Acreditando que seu celular havia sido roubado, uma moça branca acusa a jovem negra, que está acomodada a seu lado. Elas estão em um ônibus. O aparelho é encontrado. Estava no fundo da bolsa. E a vida seguiu seu curso como se nada tivesse acontecido. Em “Juntar pedaços” (Malê, 112 páginas), Miriam Alves, uma das principais vozes negras da nossa literatura, entrega ao leitor contos que denunciam o racismo enfrentado pelas mulheres negras brasileiras. Como manterem-se inteiras? Esse é o desafio diário.
Trata-se do sétimo livro de Miriam já enviado para as prateleiras, e ele nos faz refletir, de forma profunda, sobre violência doméstica. Apesar de ter sido gestada antes da pandemia, a obra dialoga, perfeitamente, com a época em que vivemos. Isso porque ainda estamos digerindo os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que mostram que, no primeiro semestre de 2020, a violência doméstica contra pessoas do sexo feminino disparou aqui no país. E as mulheres negras e periféricas, que, normalmente, já são as principais vítimas, são as que mais estão sofrendo neste momento.
“A realidade da violência contra mulheres é histórica numa sociedade machista e sexista. Acredito que esses tristes fatos se tornaram mais visíveis com a lei Maria da Penha. Quanto ao racismo, tem-se a falsa impressão de agravamento nos momentos atuais, mas, na realidade, esse sempre foi um fato grave relegado à banalidade. Sempre se falou da cordialidade da sociedade brasileira. Eu sempre me perguntei: como uma nação fundada sob o regime escravocrata, que impetrava espancamentos, mutilações, estupros, cerceamento de liberdade, pode se acreditar cordial? Tenho a pretensão de que a minha escrita seja sempre questionadora e que leve não só entretenimento, mas também a reflexão. Fico muito satisfeita quando ouço relatos de professores de literatura que me confidenciam a reação de seus alunos após lerem meus textos. Os leitores e leitoras negras me confessam a grande emoção de se verem nas histórias que conto, coisa que a literatura em geral sempre nos deixa de fora dos sentimentos e reações humanizadas, nos estigmatizando só em papéis subalternos e nos eternizando como os escravizados”, assevera a escritora.
Marisa Loures – O dicionário define“vingança” como o ato praticado em nome próprio ou alheio, por alguém que foi real ou presumidamente ofendido ou lesado. Ao ler os contos de “Juntar pedaços”, uma das leituras que faço é de que a vingança permeia as histórias de suas protagonistas. A impressão que tenho é a de que você, Miriam, por meio dessas personagens, também está em plena desforra. Dessa forma, quais são as suas vinganças com a escrita desse livro?
Miriam Alves – Bom, não vejo como vingança as ações das minhas personagens nos contos de “Juntar pedaços”, vejo mais como um escape. Trabalhei por 30 e poucos anos como assistente social, e, nas histórias que ouvi das mulheres vítimas de violência doméstica, havia o desejo de se livrarem da situação, que, às vezes, pareciam sem saída, de uma forma ou de outra. Desejo expresso em frases como: “Se eu pudesse, eu sairia. Ia embora, levaria meus filhos. Arrumaria minha vida”. Ou ainda: “Para me livrar disso, eu mato, ou eu morro”. Mesmo sendo as vítimas enredadas em relacionamentos abusivos, muitas vezes, por anos, são julgadas socialmente como acomodadas por não se livrarem desses abusos. Mas isso não é tão simples assim. Existem amarras invisíveis que as impedem de tomar atitudes mais radicais, que podem culminar em feminicídios. Então, resolvi ficcionar aqueles desejos, não deixar minhas protagonistas como vítimas passivas de situações. Ficcionar ações não quer dizer que isso não ocorra na realidade, mas, na ficção, se torna real.Quanto à última parte de sua pergunta, a resposta é que, a cada livro que publico,existe um objetivo, um propósito que passa por várias intenções. Em “Juntar pedaços”, é trazer a público a complexidade da violência, não só domésticas, contra mulheres, com foco especial nas vivências de mulheres negras, que são sutis e passam despercebidas, com uma capa de normalidade, “é assim mesmo”. Mas não, não é. E mais, dar palavras, complexificar o desejo ensejado no: “se eu pudesse”. Nesse sentido, não há como explicitar, digamos assim, as minhas vinganças. Acho que, em meu livro “Maréia”, houve muito mais o desejo de vingança do que nesse. No romance, eu quis vingar Bertoleza, do livro “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo; Negrinha, do conto de Monteiro Lobato; “Negrinho do pastoreio”, umas das histórias do folclore brasileiro; entre outros personagens negros da chamada literatura brasileira que contribuem para criar um imaginário social sobre a permissividade da violência sobre os corpos negros.
– No prefácio da obra, Franciane Conceição da Silva questiona se “Juntar pedaços” é uma coletânea de contos, dando a entender que o livro borra os limites entre os gêneros, evidenciando um processo de reflexão do seu fazer literário. Esse era mesmo o seu propósito ao conceber essa obra?
– Acredito que os gêneros literários são ferramentas utilizadas para comunicar um fato, um pensamento, uma história. Assim sendo, não são amarras. Através deles se vai formatando as narrativas. Por exemplo, as narrativas que abrem o livro, ensejadas sob o título “Juntar pedaços” e encapsuladas em sete cenas, foi pensada com o objetivo de serem histórias separadas, mas com um eixo narrativo que as conectam, como se fossem capítulos de uma pequena novela, mas não é. Podem ser lidas como recortes do cotidiano. Explicitando mais, vamos imaginar que o gênero literário conto, que vou utilizar, é uma tesoura. Definido isso, deparo com a existência de tesouras de vários tamanhos, formas e utilidades, e vou lançar mão de uma tesoura de podar árvores, ou de cortar cutículas de unhas, ou uma tesoura cirúrgica, mas não me afastando na função da tesoura, que é cortar. Foi com esse pensamento que concebi o livro, pensei em narrativas curtas, mas, nele,tem as longas também. Digamos que usei alguns tipos de tesouras para contar.
– Em “Cotidiano”, você traz cinco narrativas. Os títulos são os dias da semana. Trata-se do dia a dia de uma mulher negra, e o racismo que a rodeia. Sentada no ônibus, ela presencia, por exemplo, uma moça branca que, achando que o celular havia sido roubado, acusa a jovem negra que está acomodada a seu lado. São textos curtos que me fazem perceber um olhar atento de uma cronista, que escreve sobre o que observa no cotidiano. São narrativas nascidas a partir das suas observações?
– Então, continuando com a metáfora da tesoura, enquanto gênero narrativo, nesses textos enfeixados no título de “Cotidiano”, utilizei a tesoura cirúrgica, para contar, esbarrando, propositalmente, no gênero crônicas. Era necessário fazer cortes precisos em situações tão cotidianas que não são registradas como racismo ou intolerância racial. E esse conto citado por você aconteceu com minha filha, que chegou em casa aborrecida contando. Só foi mais um episódio no qual ela foi e é vítima. E observar o cotidiano é meu esporte favorito, é tão rico em suas sutilezas. Hoje, observei uma cena linda que registrei na minha memória criativa, talvez eu a utilize no próximo texto.
– Suas protagonistas em “Juntar pedaços” estão à procura de possibilidades. Sabemos que, em 2021, ser mulher e negra é estar na contramão de encontrar caminhos com portas abertas, e a primeira cena do livro, protagonizada por Carla e Jéssica, me fez pensar muito a respeito de como é importante que uma vá ensinando a outra a juntar pedaços. Como sua literatura e de outras autoras também negras vem contribuindo para derrubar obstáculos que se levantam contra mulheres negras em uma sociedade marcada pelo machismo e pelo racismo?
– Na história de Carla e Jéssica, no conto “Mosaico”, tive a intenção de demonstrar a importância de se encontrar uma fala acolhedora quando se está num momento difícil na vida, quando se tem que tomar decisões. São aqueles pequenos gestos que fazem a grande diferença. Nós, escritoras negras, estamos fazendo sim a diferença. Com os nossos trabalhos literários, estamos disseminando uma fala acolhedora.
“Juntar pedaços”
Autora: Miriam Alves
Editora: Malê (112 páginas)