Gustavo Silveira Ribeiro: “Nem tudo o que está sendo publicado no país deve ser celebrado”

Por Marisa Loures

Gustavo Silveira Ribeiro
Gustavo Silveira Ribeiro organiza a antologia “Uma alegria estilhaçada”, que reúne 20 nomes da cena poética brasileira entre  2008 e 2018 e que está disponível para download gratuito – Foto Arquivo Pessoal

“Podemos dizer que a poesia brasileira de hoje tem ‘uma cara’?”, pergunto eu quando me entrego à leitura dos textos que integram a recém-lançada antologia de bolso “Uma alegria estilhaçada: poesia brasileira 2008 – 2018”, disponível para download gratuito no site da Escamandro e da Edições Macondo. Em suas páginas, há dois textos de cada um dos 20 autores – Ana Estaregui, André Capilé, Carla Diacov, Daniel Arelli, Daniel Francoy, Ederval Fernandes, Érica Zíngano, Guilherme Gontijo Flores, Ismar Tirelli Neto, Josoaldo Lima Rêgo, Júlia de Carvalho Hansen, Julia de Souza, Júlia Studart, Leila Danziger, Marcelo Ariel, Maíra Mendes Galvão, Otávio Campos, Reuben, Rita Isadora Pessoa e Tatiana Pequeno -, os quais se impuseram entre as mais importantes vozes que surgiram na cena poética brasileira no período que vai entre 2008 a 2018, segundo Gustavo Silveira Ribeiro, organizador da obra.

Além desses, outros cinco nomes – Danielle Magalhães, Italo Diblasi, Natália Agra, Rodrigo Lobo, e William Zeytounlian -, compõem a seção intitulada “À espera da segunda dentição”, que chega para nós, leitores, como um bônus e como uma aposta do que pode ser esperado para os próximos anos, explica Gustavo na entrevista abaixo.

Gustavo Silveira Ribeiro é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais. Entre seus títulos publicados estão “O drama ético na obra de Graciliano Ramos (UFMG, 2016) e “Antevéspera, noite interior: atravessar uma canção que me atravessa (Macondo, 2018). Neste bate-papo desta terça-feira, conversamos sobre “Uma alegria estilhaçada”, o porquê do recorte temporal da antologia, os motivos que colocam os 20 poetas selecionados entre os destaques do período e, claro, sobre a variedade de tendências da cena poética brasileira de hoje. Ele respondeu a pergunta que abre esta coluna e, como eu imaginava, não crê que seja “possível atribuir uma cara específica à poesia brasileira do presente.”

Marisa Loures – “Uma alegria estilhaçada” tem como marco temporal o período que vai entre 2008 e 2018. Por que esse recorte?

Gustavo Silveira Ribeiro – A antologia quer ser um balanço da última década da poesia brasileira. Concebida ainda em 2019, ela procurou se fixar em autores que estrearam, em livro, até o ano 2018. A escolha de 2008 como ponto de partida se deve a dois fatores: a) ali se fechava um ciclo importante do período passado, com o fim da revista “Inimigo rumor”, que em 20 números, ajudou a organizar e dar sentido à poesia produzida na década de 1990 e nos primeiros anos da década seguinte. Encerrada depois de 20 números, a revista deu lugar ao cenário que, bem ou mal, persiste até hoje: o crescimento vertiginoso das plataformas digitais e a atomização da produção poética, tanto no âmbito da escrita e circulação dos textos, quanto no debate crítico. A geração de poetas que se reuniu e educou em torno da “Inimigo rumor” deu lugar, a partir de 2008, à novíssima geração de autores que se reunia de modo mais disperso em blogs e revistas eletrônicas, fazendo circular poéticas e questões muito diversas. b)a crise do mercado financeiro internacional, deflagrada em setembro de 2008, vai marcar, mais do que a virada do milênio ou os debates internos à cena poética, como um marco divisório entre a geração anterior e o novo contingente de autores atuantes na década que recém findou. A politização muito intensa da poesia brasileira recente tem a ver, em vários níveis, com os efeitos da desigualdade e da violência que, se abatendo sobre o mundo inteiro, se fez sentir muito duramente no país (sobretudo a partir de 2013), com consequências até o presente. A emergência da crise e as tentativas da poesia de responder a esse novo cenário são propostas, na antologia, como ponto de inflexão entre gerações, servindo para demarcar, simbolicamente, a passagem de um momento a outro da poesia brasileira contemporânea.

– Já escutei que a literatura brasileira contemporânea é ensimesmada demais, o que já foi questionado por alguns autores com quem conversei. Quais são as inquietações da poesia brasileira hoje?

Acho que essa ideia não procede. Evidentemente, é impossível falar na poesia brasileira contemporânea como uma unidade, uma vez que são inúmeros autores escrevendo ao mesmo tempo, partindo de formas e questões muito distintas. Mas, se considerarmos a média do que se publica nos últimos anos e que tem maior penetração junto ao público, o retrato que podemos perceber é outro. A poesia escrita hoje tem muito mais da espontaneidade, do registro subjetivo e pessoal, do humor e da crítica social que marcou a poesia carioca dos anos 1970, na chamada Geração Mimeógrafo. Nomes como Cacaso, Paulo Leminski retornam no contexto atual, mostram-se interlocutores importantes das novas gerações. O diálogo com a canção popular também é importante para as novas gerações, que mantém o vínculo com a MPB, mas abrem-se também ao rap, por exemplo. As pautas políticas e o desejo de inserção crítica imediata é outro fator que afasta a ideia do hermetismo e do fechamento em si da poesia. As correntes poéticas que se alimentam do feminismo, por exemplo, ou a poesia de expressão negra, em diálogo com as lutas do dia a dia, dificilmente podem ser lidos sob o signo da rarefação do sentido. É claro que persiste um viés experimental e vanguardista em certos poetas, alguns autores importantes passam por aí, e isso pode ser percebido como sinal de ensimesmamento. Mas não creio que o diagnóstico da cena como um todo, venha de onde vier, é relevante.

– Podemos dizer que a poesia brasileira de hoje tem “uma cara”?

Não, não creio que seria possível atribuir uma cara específica à poesia brasileira do presente. São muitos autores e muitas correntes se movimentando ao mesmo tempo, muitas delas em franca contradição umas com as outras. O que poderia ser destacado é que há núcleos mais ou menos visíveis no campo poético: há um interesse crescente pelo poema político e pela intervenção social a partir da poesia; há também as experiências de criação com a voz, o corpo e a performance, que hibridizam o texto poético e expandem os seus limites tradicionais; há, ainda, os trabalhos que resgatam, de modo crítico, a forma fixa e as convenções literárias de outras épocas, de modo a jogar, na escrita do presente, com registros anacrônicos, abertos a múltiplas temporalidades. Mas a simples nomeação dessas tendências, como se vê, revela o caráter variado da geração. Reduzir essa diversidade a qualquer dos seus traços de modo a inventar um rosto e uma dicção para a poesia brasileira atual não me parece adequado.

– O que coloca os 20 poetas que integram essa antologia entre as mais importantes vozes de 2008 a 2018?

Bem ou mal, a antologia procurou situar o trabalho dos 20 nomes selecionados, analisando brevemente as suas obras. Em resumo, diria que elas são representantes da diversidade de tendências e formas que marca a cena poética brasileira de agora, e que se apresentam como os poetas mais consistentes, mais seguros dos seus meios de expressão e das propostas que escolhem encampar em seus poemas. Evidentemente, a seleção desses nomes passa, em larga medida, por questões pessoais também. Por mais que um crítico se disponha a ler toda a produção de uma época, é impossível cobrir todos os autores; é certo também que a sensibilidade individual do antologista, os aspectos decisivos da sua formação como leitor vão influir também, na medida em que cada seleção expressa uma certa compreensão particular do que é a poesia e quais os seus elementos fundamentais.

– Além desses 20 poetas, a antologia traz, ao final, outros cinco nomes em uma seção chamada “À espera da segunda dentição”. É uma aposta para os próximos anos?

Sim, a ideia foi listar, como um bônus ao leitor que se interessou pelo balanço de época proposto pela antologia, cinco nomes que só têm um livro publicado, cinco estreantes que, conforme os critérios de seleção dos autores colocado em destaque no projeto, parecem significativos, com poemas que prometem desdobramentos interessantes nos próximos livros. É um modo também de já começar a olhar para a novíssima geração de autores que apenas desponta no horizonte, e cujos traços ainda são desconhecidos para todos.

– É comum ouvirmos autores lamentando o fato de a poesia no Brasil ser pouco valorizada, pouco lida, por muitos acreditarem que ela é de difícil leitura. Contudo, na apresentação do livro, você nos mostra que o período compreendido pela antologia foi uma época de renovado interesse pela produção poética, ainda que os grandes suplementos literários estejam desaparecendo. O que vem contribuindo para esses bons ventos que sopram a favor da poesia?

Essa é uma questão complexa, porque envolve muitos fatores e nem todas as peças importantes desse jogo estão acessíveis. Mas, numa resposta rápida e certamente incompleta, diria que a internet e as redes sociais, tomadas como plataformas de encontro entre leitores e escritores, e como ponto de difusão de novos textos e experimentos linguísticos, contribuiu para a renovação do interesse (especialmente entre os mais jovens) pela poesia. O surgimento vertiginoso das micro-editoras, que se multiplicam rapidamente e interagem com grupos específicos de leitores, também tem o seu lugar nesse contexto. Por fim, cabe destacar que o fortalecimento dos circuitos de slam e dos saraus populares, que misturam recitação, performance e música (cuja base é o poema, não nos esqueçamos) tem participação importante na configuração desse novo cenário.

“A inclusão é um dos elementos-chave para políticas públicas efetivas e democráticas, com real poder de transformação social. A mudança nos critérios de avaliação e seleção no campo da cultura, as políticas do valor, coloquemos assim, são também decisivas para a vida do pensamento, que com isso se volta permanentemente sobre si, questionando-se, estranhando critérios e conceitos que, de um jeito ou de outro, trazem consigo toda uma carga ideológica tomada por muito tempo como natural e inquestionável. Porém, ainda que todas essas questões sejam muito relevantes, é preciso ainda persistir, mesmo com todas dificuldades metodológicas, na luta pelo estabelecimento do valor da obra de arte que passe, principalmente, por questões de linguagem, de forma e de construção textual, por assim dizer.”

– “Nem tudo o que está sendo publicado no país deve ser celebrado”, escreve você ao justificar o número, elevado, para alguns, e insuficiente, para outros, de poetas selecionados para essa antologia. É necessário, para o bem da poesia brasileira, que fujamos de discursos que defendem a inclusão pela inclusão, sem uma séria leitura crítica?

Eu creio que sim. A inclusão é um dos elementos-chave para políticas públicas efetivas e democráticas, com real poder de transformação social. A mudança nos critérios de avaliação e seleção no campo da cultura, as políticas do valor, coloquemos assim, são também decisivas para a vida do pensamento, que com isso se volta permanentemente sobre si, questionando-se, estranhando critérios e conceitos que, de um jeito ou de outro, trazem consigo toda uma carga ideológica tomada por muito tempo como natural e inquestionável. Porém, ainda que todas essas questões sejam muito relevantes, é preciso ainda persistir, mesmo com todas dificuldades metodológicas, na luta pelo estabelecimento do valor da obra de arte que passe, principalmente, por questões de linguagem, de forma e de construção textual, por assim dizer. Não se trata de separar rigidamente os campos, nem mesmo se trata de reivindicar critérios formalistas estritos para a leitura literária, mas algo, me parece, às vezes parece perdido em meio aos debates sobre a inclusividade de grupos historicamente marginalizados, cuja importância, obviamente, não gostaria de negar. Só acho que insistir também no dado estético me parece decisivo para o debate, inclusive para uma melhor compreensão do que há de político e violento na constituição do campo das artes.

Capa da antologia

“Uma alegria estilhaçada: poesia brasileira 2008 – 2018”

Antologia de bolso

Organizador: Gustavo Silveira Ribeiro

Poetas: Ana Estaregui, André Capilé, Carla Diacov, Daniel Arelli, Daniel Francoy, Ederval Fernandes, Érica Zíngano, Guilherme Gontijo Flores, Ismar Tirelli Neto, Josoaldo Lima Rêgo, Júlia de Carvalho Hansen, Julia de Souza, Júlia Studart, Leila Danziger, Marcelo Ariel, Maíra Mendes Galvão, Otávio Campos, Reuben, Rita Isadora Pessoa, Tatiana Pequeno, Danielle Magalhães, Italo Diblasi, Natália Agra, Rodrigo Lobo, e William Zeytounlian.

Disponível para download gratuito no site da Escamandro e da Edições Macondo.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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