina que está no centro de todo o livro.

“A imagem daquela língua vertendo sangue, aparentemente silenciosa, mas nos contando tudo que era importante dizer naquele momento e não podia ser dito. O autorretrato, contudo, passou a mexer comigo ainda mais nos últimos anos, quando aquilo que parecia estar apenas em um passado terrível voltou a ser uma ameaça. Como lidar com uma realidade na qual fazer homenagem a um torturador, em plena câmara dos deputados, é algo possível e até mesmo aplaudido por setores da sociedade? Como lidar com pedidos e ameaças de uma nova ditadura militar? De repente, eu me vi ali, no centro da fotografia da Lygia Pape, tentando lidar com um contexto de avanço de ideias autoritárias e fascistas, com os ataques constantes às minorias. Quis ouvir o que aquela fotografia, de 1968, poderia nos dizer hoje. Mas, à medida que escrevia, foi pensando nas nuances do silêncio, o silêncio que é imposto, mas aquele que pode ser ressignificado e utilizado como arma contra o opressor. E mais, quis pensar também naquele silenciamento que já existia antes de 1968 e continuou existindo depois, o silenciamento da mulher pela sociedade. Afinal, quem está no centro da fotografia é uma mulher, é dela a língua apunhalada”, dispara a autora.

Raíssa Varandas é formada em História e é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesse livro de estreia, ela flerta com a prosa e a poesia, transita entre os gêneros textuais, criando poemas, mas também contos e aforismos. Ele foi gestado ao longo de dois anos, com ilustrações de Bruna Bridi, sendo também a primeira obra apresentada pela Varanda, que não é apenas uma editora, mas um “complexo de comunicação e cultura”. Teatro, oficina de criação literária, blog e artes visuais estão entre os projetos tocados por André Porteira, Guilherme Madeira Martins, Laís Cerqueira e Ulisses Belleigoli. Para a edição de hoje da coluna Sala de Leitura, trago esta entrevista com a Raíssa, que, em “Afluência”, revela toda a intimidade dela com a palavra escrita.

Marisa Loures – Apresente o “Afluência” para os leitores da coluna Sala de Leitura.

Raíssa Varandas – Penso no “Afluência” como um livro híbrido, que busca uma fluidez entre os gêneros literários, oscilando entre os versos, poemas em prosa e o conto. Com exceção do texto que dá título ao livro e que, de certo modo, brinca com a possibilidade de ser uma espécie de prefácio para o restante da obra, quis que todos os textos estivessem na primeira pessoa, narrados por uma voz feminina. A voz da mulher, ou antes, das mulheres, é o cerne de “Afluência”. Com esses textos na primeira pessoa, quis jogar com a percepção do leitor, possibilitando que as histórias ali narradas pudessem, a princípio, ser compreendidas como pertencentes a uma única personagem, mas colocando em dúvida essa leitura a partir de divergências e pequenos detalhes que, na verdade, apontam para a existência de uma multiplicidade de mulheres ali presentes. Queria jogar com esse hábito que nós, enquanto leitores, temos de tentar enquadrar a voz do texto em uma identidade fixa, ou de até mesmo projetá-la no autor. As vozes, em “Afluência”, se esbarram, se confundem e se proliferam.

– Os textos que compõem seu livro colocam em evidência o corpo e as relações em torno e dentro dele. O que pensou em despertar no leitor ao escrevê-los?

O corpo sempre me pareceu uma grande questão na nossa sociedade. Fomos forjados por uma visão dualista em que corpo e mente, sujeito e objeto, foram colocados em campos opostos, e nessa visão binária, o corpo, por muito tempo, foi compreendido como a máquina a ser comandada pela razão. Dizemos “meu corpo”, mas não sabemos definir se ele é uma propriedade ou se é, no fim das contas, aquilo que de fato somos. Em parte, o controlamos, em parte, nossos órgãos seguem seu próprio ritmo. O corpo é, de certa maneira, o estrangeiro que habitamos. Quis trazer essas reflexões para os textos, pensando o corpo como um eixo em comum, não apenas como tema, mas também como produtor. É, também, com o corpo que se escreve: as mãos se deslocam no teclado, os ombros sustentam o movimento, as cordas vocais produzem a voz que dita o poema para checar o ritmo. E, dentro dessa questão, há uma ainda maior, o corpo da mulher em uma sociedade ainda patriarcal. Quis despertar no leitor uma reflexão sobre os tipos de vivência que esse corpo experimenta e enfrenta em um contexto como o nosso.

– “Afluência” traz uma escrita forte, visceral. Gostaria que nos contasse como foi o processo de escrita desse livro.

A escrita sempre me pareceu oscilar entre os momentos profícuos e a afasia. Há momentos em que as palavras parecem secar, até que elas voltam a surgir como um gole d’água. A relação com a escrita é, em alguns momentos, angustiante ao nos lembrar que existe sempre algo de incomunicável na nossa experiência com a linguagem. Mas a escrita é também uma paixão e um prazer. Apesar dessas oscilações, o “Afluência”, de certo modo, aconteceu muito naturalmente. Quando eu e o Ulisses conversamos sobre a publicação de um livro, eu tinha alguns textos prontos, mas ainda não havia um projeto definido, exceto a vontade de escrever algo que abordasse as diferentes vivências das mulheres. Conforme as produções foram acontecendo, começamos a perceber alguns eixos em comum, cada texto parecia se encaixar e complementar o outro, então, comecei a pensar nesse jogo de vozes que se confundem e distanciam.

– Pelo pouco que a conheço, sinto que você é mais da palavra escrita do que da palavra falada. Estou certa? Por que você escreve?

A escrita sempre foi minha ferramenta de observação e contato com o mundo. Ela é, acima de tudo, uma necessidade. Desde criança, é através dela que consigo elaborar minha relação com a sociedade, com as pessoas, comigo mesma. Quando tudo se torna desassossego e ruído, é na escrita que eu consigo encontrar refúgio. Não que o processo da escrita seja fácil. Escrever, muitas vezes, é um embate, com a linguagem e comigo mesma, mas é também encontrar aconchego no desassossego. E quando o texto finalmente acontece, é como retirar um peso dos ombros. O fato curioso é que sempre gostei da experiência de ouvir e ler textos em voz alta. Enquanto estou escrevendo, procuro sempre recitá-lo, para checar o ritmo e a sonoridade. De algum modo, sempre imagino meus textos se concretizando na palavra falada.

“Acredito que a arte e, nesse caso, a literatura, pode ser um meio de abordar a vivência da mulher em uma sociedade patriarcal e trazê-la para o cerne do debate. É um gesto pequeno, diante da realidade em que vivemos, mas a escrita foi a forma que encontrei de me colocar nessa batalha.”

– Seus escritos levam-nos a refletir sobre a violência contra a mulher. “Olhar 1”, “Olhar 2” e “Olhar 3”, por exemplo, fazem-nos lembrar, com tristeza, que o corpo da mulher está em perigo. Que vivemos em uma sociedade na qual boa parte das pessoas acredita que, em caso de estupro, a culpa é dela e não do estuprador. Ao tocar nessa questão, o que sua literatura quer dizer para a sociedade atual?

Vivemos em um país no qual as taxas de violência contra a mulher são alarmantes e no qual uma porcentagem preocupante da população ainda acredita que as roupas usadas por uma mulher justificam um estupro. Não há exagero em dizer que toda mulher tem uma história de abuso e violência para contar. A rua ainda é um espaço hostil ao corpo da mulher, o ambiente doméstico, em muitos casos, pode ser ameaçador (basta uma olhada nas estatísticas que mostram o aumento no número das denúncias de violência contra a mulher durante o período de quarentena) e, ainda assim, por muito tempo, fomos desencorajadas a falar sobre essa realidade. Desencorajadas pelo medo, pelo fato de nos culparem. Precisamos romper esse ciclo de silenciamento. No livro, tentei relatar as várias formas de violência, muitas vezes diárias, que as mulheres enfrentam e que podem vir desde um olhar invasivo na rua, um toque indesejado, até o abuso sexual, físico e psicológico. Cada uma das vozes femininas que surgem nos textos de “Afluência” tem sua dor e sua história de violência para compartilhar, seja em uma relação abusiva, seja na percepção das ameaças que se ocultam nas ruas da cidade. Acredito que a arte e, nesse caso, a literatura, pode ser um meio de abordar a vivência da mulher em uma sociedade patriarcal e trazê-la para o cerne do debate. É um gesto pequeno, diante da realidade em que vivemos, mas a escrita foi a forma que encontrei de me colocar nessa batalha.

 – Você é da poesia e também da prosa. Em “Afluência”, escreveu poemas, contos, além de aforismos. Transita sem grandes sustos por esses gêneros?

A transição acontece com um certo estranhamento, às vezes perpassado por dúvidas (“será que isso é um poema?”), mas é justamente esse estranhar que me motiva. Penso a escrita como uma experiência de deslocamento, assim como a leitura, aquilo que nos tira do centro. Tenho me interessado cada vez mais pela dissolução dessas barreiras entre gêneros, pelas formas de escrita que se deixam contaminar pela poesia, pela prosa, pelo ensaio e colocam em questionamento certas predefinições. Acho que as produções contemporâneas, na arte em geral, têm explorado muito bem esse campo inespecífico no qual as fronteiras entre gêneros e formas de arte se tornam fluídas.

– “Afluência” é seu primeiro livro solo. Antes, você já havia escrito um texto para o “Pôquer a seis”, lançado pelo projeto Hupokhondría e nascido a partir de um grupo de estudos do qual você faz parte. Eram sete pessoas trabalhando naquela publicação. Desta vez, com “Afluência”, acredito que a produção tenha sido mais solitária. Em se tratando da escrita, é mais fácil trabalhar só? E, por falar nisso, quais são suas expectativas enquanto escritora?

Uma das coisas que aprendi, tanto no projeto com o Hupokhondría, quanto durante o processo de publicação do “Afluência”, é que a escrita está sempre oscilando entre os momentos de solidão e o diálogo. No grupo de estudos, nós tínhamos o objetivo de ler os textos uns dos outros, dar sugestões, propor temas, produzir juntos. O diálogo, portanto, era a base do trabalho, mas o momento da escrita, em si, não deixava de ser aquela luta solitária com o papel ou a tela do computador. No caso do “Afluência”, por ser um livro escrito só por mim, essa briga com a página em branco esteve mais presente. No entanto, a escrita é apenas uma parte do processo. O produto final é resultado de um diálogo essencial com o Ulisses, como editor, com a Bruna, responsável pelas ilustrações, com todos da editora, Laís, Deco (André Porteira), Guilherme, e também com a Anelise (Anelise Freitas), responsável pela revisão. Todos estiveram muito envolvidos no trabalho. A escrita se deu sozinha, mas o livro é resultado de um trabalho conjunto. Em relação às minhas expectativas como escritora, sabemos que o cenário não é favorável para aqueles que querem viver de literatura (e arte, no geral). Minha vida, no entanto, sempre se moldou para estar em contato com esse meio literário, seja no trabalho como escritora, seja na trajetória acadêmica que, na verdade, não deixa de estar em diálogo e influenciar diretamente minha escrita. No momento, estou escrevendo coisas novas, mais voltadas para a poesia, mas ainda nesse formato de textos fluídos, que perpassam entre os gêneros. Ainda não tenho um projeto de nova publicação pronto, mas o plano é continuar produzindo e publicando.

– E, além de ser seu primeiro livro, também é a primeira obra apresentada pela editora Varanda. Acredito que todo escritor, quando decide lançar-se no mercado, enche-se de expectativas e pesquisa muito à procura da melhor editora. Por que a Varanda? Qual o diferencial dela? E quais estratégias vocês pensaram para colocar “Afluência” na rua?

Meu contato com o pessoal da editora Varanda veio antes da proposta de publicação do livro, quando comecei a participar da oficina de escrita criativa oferecida pelo Ulisses. Na época a oficina ainda não estava vinculada diretamente com a editora, mas lá conheci não só o Ulisses, como a Laís e o Deco. Dessa forma, quando a editora me procurou com essa proposta de publicação, já existia uma relação de confiança entre nós. Eles conheciam meu trabalho, e eu o deles. E essa confiança é fundamental no processo de produção de um livro. O que não imaginávamos era passar por esse momento de pandemia durante o ano de lançamento do livro. Com a necessidade do distanciamento social, a Laís apresentou algumas propostas para colocarmos esse livro no mundo. Havia a possibilidade de segurar o lançamento até o surgimento da vacina, um momento em que as coisas pudessem acontecer com segurança. Mas o livro já estava pronto para nascer, e esperar por um momento que ainda nos é incerto parecia não ser a melhor estratégia. Por isso, decidimos por um lançamento online, através de uma live onde poderíamos conversar um pouco sobre o “Afluência”, meu processo de criação, as ilustrações da Bruna. Esse lançamento, no entanto, é apenas um começo. A editora tem projetos para continuar divulgando a obra, através do podcast, do perfil no Intagram (que é a rede social na qual a Varanda tem um alcance maior, no momento). As estratégias que, agora, acontecem online, não isentam, no futuro, a possibilidade de um lançamento presencial, quando esse contato social puder ser feito de forma segura novamente, afinal, seria uma celebração não apenas do meu primeiro livro, mas também da estreia da editora.

– Raíssa, antes de tudo, você é uma leitora. Basta darmos uma olhada nas suas redes sociais para vermos que o livro tem sido seu companheiro diário. Quais autores que você sente que realmente influenciam-na como escritora? O que na escrita deles desperta sua atenção?

Para mim, é impossível pensar a experiência da escrita separada da experiência da leitura. Sinto que a escrita começa a ser gestada ali mesmo, no ato de ler, mesmo quando o processo não é consciente. Há sempre algo, daquilo que lemos, que permanece em nós, construindo uma espécie de substrato que vai moldando a forma como nos relacionamos com a literatura. Um molde que não é fixo, é claro. Transformamos a nossa escrita à medida que ampliamos nosso contato com outras produções. Boa parte dos meus textos nascem dessa relação. Às vezes basta uma frase, um conceito ou uma única palavra, para gerar a ideia que depois se transformará em escrita. Às vezes, essa fonte inicial desaparece na produção, e o texto toma outros rumos, mas, mesmo assim, o impulso inicial aconteceu ali, nesse corpo a corpo com a leitura. Acho difícil enumerar quais autores me influenciaram porque isso se construiu ao longo da minha vida como leitora, e ainda está em construção. Tento sempre ampliar o meu contato com a literatura, desde os clássicos até as produções mais recentes. Atualmente tenho me interessado muito pela poesia contemporânea, principalmente aquela produzida por mulheres. Mas a influência pode vir também de outras fontes de leitura: ensaios, textos teóricos, produções acadêmicas, no geral. Tudo serve de material. Algumas produções do “Afluência” vieram de insights que surgiram durante as leituras teóricas para o doutorado, por exemplo. Mas, para não dizer que não citei ninguém, por agora, tenho andado muito bem acompanhada de Hilda Hilst, Adília Lopes, Ana Cristina Cesar e o meu bom e velho companheiro, Oswald de Andrade.

Sala de Leitura – Toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)

Capa do livro afluência 2

“Afluência”

Autora: Raíssa Varandas

Ilsutradora: Bruna Bridi

Editora: Varanda

Clique aqui para assistir à live de lançamento do livro.

Leia, gratuitamente, o conto “Nossa língua apunhalada” em formato PDF.

 

 

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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