
Há feridas, cicatrizes e experiências que atravessam o corpo feminino e que, muitas vezes, permanecem envoltas em silêncio. No romance “Do tamanho de um grão” (Dulcineia, Quixote+Do), a autora decide não apenas romper essa invisibilidade, mas transformá-la em literatura. Sensível, densa e corajosa. No centro da obra, está o aborto, tratado sem qualquer disfarce, em primeira pessoa, por uma mulher, já madura, que revisita a experiência vivida na juventude, no final do século XX, em uma clínica clandestina de Belo Horizonte.
Estreia da mineira N. Netta na literatura, o livro nasce em um país que ainda presencia retrocessos no debate sobre a temática. “A narrativa inaugura algo de novo na literatura brasileira, pois é a primeira vez que o aborto figura tão abertamente como um dos temas de uma obra literária. Até então, quando presente, a temática tendia a aparecer nas entrelinhas, como sugestão ou elipse”, sentencia, na apresentação do livro, Isadora Pontes, doutora pela UFJF e tradutora de “O acontecimento”, de Annie Arnaux.
Netta também é jornalista, mestra em teoria da literatura e especialista em escrita criativa. Indiscutivelmente, ela se debruçou sobre um tema real, socialmente forte e delicado e mobilizou recursos literários e cinematográficos para transformar essa história em literatura. “Do tamanho de um grão” chega aos leitores como um romance literário que emociona e busca provocar reflexão. “Tenho consciência do espaço que criei na literatura brasileira e orgulhosa de ter escrito uma obra que tematiza frontalmente um dos maiores conflitos da humanidade”, afirma a autora.
Marisa Loures – Qual é a história do nascimento desse romance de estreia e quais caminhos ele percorre ao trazer o aborto para o centro da narrativa brasileira?
N. Netta – O que desencadeou a decisão de escrever sobre o aborto e de estrear na literatura com esse tema foi ler e me identificar com a história narrada no livro “O acontecimento”, da autora francesa Annie Ernaux. O fato de Ernaux ter sido premiada com o Nobel de Literatura legitimou minha identificação. Primeiro, busquei referências sobre o tema “aborto” na literatura brasileira e constatei que não existiam histórias que enfrentassem o tabu no conflito central. Paralelo a essa busca, estudei a fortuna crítica de Ernaux no Brasil. Foi onde conheci e tive o apoio de Isadora Pontes, tradutora e importante crítica da obra ernausiana. Isadora graduou-se pela UFJF, onde atua em um grupo muito ativo de docentes que produz sobre a escrita de Ernaux. Me aproximei de todo esse trabalho de recepção para compor meu livro. Percebi que existia um espaço a ser criado em torno do tema.
– Nos agradecimentos, você menciona que a literatura a colocou onde você sempre quis estar. De que forma suas experiências de leitura e escrita ao longo da vida moldaram suas escolhas estéticas e a coragem de tratar de um tema tão delicado?
– Eu leio muito, por óbvio, e sou mestra em Teoria da Literatura. Apesar de adorar ser leitora e gostar de crítica, eu queria participar da literatura também como autora. Experimento de tudo, em termos de leitura. Autores brasileiros, estrangeiros, novatos, consagrados, desconhecidos, amadores. O que me atrai são referências a dramas universais – amor, morte, sofrimento físico e emocional, tratados de forma humana, ou seja, revelando as imperfeições e as dúvidas que dominam as personagens. O aborto é um tema que evoca todos os dramas humanos e a coragem de abordá-lo veio da minha disposição de criar e não apenas ocupar espaço na literatura brasileira.
– Achei a proposta do livro muito interessante. Pode nos contar o processo de transformar essa experiência em literatura e lidar com a responsabilidade de inaugurar esse debate no campo literário?
– Eu me apoiei nos ombros de gigantes. Annie Ernaux e a também a autora francesa Colombe Schneck foram importantes. Também, ao estudar o trabalho de Isadora Pontes, vi que outras autoras francesas escreveram sobre o aborto, como Violette Leduc e Nathalie Carron-Lanzl. Durante o processo de transformar a experiencia da interrupção da gravidez indesejada em literatura, estudei a representação do aborto em outras artes, como a proposta pela pintora portuguesa Paula Rego, a fotógrafa espanhola Laila Abril e a artista plástica brasileira Aleta Valente, além de muitas outras, como a britânica Tracey Emin. São artistas poderosas que me inspiraram e me encorajaram. Entendi o impacto desses trabalhos no plano individual e coletivo. Tenho consciência do espaço que criei na literatura brasileira e orgulhosa de ter escrito uma obra que tematiza frontalmente um dos maiores conflitos da humanidade.

–“Do tamanho de um grão” dialoga com a obra de Annie Ernaux, a quem você dedica o romance, e com Colombe Schneck, as quais também romperam o silêncio em torno do aborto em seus países. Que influência ou inspiração você encontrou nesses precedentes?
– A coragem, em primeiro lugar, sem dúvida. O fato de serem escritoras consagradas, Annie Ernaux é Nobel, como sabido, e Schneck foi laureada com o Prêmio Femina, que é muito reconhecido na França, me sinalizaram que escrever sobre o aborto podia não ser tão maldito assim. Me senti autorizada a tratar o tema como elas o fizeram. Acompanho a carreira de ambas as escritoras. Schneck, cuja carreira é mais pública, inclusive nos seguimos no Instagram, trabalha o livro dela – “Dezessete anos” – com estudantes de vários países em universidades muito qualificadas, indicando o interesse e a abertura acadêmica para o tema. Me sinto muito bem acompanhada e recomendo a leitura da trilogia “O acontecimento”, “Dezessete anos” e “Do tamanho de um grão” para quem se interessa pelo tema aborto na literatura contemporânea.
– Em entrevista recente, você contou que escolheu manter a narrativa em primeira pessoa e se recusou a buscar facilidades. A decisão trouxe algum impacto na construção do livro?
– Escrever na primeira pessoa sobre aborto significa exposição. Por mais que ali se trate de um “eu de papel”, de um “eu ficcional”, o pronome acaba inibindo se o autor ou a autora não quiser ou não puder bancar a história como sendo sua, ainda que possa não ser. Mas eu quero e posso bancar minha história. Como leitora, acredito que o uso da primeira pessoa agrega força ao que está sendo narrado, nesse tipo de história. Como escritora, o uso do “eu” me desafia a sentir para então escrever. Isso me interessa. Adicionalmente, o uso da primeira pessoa em uma história sobre aborto conforma-se com a perspectiva intima da experiência. Diria que é a forma alinhada com o conteúdo, justificando-me perante a mais recente polêmica literária nacional que provoca narrativas que privilegiariam o significado e menosprezariam o significante.
– Apesar de abordar um tema real e socialmente delicado, “Do tamanho de um grão” se apresenta como um romance literário. Poderia falar um pouquinho sobre o caminho escolhido por você para trabalhar a voz da personagem, a linguagem e o ritmo da narrativa de modo a transformar essa história em uma literatura que emociona e provoca reflexão?
– A minha plataforma de expressão na vida é a literatura. Eu queria escrever sobre aborto, através da linguagem literária, a qual pressupõe trabalho com recursos específicos. Não queria apenas uma história de conteúdo forte, queria forma, queria significante, como adiantei na pergunta anterior. Eu desejei escrever uma história bonita sobre aborto que levasse a perguntas e não a respostas, como é próprio às artes, que emocionasse e provocasse reflexão como você mencionou. Confesso que em muitos momentos eu derrapei e escapei para o ativismo. Não que eu seja contra o ativismo, pelo contrário. A minha posição política sobre o tema é alinhada com as palavras de Isadora Pontes, na apresentação. Mas a minha história é contada pela literatura. As leituras críticas das escritoras Flávia Péret e Claudia Lage me ajudaram a focar no espaço literário.
– Por falar nisso, sua narrativa dá visibilidade ao corpo feminino e às feridas, cicatrizes e experiências que muitas vezes permanecem silenciadas. Como você trabalhou a materialidade do corpo na escrita para que se tornasse parte da linguagem literária, sem reduzir a experiência à descrição clínica?
– Uma narrativa que trata do aborto passa pelo corpo, necessariamente. E, no caso da minha história, o aborto evoca outras experiências que envolvem a função da reprodução em um corpo feminino: ovulação, menstruação, fecundação, gravidezes normais e anormais, menopausa. Essas experiências deixam marcas nas mulheres, físicas e emocionais, que me interessam pelo fato de serem marcas de humanidade e por exporem dramas humanos. Partindo da descrição clínica dessas experiências, as quais tomei conhecimento por estudos, mobilizei recursos literários específicos para transformá-las em literatura. Apostei no trabalho da forma, como adiantei nas perguntas anteriores, me desafiei a narrar literariamente ocorrências fisiológicas, porque, afinal, esse é o trabalho a ser feito. Acabou que a história é contada em várias camadas, desde a microscópica que acontece dentro do corpo, até a cultural, que envolve o modo como vivemos.
– A narradora de “Do tamanho de um grão” permanece sem nome, tornando-se ao mesmo tempo íntima e universal. Quais escolhas literárias você fez para equilibrar essa intimidade com a dimensão coletiva da experiência feminina que a obra evoca?
– Não identificar a personagem, criar uma personagem sem nome, sem traços físicos definidos, o que vai na contramão dos manuais de escrita criativa que prescrevem a caracterização das personagens, principalmente da protagonista, também se relaciona com o trabalho da forma que eu trabalhei na criação da história. Mulheres que abortam são clandestinas, não podem ser identificadas, não querem ser identificadas, sobre elas não existem estatísticas oficiais, perfil definido e qualquer uma de nós pode já ter feito ou vir a fazer um aborto. É a experiencia mais intima da vida de uma mulher e ao mesmo tempo das mais coletivas. Talvez só comparável à da maternidade.
– Em um momento em que o Brasil presencia retrocessos no debate sobre o direito ao aborto, como o recente PL 1904, de que maneira você enxerga o papel da literatura, e especificamente de “Do tamanho de um grão”, na reflexão e na mobilização social sobre esse tema?
– Estudei bastante sobre a situação do tema “aborto”, hoje, no Brasil, em termos sociais. É impressionante a quantidade de grupos que trabalham o tema em todas as frentes: jurídica, ética, religiosa, científica. Temos também vários grupos ativistas de muita relevância. Grupos muito qualificados que fazem um trabalho importante de mobilização e conscientização de homens e mulheres, e me refiro aqui em termos de posições não conservadoras, descriminalizantes, no mínimo. Existem artistas envolvidos com o tema também, embora em menor número do que outras frentes, haja vista meu livro ser o primeiro romance brasileiro a enfrentar frontalmente o tabu. Pessoalmente, sou a favor da descriminalização do aborto. Não sei se o livro será um meio de mobilização em torno do tema “aborto”. Talvez. Reflexão me interessa que provoque. E aí deixo aos leitores e as leitoras o teor dessa reflexão.
– Os capítulos de “Do tamanho de um grão” são curtos e densos, com alternância entre memória, sensações físicas e imagens poéticas. Que efeito literário você buscou ao estruturar a narrativa dessa forma e como isso contribui para a imersão do leitor na experiência da personagem?
– Além dos recursos literários, como dito, mobilizei a linguagem cinematográfica para trabalhar a forma da história. Insisto nisso: a forma é o que eu mais curto na literatura. Muita gente me diz que o livro é um roteiro de um filme. De fato, em alguns momentos, eu misturei as linguagens literária e cinematográfica para conduzir o leitor e a leitora para dentro da história. Queria que o leitor e a leitora sentissem de verdade o que a personagem estava vivendo. Fiz capítulos curtos porque queria deixar bastante espaço para a reflexão do que estava sendo dito. E, para que houvesse essa reflexão, eu deveria entregar densidade. Fiz exatamente o livro que eu queria fazer e adianto que já estou escrevendo o segundo, uma história de infidelidade, adultério e vídeo tape que, de certa forma, se relaciona com “Do tamanho de um grão”.