El PaĂs. Dia 14 de julho de 2017. âMulher Ă© encontrada mumificada em apartamento cinco anos apĂłs sua morteâ. RosĂĄrio foi completamente esquecida. Sua mĂŁe morrera em 2011. Desde entĂŁo, ninguĂ©m mais teve notĂcias dela. No prĂ©dio onde ela morava, no municĂpio de Culleredo, nos arredores de A Coruña, na Espanha, seus 130 vizinhos nĂŁo perceberam que ela jĂĄ nĂŁo mais vivia. NĂŁo havia odor pelos corredores. NinguĂ©m se deu conta da grossa camada de poeira que se acumulava nas janelas.
âEssa reportagem mexeu muito comigo. Ficou na minha cabeça por muito tempo. Volta e meia me pegava pensando no absurdo da situação, nĂ©? A gente Ă© tĂŁo sociĂĄvel, Ă© tĂŁo dependente do contato, do convĂvio com os outros, tanto Ă© que estamos aĂ agora sofrendo tĂŁo intensamente com essas restriçÔes impostas, e pensar que podia existir uma pessoa que morreu e que, durante cinco anos, ninguĂ©m deu falta, ninguĂ©m procurou, ninguĂ©m foi Ă quele apartamento entender o que estava acontecendo, num prĂ©dio com 130 pessoas. E colegas de trabalho? E amigos? Onde estavam essas pessoas?â, indaga a escritora mineira de Belo Horizonte Marcela DantĂ©s.
Autora do livro de contos, semifinalista no PrĂȘmio Oceanos de 2017, âSobre pessoas normaisâ, e acostumada Ă s narrativas mais curtas, ela se inspirou em RosĂĄrio para escrever âNem sinal de asasâ (PatuĂĄ), sua estreia no romance. âA reportagem Ă© muito bonita. A jornalista Silvia Pontevedra fez um trabalho muito sensĂvel e muito forte. Ela disse que a RosĂĄrio levava a vida na ponta dos pĂ©s, e isso me marcou muito mesmo, essa existĂȘncia quase inexistente. Volta e meia eu pensava nessa solidĂŁo, nessa dor e nesse apagamento. Como isso pĂŽde acontecer? NĂŁo achava que isso fosse possĂvel. Pesquisando, descobri que nĂŁo Ă© um caso isolado, que Ă©, inclusive, relativamente comum, e isso me tocou profundamenteâ, conta.
Marcela DantĂ©s foi autora residente do Folio â Festival LiterĂĄrio Internacional de Ăbidos, em Portugal, no ano de 2016, e cursou a cĂ©lebre Oficina Criativa do escritor Luiz AntĂŽnio de Assis Brasil. Para escrever âNem sinal de asasâ, procurou respostas para suas as perguntas que fazia sobre RosĂĄrio, mas nĂŁo as encontrou. E foi aĂ que nasceu Anja Santiago, a protagonista do romance. A autora antecipa que Anja leva uma vida comum e, por isso mesmo, Ă© encantadora.
Marisa Loures – Seu livro Ă© baseado em uma reportagem publicada no El PaĂs, em 2017, sobre RosĂĄrio, uma mulher que foi encontrada mumificada em sua casa cinco anos apĂłs essa morte. Quem era essa mulher? O que da histĂłria dela vocĂȘ aproveitou em âNem sinal de asasâ?
Marcela DantĂ©s – O livro nasce dessa reportagem do El PaĂs que conta a histĂłria da RosĂĄrio, que morreu sozinha no seu apartamento e sĂł foi encontrada cinco anos depois. E Ă©, justamente, essa solidĂŁo e esse fim, esse apagamento de uma pessoa, que Ă© a essĂȘncia tanto da matĂ©ria quanto do romance âNem sinal de asasâ. E nĂŁo se sabe muito sobre a RosĂĄrio. Por ser essa pessoa sozinha, por ter feito essas escolhas e esses caminhos que a levaram a esse fim, que, para mim, Ă© tĂŁo trĂĄgico, nĂŁo se tem muitas informaçÔes sobre ela. A essĂȘncia dela, vamos dizer assim, Ă© esse apagamento e essa solidĂŁo que sĂŁo tĂŁo marcantes e que, de certa forma, Ă© tambĂ©m o fio condutor do meu romance.
– No seu livro, a personagem principal Ă© Anja Santiago. Ela Ă© uma personagem ficcional. Gostaria que vocĂȘ a apresentasse. O que da RosĂĄrio levou para ela? Ou nĂŁo hĂĄ nenhum vĂnculo entre as duas?
 – A Anja Santiago Ă© uma mulher comum, e eu acho que isso Ă© o que ela tem de mais encantador. Ela tem um trabalho que ela nĂŁo ama, que Ă© um trabalho mais ou menos, na visĂŁo dela, mas que ela faz com dedicação, que paga todas as suas contas. Tem um animal de estimação, a quem ela dedica muito afeto, tenta manter uma relação cordial com as pessoas, mas tem traços de personalidade muito fortes e carrega traumas muito pesados, e essa conjunção de fatores a levam a essas escolhas que culminam com esse final tĂŁo solitĂĄrio. A Anja foi inspirada na RosĂĄrio, essa solidĂŁo absoluta, esse trabalho, que Ă© um trabalho discreto e que vai se apagando, onde ela nĂŁo se faz insubstituĂvel, mas ela Ă© uma personagem nova. Ela tem as suas caracterĂsticas, tem os seus traumas, a sua bagagem, e acho que isso faz dela muito Ășnica.
– Por que âNem sinal de asasâ?
– âNem sinal de asasâ Ă© uma referĂȘncia a uma passagem do romance.  O nome da Anja Santiago foi escolhido pela mĂŁe, e ela gostava de dizer que era porque era o feminino de Anjo. E a Anja sempre detestou esse nome, sempre detestou essa justificativa, e, sendo essa pessoa supertĂmida, essa pessoa que gostaria de ser invisĂvel, ela detesta o fato de ter um nome que Ă© diferente, que chama atenção, que as pessoas perguntam. E, quando ela era nova, as pessoas faziam essa referĂȘncia com o anjo, e ela começa a buscar em si essas asas, e ela nĂŁo encontra nem sinal das asas que as pessoas esperariam que ela teria sendo um anjo.
– Quando lemos a reportagem, queremos vĂĄrias respostas. Como pode ninguĂ©m se dar conta da morte dela? Certamente, quando decidiu escrever o livro, vocĂȘ precisou ir atrĂĄs de mais informaçÔes. Como foi essa jornada? O que vocĂȘ descobriu?
 – Eu acho que, alĂ©m dessa dor profunda que a reportagem traz, ela desperta tambĂ©m uma inquietação muito grande. Como isso aconteceu? NinguĂ©m deu falta? NĂŁo tinha um vizinho para perceber? Como a caixa de correio nĂŁo ficou cheia? Todas essas questĂ”es ficaram comigo muito tempo, e eu resolvi escrever para a jornalista contando que eu tinha me inspirado nessa histĂłria para escrever um romance, que eu tinha ficado bastante tocada, e perguntando essas questĂ”es. Fui um pouco abusada, mas, para minha surpresa, a Silvia foi super-receptiva, ficou bastante tocada com a ideia de essa histĂłria se transformar num romance, me respondeu essas questĂ”es e voltou ao lugar da morte da RosĂĄrio para conversar com vizinhos, trazer mais informaçÔes, e me mostrou fotos. As respostas que a gente procura, a gente acaba nĂŁo encontrando. O carro dela tinha uma camada de poeira assustadora, e ninguĂ©m se deu conta de que isso poderia ser o indĂcio de alguma coisa, ninguĂ©m parou para questionar o absurdo disso, nĂ©? EstĂĄ todo mundo tĂŁo envolvido em sua prĂłpria vida que um carro com, sei lĂĄ, trĂȘs centĂmetros de poeira, nĂŁo desperta atenção de ninguĂ©m numa garagem. Isso Ă© muito chocante. A parceria da Silvia foi muito importante para mim, para trazer essas respostas e para me mostrar que realmente foi isto, uma pessoa que estava completamente sozinha.
– Como foi o momento em que teve o estalo de que aquele caso daria um romance? Ali vocĂȘ jĂĄ começou a desenhar a sua histĂłria e a trajetĂłria dos seus personagens?
– Eu acho que a gente, enquanto escritor, estĂĄ sempre pensando em formas de trazer a vida real para a ficção, nĂ©? E, muitas vezes, a vida real Ă© mais absurda, mais louca do que o conto ou o romance mais improvĂĄvel que a gente possa pensar. EntĂŁo, este Ă© um trabalho constante na cabeça. O que pode virar um livro e como. Muitas vezes, vocĂȘ conhece pessoas e imagina que aquela pessoa Ă© uma personagem pronta. EntĂŁo, foi um caminho bem natural. Ă medida que aquela notĂcia nĂŁo saĂa da minha cabeça e que eu voltava sempre naquela situação, eu decidi que isso seria transformado num romance e, justamente, por nĂŁo ter essas respostas. Eu senti a necessidade de construir uma personagem que eu nĂŁo sabia se a RosĂĄrio era, se nĂŁo era. EntĂŁo, trazer um passado, trazer relacionamentos, trazer uma histĂłria para essa pessoa que justificaria chegar a esse ponto tĂŁo dolorido. E foi esse o processo de construção. Primeiro, o desenho da Anja, e, depois, de todo o seu entorno.
– VocĂȘ Ă© autora do livro de contos âSobre pessoas comunsâ. Em uma entrevista publicada em 2018, no LiteraturaBr, disse que gostava muito das narrativas curtas, pois tem a ver com o seu estilo e com a sua linguagem. Mas disse que estava escrevendo um romance. Acredito que seja o âNem sinal de asasâ. Essa Ă© a sua estreia nesse gĂȘnero. Como foi a experiĂȘncia de escrever uma narrativa longa? Ă mais desafiadora?
 – Eu sempre trabalhei a narrativa curta, principalmente, o conto, e acredito que Ă© uma estrutura que funciona melhor para mim. Talvez por eu ter vindo da publicidade, onde a gente tem que ser mais sucinto, mais objetivo, e acho tambĂ©m que Ă© um traço da minha escrita. Mas, ao me deparar com essa histĂłria e com a complexidade da Anja e das outras personagens do livro, e mesmo da narrativa, eu vi que um conto nĂŁo seria suficiente para trazer tudo. EntĂŁo, eu me propus esse desafio e foi realmente uma experiĂȘncia muito diferente para mim. Foi um processo bem mais complexo no sentido de que vocĂȘ precisa mesmo construir personagens, e histĂłrias, e processos, muito longos e muito completos. No conto, muitas das vezes, vocĂȘ estĂĄ pegando como se fosse um frame da situação. EntĂŁo, Ă s vezes, mesmo que seja uma histĂłria superaprofundada, uma histĂłria supercomplexa, vocĂȘ nĂŁo entra na histĂłria dos personagens, nas memĂłrias. Ă como se fosse uma foto de um momento, em que vocĂȘ chega Ă tensĂŁo e Ă solução do conflito em poucas pĂĄginas. E um romance Ă© o contrĂĄrio. VocĂȘ tem que traçar todo o perfil daquelas pessoas, toda a histĂłria, todos os pontos que foram cruciais para desenvolver aquelas personalidades. EntĂŁo, esse trabalho de construir, de criar essa linha do tempo, essas relaçÔes, isso para mim foi muito novo, mas foi um processo muito bom, e eu fiquei bastante feliz com o resultado. Depois disso feito, sentar para escrever flui normalmente, seja conto seja romance, que Ă© a parte natural, a parte mais gostosa do processo mesmo.
– JĂĄ que falamos sobre seu estilo e sua linguagem, consegue defini-los?
– Eu acho que a minha literatura Ă© muito marcada por uma curiosidade muito grande em relação Ă s pessoas, e Ă© isso que eu tento trazer para o meu estilo e para a linguagem. Eu me comovo muito com as pessoas, suas idiossincrasias, seus dramas, suas manias. Isso para mim Ă© muito bonito, e eu tento sempre trazer isso. Eu trabalho com personagens que sĂŁo contraditĂłrios, personagens complexos, personagens que nĂŁo sĂŁo essencialmente bons, essencialmente maus. E eu acho que isso tambĂ©m, de alguma forma, se traduz numa linguagem que busca ser acessĂvel, justamente, por traduzir uma convivĂȘncia normal, essa convivĂȘncia humana.
– Sobre o lançamento de âNem sinal de asasâ, vocĂȘ optou por nĂŁo fazer lives, buscando uma estratĂ©gia diferente, assĂncrona. Publicou uma sequĂȘncia de conteĂșdos nas redes sĂłcias (vĂdeo-leituras, fotos, trechos do livro) durante um mĂȘs. Que avaliação vocĂȘs faz? Sua estratĂ©gia deu certo? Planejou mais alguma ação para fazer seu livro circular? Por falar nisso, estĂĄ nos seus planos lançå-lo na Espanha?
 – O lançamento de um livro Ă© um momento muito especial, nĂ©? O lançamento tradicional, em que vocĂȘ encontra as pessoas, assina os livros, conversa com os leitores. Eu acho isso muito importante, acho que isso torna o livro real, o livro passa a existir. Uma cosia que existiu sĂł para vocĂȘ durante anos estĂĄ existindo para o mundo. E, neste contexto em que estamos vivendo, nĂŁo seria possĂvel fazer um lançamento assim. EntĂŁo tive o cuidado de pensar em açÔes que pudessem me aproximar dos leitores e que pudessem mostrar o livro para os leitores. Ter as pessoas apresentando trechos, um pequeno perfil de cada um dos personagens principais, isso tudo foi colocado nas redes sociais para que as pessoas pudessem conhecer um pouco desse universo que estĂĄ comigo hĂĄ trĂȘs ou quatro anos. E tem sido muito legal. O retorno das pessoas tem sido muito bacana, as pessoas tĂȘm me procurado para conversar, ou para contar histĂłrias, ou para dizer que ficaram supertocadas com a matĂ©ria ou com a histĂłria da Anja. Essa troca Ă© muito rica, acho que Ă© um dos momentos mais importantes do lançamento de um livro e tem sido muito bacana. Eu adoraria lançå-lo na Espanha, tenho conversado um pouco com a Silvia, e ela sempre fala disso, mas, por enquanto, Ă© um plano. Espero que se torne realidade logo. Quem sabe?
– Seu primeiro livro, âSobre pessoas normaisâ, foi semifinalista do PrĂȘmio Oceanos 2017. Agora, vocĂȘ publica o primeiro romance. O que sonha para ele?
– Sonho que ele possa tocar as pessoas em algum lugar que seja importante, em algum lugar profundo, e que ele possa ser uma boa companhia. Ă claro que os prĂȘmios, o reconhecimento, as boas crĂticas e resenhas sĂŁo fundamentais nesse ofĂcio que Ă© muito solitĂĄrio e muito cheio de inseguranças e incertezas. A gente estĂĄ sempre pensando: âO que serĂĄ que estou fazendo? SerĂĄ que esse livro Ă© bom? SerĂĄ que eu deveria publicar? AlguĂ©m vai ter interesse nesse livro?â EntĂŁo, essas pequenas etapas sĂŁo formas de reconhecimento que nos dĂŁo mais coragem para seguir, que nos validam. Dizem âvocĂȘ estĂĄ fazendo a coisa certa, segue nesse caminho.â Ă muito legal, fiquei feliz quando o âSobre pessoas normaisâ ficou semifinalista de um prĂȘmio tĂŁo importante quanto o PrĂȘmio Oceanos. Era meu primeiro livro, entĂŁo, realmente, foi uma validação muito importante. Mas, da mesma forma, ou, talvez mais ainda, Ă© receber uma mensagem de um leitor dizendo que aquele livro virou livro de cabeceira ou que a pessoa comprou esse livro para dar de presente para outra, porque ele a tocou e disse muita coisa para ela. Isso para mim Ă© mais importante no sentido de que mostra que estou conseguindo conversar com o outro. E Ă© para isso que a gente escreve afinal, nĂ©?
Sala de Leitura â Toda sexta-feira, Ă s 11h35, na RĂĄdio CBN Juiz de Fora (FM 91,30).
“Nem sinal de asas”
Autora: Marcela Dantés
Editora: PatuĂĄ
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