É a poesia que convida o leitor a abrir “Corpos em movimento” (Cachalote). No lugar do título e do nome da autora, estes apresentados somente na contracapa, os versos de Patrícia Aniceto. “nunca sei exatamente o que irei escrever/ só escrevo aquilo que fere/ e move a fera que mora dentro de mim/ rugindo na ponta do lápis/ lentamente/ deixando no papel/ rastro e rasura/ viagem abissal/ rumo ao desconhecido da palavra/ do início ao fim”, versa, em sua obra de estreia, a poeta, que é mulher e negra.
“Considero-me uma pessoa extremamente sensível. Nossos corpos são marcados e, principalmente, me fere o olhar impiedoso das pessoas que me apontam um lugar de não pertencimento quando o debate envolve, sobretudo, essas questões. Daí a importância da escrita que não deixa de funcionar como uma espécie de catarse para mim. Dificilmente releio um texto meu, machuca. É quase que sofrer de novo. Longe de desafiar o cânone, a mídia, as bancas, as críticas, os medíocres e o Lattes, escrevo para sentir-me mais viva, mesmo que pós-escrita, eu me sinta um pouco morta também. Escrever é um ofício que me permite falar sobre as feridas, mas, para salvaguardar-me, prefiro não indicar com exatidão os instrumentos que, de fato, são capazes de me ferir”, reflete a também doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Patrícia começou a participar de antologias nos concursos de redação promovidos pela Academia Brasileira de Letras e pela Folha Dirigida, nos idos de 2005 e 2006.
Lançado na última quinta-feira, na Faculdade de Letras da UFJF, dentro da programação do I encontro de Autoria Feminina, organizado pelo Grupo de Pesquisa Travessias e Feminismo (s): Estudos Identitários na Autoria Feminina, “Corpos em movimento” traz poemas de Patrícia que falam de infância, mulher, luta, resistência, amor e sobre o próprio processo de escrever. Patrícia é extremamente tímida. Parece querer manter a fera bem guardada dentro de si, para que, lá de dentro, ela continue rugindo e tocando a nossa alma.
A autora sandumonense, com seus escritos, mostra-nos que, ser poeta, é uma “Profissão de risco”, “em tempos sombrios”. Não nos deixa esquecer do “vale da morte” em que se transformou Brumadinho. Ainda nos lembra, em poema dedicado a Marielle, que, em nosso país, “mulheres negras são silenciadas e arrebatadas diariamente”. Em outro poema, escancara a realidade de um país em que se acredita que a mulher “precisa desculpar-se consigo mesma por ter sido estuprada”. Mas também nos mostra que é preciso acreditar, pois “não chegamos tarde/para nosso tempo”. “há de ecoar no futuro/ que no passado estivemos lá/ em festa a preencher as praças/ e as ruas em manifesto/ e não seremos apenas lembrança/ porque seremos sinônimo de mudança/ ainda é cedo/ ainda há tempo de um novo tracejo/ sobre o tempo e suas fissuras/ sobre nós mesmos/ corpos em movimento e em aliança”.
Marisa Loures – A capa do livro, com o título e o nome da autora, vem no fim, depois de tudo. Na frente, há apenas uma poesia. Por que esse design?
Patrícia Aniceto – Na verdade, outros escritores já fizeram um design como esse, e achei muito interessante quando o vi na obra “Agora vai ser assim”, do Leonardo Tonus. Pensei que “Corpos em movimento”, de fato, deveria ser assim também pela proposta do título. O movimento tanto como verbo quanto substantivo atende bem a essa perspectiva que faz com que o leitor, primeiramente, leia a poesia e, por último, tenha contato com o autor e com o título da obra.
– No prefácio do livro, Thereza da Conceição Apparecida Domingues chama a atenção dos leitores para os versos em que você atribui a si mesma a formação da sua personalidade, sem interferência do seu pai ou da sua mãe na passagem para a vida adulta: “não sei ao certo quando soltaste as minhas mãos/ e me deixaste adulta seguir sozinha.” Foi também nessa passagem para a maturidade que você se percebeu poeta?
– Acredito que eu ainda não me reconheça como poeta, mas, desde sempre, estabeleci uma relação muito profícua e, ao mesmo tempo, intimista com a escrita. A maturidade contribuiu para que eu me abrisse para as críticas ao tornar público o que escrevo e, ao mesmo tempo, permissiva à leitura dos meus manuscritos. Afinal de contas, ser lida é um processo muito invasivo que permite ao leitor conhecer o limbo do seu pensamento, e não conseguimos precisar como será essa recepção.
– Alguns de seus poemas são metalinguísticos, você reflete sobre o próprio ato de escrever poesia, como o “Rotina”. Ao lê-lo, consegui, claramente, visualizar sua rotina diária de escrever versos, na fila ou dentro de um ônibus, em meio a jovens falando sobre cálculo, corpos que se esbarram e pessoas com fone de ouvido. Ali, acredito eu, estão a matéria prima, viva, da poeta. Mas também está o que faz com que a poesia lhe escape. A viagem chega ao fim. A poeta tem que descer, mas não quer, porque deseja “reencontrar o que ficou escuso/ na penumbra do pensamento/ o verso fugidio.” Gostaria que falasse um pouco mais sobre seu processo de escrita. Normalmente, consegue “retornar à origem” e encontrar os versos que lhe escaparam?
– Nem sempre. Alguns versos permanecem no esquecimento, todavia, há alguns que, por mais que me lembre deles, não merecem ser aprisionados no papel. Acredito que nem toda inspiração mereça ser materializada em palavras. Minha escrita é impulsiva. Não consigo me demorar num texto. Ou ele nasce no turbilhão das emoções, ou se desfaz no próprio pensamento.
– Como integrante do grupo Grupo de Pesquisa Travessias e Feminismo (s): Estudos Identitários na Autoria Feminina, ajudou a organizar o I encontro de Autoria Feminina. Qual é a importância de iniciativas como essa não só para as pesquisas que são desenvolvidas no ambiente da academia, mas também para o reconhecimento da literatura produzida por mulheres?
– Essa iniciativa possibilita a ampliação do diálogo entre nossas pesquisas, através das reflexões e das discussões sobre a autoria feminina em seus mais variados aspectos. Nossa proposta é também lançar novos olhares para essa escrita, bem como romper o silêncio dessas vozes esquecidas em suas páginas.
“Embora exista a demarcação desse lugar de fala, penso que o mais importante no texto é a sua proposta e a maneira como consigo alterizar minha voz. Essa declaração pode nos conduzir a um caminho insidioso. Como leitora, ainda sou tocada pelas palavras. É nessa verdade que acredito.”
– Aliás, é importante se dizer autora negra e mulher nos dias atuais? Já fiz essa pergunta mais de uma vez aqui na coluna, e as respostas são divergentes.
– Acredito que não, mas a sociedade sempre nos interpela sobre essas questões que, muitas vezes, acabam evidenciando muito mais o autor do que a obra em si. Isso tem sido muito comum. Embora exista a demarcação desse lugar de fala, penso que o mais importante no texto é a sua proposta e a maneira como consigo alterizar minha voz. Essa declaração pode nos conduzir a um caminho insidioso. Como leitora, ainda sou tocada pelas palavras. É nessa verdade que acredito.
“Acredito que seja bastante pertinente a representatividade do negro no ambiente acadêmico, bem como em toda estrutura social, todavia, por uma questão ética, creio que toda pesquisa mereça respeito. Se partirmos do princípio de que a cor definirá a qualidade da pesquisa, corremos o risco de estarmos tornando-a subjetiva e excludente.”
– Por falar no Encontro de Autoria Feminina, naquela tarde, durante a mesa de Literatura Feminina Afro-brasileira, um ponto que acabou indo para o centro da discussão é a questão do “lugar de fala”. Alguns levantam a bandeira de que, por exemplo, só uma mulher negra pode pesquisar questões da raça negra. O que você pensa sobre isso?
– Acredito nesse lugar de fala. Penso que ele transmite, sim, a ideia de pertencimento. É imprescindível que o negro seja também visto pela percepção do próprio negro. Recentemente, os Estudos Literários têm obtido uma fundamentação teórica embasada em autores negros. Essa é uma grande conquista para nossas pesquisas. Acredito que seja bastante pertinente a representatividade do negro no ambiente acadêmico, bem como em toda estrutura social, todavia, por uma questão ética, creio que toda pesquisa mereça respeito. Se partirmos do princípio de que a cor definirá a qualidade da pesquisa, corremos o risco de estarmos tornando-a subjetiva e excludente.
– No doutorado, você se debruça sobre as obras de Elisa Lucinda e Conceição Evaristo. Quais são os pontos de contato entre as duas? De alguma forma, elas exercem influência no seu fazer poético?
– A proposta temática tanto de Elisa Lucinda quanto de Conceição Evaristo apresenta os desafios que o sujeito lírico negro, independentemente do gênero, enfrenta na sociedade, bem como retoma a questão da ancestralidade e da resistência. A influência dessas escritoras recai diretamente no meu processo de identificação. Ainda que eu não soubesse que se tratassem de mulheres negras, saberia o quanto essas vozes se alterizam e acabam dialogando com minha própria voz.
– Na orelha da publicação, a professora Nícea Helena Nogueira diz que, em sua poesia, “o intertexto prevalece nas estrofes quando traz, na composição de suas imagens, a presença de outros trovadores e, claro, de outros artistas e pensadores, prova inegável da erudição da poeta.” Esses outros artistas e pensadores que habitam seus escritos também são suas referências? Em que medida sua poesia dialoga com a obra deles?
– Essa leitura que a professora Nícea faz é crível. “Corpos em movimento” começou a ser escrito quando iniciei meu doutoramento. As leituras acadêmicas e todo o arcabouço teórico refletiram de forma incisiva sobre meu processo de criação. Não quis inserir nada daquilo que havia escrito antes, mas não descartei leituras passadas. Acredito muito no diálogo literário.
– Quais são os sonhos dessa poeta?
– Atualmente, meu maior sonho é não perder a crença no poder transformador da literatura. Penso que ela pode salvar, libertar, encorajar as pessoas, bem como mudar a perspectiva dos seus olhares. Sonho – também que ela possa nos unir através do amor, sem que jamais dissemine o ódio e a discriminação.