Roberto Nicolato: “Esse é um livro que fala de mim, um livro de formação”

Por Marisa Loures

Roberto Nicolato foto André Rodrigues
O jornalista e professor mineiro Roberto Nicolato reúne poesias escritas ao longo de 40 anos no livro “Pequeno tratado do amor e da natureza” – Foto André Rodrigues

“Os olhos choram. No azul da montanha,/ o mundo encurva, vai embora…/ Amordaçado, vivo essa insânia,/ rastejando o corpo desnudo nas ervas”. Roberto Nicolato era ainda um adolescente de 17 anos quando escreveu “Rastros”, cujos primeiros versos abrem este texto. Ele é mineiro, nascido na pequena Sant’Ana do Campestre, lugarejo que fica entre Cataguases e Ubá. Em idade de fazer curso superior, veio para Juiz de Fora e fez Comunicação Social na UFJF. Eram os anos 1980. Lá se vão quatro décadas. Ele tinha cerca de 20 anos de idade, e aqui, em terras de Murilo Mendes, continuou a cultivar o hábito de criar versos. Na verdade, nunca parou, mas ainda não havia publicado sua poesia em livros.

Contudo, Nicolato acaba de reunir 43 poemas escritos, ao longo de 40 anos, no “Pequeno tratado do amor e da natureza” (Kotter, 112 páginas), que chega para os leitores como uma espécie de antologia dos livros que ele não publicou. Ele é dividido em três partes: “Do amor”, Da natureza” e “Do homem”. Este era o momento da poesia. “Os poemas já estavam maduros”, explica o poeta. “O título é inspirado no ‘Compêndio para uso dos pássaros’, do Manoel de Barros, o poeta pantaneiro. Foi uma forma, inclusive, de eu tentar disciplinar. Quando você fala “pequeno tratado”, você está pensando em uma coisa meio iluminista, mas foi uma forma de tentar organizar poemas muito díspares, com dicções diferentes, escrito em épocas diferentes. Achei que o resultado foi legal. E, também, até porque o livro tem um pouco de filosofia de vida. É nesse sentido que esse livro tem esse título”, conta Nicolato, hoje, aposentado da docência no ensino superior e do jornalismo.

Radicado em Curitiba há vários anos, ele é autor dos romances “Do outro lado da rua” (Kotter Editorial) e “A caminhada ou o homem sem passado” (Blanche Editora) e do livro “Teorias do jornalismo” (Editora Intersaberes), organizado em parceria com professores de faculdades de Jornalismo do Paraná. Nicolato tem muitos planos, e algumas obras já estão prontas, sendo outros dois romances, um livro de contos e um de poesia. Este será uma continuação dessa antologia agora publicada. “Eu me sinto muito legal para escrever, como se eu fosse um adolescente. Depois de trabalhar com jornalismo por muito tempo, agora me dedico exclusivamente à literatura.” Nesta coluna, conversamos sobre “Pequeno tratado do amor e da natureza”, as inquietações do poeta, Juiz de Fora, literatura engajada e sobre o que a poesia tem a nos dizer neste momento.

Marisa Loures – Alguns dos textos publicados foram escritos na sua adolescência. Era outra época. Roberto Nicolato era outra pessoa. Ao voltar a esses poemas com a intenção de publicá-los, teve vontade de mudar algo?

Roberto Nicolato – Realmente, o poema mais antigo “Rastros”, escrevi quando tinha 17 anos, ainda na adolescência, em Ubá, Minas Gerais, e fala da minha infância. Acredito muito na poesia como inspiração, insights, epifanias. É lógico que depois a gente usa a razão para tentar aprimorar, trabalhar, reescreve algumas questões, mas esse poema eu reescrevi muito pouco. Preservei muito o clima, muito aquele contexto da minha adolescência. Acho que esse livro também é um pouco um livro de formação na poesia. Tanto que tem coisas pessoais. Talvez, nos próximos livros de poesias, eu não fale muito da questão pessoal minha. Mas esse é um livro que fala de mim, um livro de formação. Por isso tem muita coisa de Minas Gerais também.

– E quem era o poeta Roberto Nicolato de 1980 e quem é o poeta Roberto Nicolato de hoje? Quais são, hoje, as inquietações desse poeta?

Nos anos 1980, eu tinha 20 anos de idade. Tinha acabado de entrar na universidade, estava descobrindo o mundo, os grandes autores da literatura, como Clarisce Lispector, Fernando Pessoa, Dostoiévski. E tinha um ideal de vida, como todo jovem. Os anos se passaram, fui para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, trabalhei como jornalista. Depois, vim para Curitiba, fiz mestrado e doutorado em Literatura. É lógico que acumulei experiências, também mais bagagem, mais conhecimento, mas, no fundo, a gente sempre conserva a mesma linha existencial. Isso que é importante na vida. Mas, no fundo, as preocupações são as mesmas de um poeta adolescente, que é o estar diante do mundo, a relação do homem com a natureza, a relação do homem com as suas afetividades. E tudo isso, para mim, é o que importa. E também a questão social que, de certa forma, entra nesse pacote todo aí.

– Na orelha do livro, o poeta Daniel Osiecki aponta que, na seção “Da natureza”, alguns poemas remetem a Manoel de Barros. O título também é inspirado em um poema desse autor. Você dedica um poema a Baudelaire e outro a Leminski. Cita Guimarães, Rimbaud, faz referência a Machado de Assis. Só para dar alguns exemplos. São essas as suas referências? Elas estão sempre presentes em seu fazer literário?

Parto do pressuposto de que ninguém escreve nada do nada. Sempre existe uma herança cultural, uma herança poética que, a partir daí, a gente começa a fazer nosso processo de criação. Então, realmente, tenho inspiração de vários poetas. São poetas que leio: Murilo Mendes, Fernando Pessoa, Rilke e vários outros, como Baudelaire, os simbolistas, porque adoro os simbolistas franceses também. Eu gosto muito desta interxualidade. Por exemplo, no poema “Solidão”, eu falo: “Ouço na/ primavera,/ o canto/ do sabiá./ Estrangeiro/ nessa terra/ nem Pessoa/ vem me/ visitar.” É uma brincadeira que faço com a cidade de Curitiba, que é meio fria. Então, nem Pessoa vem me visitar. “Rimbaud/ dança o/ sabá na/ Abissínia./ Murilo/ instaura/ um piano/ no caos.” Eu gosto de trabalhar com essas questões todas e com essas influências e, realmente, são muitas as influências, e eu dedico ao Manoel de Barros e a todos esses poetas maravilhosos que fizeram a nossa literatura.

– Você se formou em Comunicação, aqui em Juiz de Fora, em 1983. Ano em que a Revista D’Lira foi fundada. Muitos relembram a fervilhante Juiz de Fora cultural dos anos 1980. Nessa época, chegou a ter algum envolvimento com a literatura da cidade? Quais são suas lembranças daqui?

Guardo boas recordações dessa época de estudante da Universidade Federal de Juiz de Fora. Foi uma época cultural e política mesmo. Tinha poesia de varal, teatro de rua. Lembro do Abre Alas (Folheto fundado em 1981), da D’Lira. Eu publiquei um poema na livraria Península. Eles tinham uma revista, e era um poema bem engajado. Inclusive o dono me falou que eu parecia com Maiakovski (assim, longe disso, acho que ele queria ser generoso comigo), e me presenteou com um livro do Fernando Pessoa, “O eu profundo e os outros eus”. Aquilo, para mim, foi uma maravilha. Depois, eu participei da peça “Escada do sucesso”, do José Santos Matos, que era uma peça também engajada. Então, não participei de grupos, de movimentos, na área de literatura, mas foi uma época bem intensa. Ficou na lembrança.

– Por falar nisso, você mora em Curitiba há anos. A literatura curitibana e a própria cidade estão presentes no “Pequeno tratado do amor e da natureza”. O tempo vivido em Juiz de Fora, de certa forma, também está nele?

O que posso dizer é que escrevi alguns poemas quando estava aí, mas não consigo precisar quais são. Escrevi, sim, algumas situações e coisas vividas aí. Mas Minas Gerais está presente em vários poemas, principalmente, em “Do homem”. Tem o “Rastros”, que fala da infância; o “Tiro certeiro”, sobre a morte de pássaros, o que, na minha infância, era muito comum, não como hoje mais; “Asfalto”, que fala de quando o asfalto chegou à minha cidade, no arraialzinho onde morava, em Minas Gerais. O poema “despedida”, que é minha despedida de Minas, também ficou na lembrança. E outro poema, que fala exatamente de Minas Gerais e que se chama “Essa terra”. “Essa é a terra que do alto vejo/ na extensão territorial,/ que ultrapassa meus olhos/ e ganha infinitude…/ Pena que não sou Deus/ para abarcá-la num só abraço,/ com um passo apenas/ a acolher nas mãos./ Só posso compor um poema/ ao avistar tão ricas paisagens/ — seus rios divididos na imensidão côncava;/ nichos de cristais reluzindo/ para dentro de si,/ para dentro do seu povo/ de espirituosos mistério.”

– E já que falamos da fervilhante Juiz de Fora cultural dos anos 1980, esse foi um período em que a literatura andava de mãos dadas com a política. Você é a favor dessa literatura engajada?

Claro que acredito na função social da literatura, e o momento e as circunstâncias, muitas vezes, pedem esse tipo de comprometimento do escritor. É só a gente ver na história da literatura brasileira. Começando com Castro Alves, Euclides da Cunha, Lima Barreto, o regionalismo. Nos anos 70, nós tivemos também Ivan Angelo, Antônio Calado e vários outros escritores que tiveram essa dicção. O Drummond mesmo, em “A rosa do povo”, mostra uma poesia de cunho social. O Drummond, que adoro, que é o meu poeta da adolescência. Comecei lendo Drummond, fiquei maravilhado, assim como Murilo Mendes também, que é um grande poeta de que gosto muito. Acho que não é para ser panfletário. A gente pode fazer uma poesia social. Acho que o momento hoje também exige esse tipo de poesia. Acho bacana, acho que tem o espaço, e a gente está sempre falando das realidades pessoais e da realidade social de um país como o Brasil.

– Você diz que “nada melhor do que a palavra poética nesses difíceis tempos de pandemia.” O que, com sua poesia, quer dizer para a sociedade neste momento?

Não só a poesia, mas a cultura, de uma forma geral, é essencial nesta época difícil em que a gente está vivendo. O que seria da gente sem a música, sem a poesia, sem as artes, sem os filmes. Às vezes, no Brasil, tem um setor da sociedade que não dá valor à cultura, que não dá valor à educação, e a gente necessita muito dessas coisas nesse momento. E a poesia é uma forma de você voltar para si mesmo, despertar mais as suas emoções. Sem pieguismo, mas ela é necessária até para desautomatizar um pouco essa vida cotidiana que a gente leva, a gente ter percepções de outras coisas, ser um pouco mais sensível em relação à vida. Estar diante desse universo, diante do outro e pensar de outra forma. Esperamos que essa pandemia sirva de alguma forma, que a gente possa melhorar nossas relações, melhorar o mundo de maneira geral. É o que eu penso.

Roberto nicolato capa do livro 2

“Pequeno tratado do amor e da natureza”

Autor: Roberto Nicolato

Editora: Kotter, 112 páginas

Sala de Leitura com Roberto Nicolato – Sexta-feira, 23 de outubro, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)

Poema do livro “Pequeno tratado do amor e da natureza”

 A escolha

“Se esta bola que atravessa a rede pudesse parar se

os olhares pudessem recuperar a atenção desviada

a caminhada retroceder os passos talvez se pudesse

enxergar que nada seguirá o próprio destino se o 

artilheiro amasse de verdade a bola sobre os pés se a 

criança tropeçasse no brinquedo que cativa o animal

não farejasse mistérios talvez se pudesse amar mais

e odiar menos a escolha incerta se o beijo fosse

dado em paixões cinematográficas se a sala estivesse

pronta para o tocar das valsas as sandálias amarradas

para a conferência nas praças o tempo seria o das

aves mágicas, libertárias, mas se a escolha é a palavra,

a arte a invenção falsa, arbitrária, o que será do poeta

nessa noite tempestuosa e calma?”

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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